Líder dos Racionais MC's e Criolo, que fazem um dos shows mais esperados do ano em São Paulo, falam sobre racismo, periferia e política
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João Paulo Carvalho,
O Estado de S.Paulo
14 Junho 2018 | 06h10
14 Junho 2018 | 06h10
Das periferias do
extremo sul de São Paulo, saíram dois dos nomes mais importantes do rap
nacional. Dos esquecidos bairros do Capão Redondo e do Grajaú, Mano
Brown e Criolo brilharam.
Ícones de diferentes gerações do gênero musical, ambos se tornaram
símbolos de resistência. Resistência contra um sistema muitas vezes
injusto, cruel e opressor de pretos e pobres.
Em 1997, quando Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, dos Racionais MC’s, lançaram o emblemático Sobrevivendo No Inferno,
o Brasil dirigiu finalmente seus olhares conservadores e elitizados
para a periferia. Era, portanto, a primeira vez em algumas boas décadas
que o País dava voz àquela gente esquecida. As 12 faixas do disco
contestavam uma sociedade injusta, relatando um cotidiano cruel, porém
real. A música dos anos 1990 nunca mais seria a mesma depois dos
Racionais.
Quase 15 anos depois do estouro de Brown e sua trupe, Kleber Cavalcante
Gomes, o Criolo, chegou ao topo. Nascido e criado no Grajaú e prestes a
desistir da música, o rapper compôs os versos doces e melancólicos de Não Existe Amor em SP, que fizeram todo mundo repensar os tempos sombrios que vivíamos. Nó Na Orelha (2011) flertou com o samba, o rap e o eletrônico. Criolo, então, explodiu e levou o rap novamente ao centro das atenções.
Parte dessa história poderá ser vista nesta sexta-feira, 15, no Espaço
das Américas, na zona oeste de São Paulo, quando Mano Brown e Criolo
subirão ao palco juntos para um dos shows mais aguardados de 2018. “É a
celebração de pessoas que não desistiram de suas vidas. Vamos celebrar
uma história e mostrar para o jovem que é possível vencer. Dividir o
palco com o Brown representa a minha essência. São as minhas raízes. O
Brown é um pedaço da história da música brasileira, algo muito forte
para mim”, diz Criolo.
“Tem o outro lado da coisa, que é a representatividade do Brown e do
Criolo juntos. Justamente pelo momento político que o País atravessa,
sabemos o que as pessoas esperam da gente, como homem, artista e rapper.
O rap tem esse lado político mais aflorado. O lado político é o que
sustenta o rap. Eles esperam da gente uma postura combativa. Precisamos
lutar pelo momento de celebrar”, complementa Mano Brown.
Mano Brown, 48, e Criolo, 43, têm diferentes jeitos de expressar suas
ideias. Enquanto o primeiro é mais direto e objetivo, o segundo prefere
estabelecer metáforas e fábulas para externar sua linha de raciocínio.
Fato é que a dupla, mesmo com maneiras tão antagônicas de externar os
pensamentos, mostra bastante entrosamento dentro e fora dos palcos.
Os últimos discos de Criolo e Brown, inclusive, dialogam muito bem. Criolo lançou o elogiado Espiral de Ilusão (2017), que homenageia o samba dos anos 40 e 50. Já Brown surpreendeu a todos com o heterogêneo Boogie Naipe (2016). “Quem conhece o Mano sabe que ele também tem o samba no coração. Isso acabou dando vida ao Boogie Naipe.
O Mano me contou que as primeiras experiencias musicais dele foram com o
pandeiro. Acho que cada um pegou sua porção de audácia e coragem”,
lembra Criolo. “Eu gosto de fazer tudo com prazer e devoção. Rap, para
mim, é religião”, conta Brown.
No repertório, clássicos das carreiras solos de Criolo e Mano Brown, além de hits dos Racionais MC's. Ponta de Lança Africano (Umbabarauma),
canção original de Jorge Ben Jor e regravada por Mano Brown em 2010,
também será tocada no show. A faixa foi produzida por Zegon e Daniel
Ganjaman, um dos diretores musicais do espetáculo ao lado de Duani
Martins.
Recentemente,
a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) divulgou a lista de obras
obrigatórias para o vestibular 2020 da instituição. Entre as novidades
está a inclusão do álbum Sobrevivendo No Inferno, dos Racionais. Lançado em 1997, Sobrevivendo No Inferno foi o segundo álbum da banda e contém clássicos como Capítulo 4, Versículo 3, Diário de um Detento, Tô Ouvindo Alguém me Chamar, Rapaz Comum, Jorge da Capadócia e Fórmula Mágica da Paz.
No vestibular, a obra fará parte do gênero poesia. Os candidatos
terão que ler na íntegra as letras das 12 músicas que compõem o
trabalho. “Fiquei espantado e recebi a notícia de maneira positiva. Era
um mundo tão diferente do de agora. A gente era tão jovem. Eu tinha 28
anos quando o disco saiu e estava procurando meus caminhos, o meu norte.
Me recordo de cada arranjo, batida e letra. Analisando o álbum, 20 anos
depois, vejo que é um disco muito pesado. Acredito muito na força das
palavras. Hoje eu pensaria duas vezes antes de fazer algo assim. Mas,
naquele momento, era meio que uma prioridade. Naquela época (1996, 1997 e
1998), o Capão Redondo foi tri campeão do mundo em número de
homicídios. Eu sempre achei que o Brasil era cego e surdo. Tem coisas
naquele disco que são muito óbvias para quem é da periferia. Eu
particularmente não me assustava nenhum pouco com aquilo. A população
não via coisas que eram muito fáceis de serem vistas. Isso é muito
assustador. O Criolo, por exemplo, via o que estava acontecendo. Ele
mesmo poderia ter escrito este disco. O Sobrevivendo No Inferno era aquilo mesmo: um rapaz comum falando da vida, um pobre tentando romper a barreira de pobreza e do anonimato”, relata Brown.
Política.
Sentados sob um banco rústico de madeira em uma simpática casa na
região de Pinheiros, na zona oeste da cidade, Criolo e Brown falam
abertamente sobre política.
Para dois dos mais importantes nomes do rap
nacional, o cenário atual nunca foi tão nebuloso e incerto. “A gente
vive sob uma sombra. A maior ferramenta do Estado é o medo. Eles criaram
essa situação de que falar sobre política é algo chato. Todos deveriam
aprender sobre política logo na infância. Nossos parlamentares estão
aprovando todas as leis antipovo na calada da madrugada. Isso é grave”,
lembra Criolo. “Agora, mais do que nunca, as pessoas precisam recuperar a
confiança. Não é PT, PSDB, Santos ou Corinthians. Eu não posso pensar
só em tirar vantagem. O brasileiro está esperando a polícia chegar. Ele
pensa que todos são ladrões, como se isso fosse a solução. Vivemos uma
maré de baixa estima, que, por si só, já faz um mal do caramba. Eu só
vejo solução se o Lula for presidente. Assim os avanços na parte social
vão poder continuar. Se o Brasil não fizer justiça, isso aqui vai virar
um Mad Max. Eu vi a vida das pessoas se transformarem no
Governo Lula. As pessoas passaram a se enxergar diferente de como elas
se enxergavam. Não só o negro, mas o branco. De baixo do meu bigode. Eu
vi as mudanças acontecendo. Daí você vai me perguntar: o quê? E eu vou
responder: tudo. Principalmente a visão que o negro tinha dele mesmo. A
periferia era conservadora e preconceituosa. Falar que o governo Lula
não mudou a vida dessas pessoas é mentira”, destaca Brown.
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