ANDRÉ TEIXEIRA, da Mangue Jornalismo
“Em Aracaju, nada acontece!”. Geralmente assim, exclamando, quem diz a frase que eventualmente ouvimos, erra. Natural, humanamente natural. Não persistir nos erros, na vida, é meta. Então, é prudente ampliar a percepção sobre a felicidade debaixo dos nossos narizes. Há o que tem fedor, é fato, pois herdamos muitas tradições embalsamadas. Mas, a novidade sempre vem. Mesmo para quem não tenha olhos para ela, está aqui ou ali, lutando para anotar sua existência. Desse modo, apresentamos uma perspectiva da cena cultural terráquea, que grita de Aracaju, Sergipe.
Primeiro lugar no Prêmio Funarte Murais do Centenário da Semana de Arte Moderna, o projeto “Além da Torre” instalou um mural modernista nos 105 m² da antiga torre de escalada da pista de skate Cara de Sapo, Orla de Atalaia. Idealizado pelo jornalista Marcelo Rangel e pelo grafiteiro André Chagas, propõem através dos diversos elementos da cultura sergipana nele grafitados, “um diálogo com a cidade que mantém a transmissão cultural e a produção de sentido vivas na fala, na memória e nas anedotas da população, que se alimenta e retroalimenta tudo isso, como o manifesto modernista também valorizava.”
Curador do projeto, Rangel informa que “Chagas converteu referências culturais locais em vetores de um modernismo regional contemporâneo, que revisita o muralismo modernista por meio de uma composição de base geométrica com traços, formas e representações da biodiversidade, das culturas populares e do patrimônio imaterial sergipano, com personagens e criações que integram a memória coletiva de Sergipe, territorializando a integração de motivos locais e regionais com base na linguagem das artes de rua”.
Desde o início de maio, a torre já pode ser visitada, com abertura oficial a 28 de maio, com show do grupo Som de Calçada, a exposição impermanente dos grafites e a feira de artesãos formada naturalmente no entorno da pista. “E, para além da torre, tem um arco-íris, simbolizando todas as possibilidades de fusão cultural, de vivências e de diversidade da vida”, arremata Rangel.
Aquém dos louros, aproveitamos o diálogo proposto por Chagas e Rangel para lançar um olhar sobre a arte urbana e a arte pública na capital sergipana, que possui tantas outras peças que fazem da cidade um grande museu, ao qual, pode-se dizer, é tão livre e acessível quanto abandonado e esquecido. Obras roubadas, vandalizadas, ou simplesmente destruídas, a exemplo da escultura em homenagem ao seresteiro Antônio Teles, próxima ao antigo farol da Atalaia. De tão saturadas pelo tempo, muitas vezes nem as enxergamos. Uma vez eu mesmo não vi a estátua do índio degolado, na praça da Catedral. Sua cabeça, encontrei-a durante o almoço, na casa do amigo que, logo após meu susto, falou da sua inútil tentativa de restauro.
Concordamos que nem tudo é musgo ou bosta de pombo, e algumas obras desse museu não mordidas pelo descaso brilham, ainda que muitas vezes invisíveis ou simplesmente ignoradas pelos moradores da cidade.
Ensaio Secreto
Explicitamente diversa, a cena se cruza e entrecruza, multiplicando esforços para dividir o peso da construção do sonho. Elemento importante nesse caldo, o projeto Ensaio Secreto apresenta sua 388ª edição. Isso mesmo, sua 388ª edição. De forma ininterrupta, há quase oito anos, toda segunda-feira Paulinho Araújo, Tatá Lima, Mauá, Igor Azevedo e J. Victor Fernandes, juntos ou não, atravessando golpes de Estados e de Municípios, pandemia e outros constrangimentos, fortalecem a trama da resistência entre os que acreditam nas potencialidades da Arte, ora mediando, ora provocando o tráfego dessa cadeia produtiva.
Fernandes destaca o trabalho realizado durante a pandemia. “Fizemos com todos os cuidados possíveis do mundo, mas navegando no apocalipse, como se desse os últimos suspiros, me perguntando ‘O que é que eu faço no fim do Mundo?’ e me respondo ‘O que sempre fizemos: Arte.’ Muito importante também as quase 300 rodas de conversa, sempre buscando pontos comuns para um mundo melhor e sustentável, a importância da Arte e sua função social, a inação do Estado em todas essas questões que possam tornar o mundo mais igualitário e equânime, fosse qual fosse o tema, a cidade para as pessoas, mobilidade urbana, essa visão para um futuro melhor, fica clara como a intercessão de todas as rodas.”
De natureza nômade, a realização dessa 338ª edição foi acolhida pelo Atelier Inculca, que abriga até o início de junho a 4ª Mostra CHAMAS, exposição coletiva protagonizada por mulheres, idealizada pelo Fórum Permanente de Artes Visuais de Sergipe (FAVS). Neste curto parágrafo, outros dois importantes vetores culturais traduzidos na pessoa de Antônio da Cruz, operário das artes à frente do atelier e do Fórum, e à frente também de décadas de luta por direitos de seus pares, petroleiros ou artistas.
Encontrei Euler Lopes no Museu da Gente Sergipana. Ela estava ao telefone e nos comunicamos mimicamente. Quando falamos, soube que vendera o antepenúltimo ingresso para seu novo trabalho, “Rio, sim”. Comprei o penúltimo e minha amiga Kiki comprou o último, minutos antes do início do espetáculo teatral que fomos assistir: “Desencontro”, de Tinho Torquato.
No release, “Desencontro é um ritual orgânico à uma passagem por todo avanço futurístico midiático que estamos”. No escuro da sala, lágrimas pesadas lastrearam sua gravidade. Um sufoco aflitivo no convite ao grito que o autor convida o espectador a gritar. Gritar pela vida, pelo amor e pela arte, alvos constantes do ódio gerado pelo fascismo estrutural, fartamente nutrido desde o golpe de 2016 pelos prepostos do neoliberalismo do caos (por favor, me perdoem a redundância). Saí da sala com a nítida impressão de que Tinho Torquato me deu uma porrada. Disfarçando a dor, me despedi de quem conhecia e saí, tão emocionado quanto impressionado.
Oito dias depois, reencontro Euler na estreia de “Rio, sim”, sua performance em audiotour, inspirada na performance “Se te encontrei foi porque senti saudade de mim”, da artista potiguar Heloísa Sousa e título inspirado na canção “Rio sim”, da cantora Patrícia Polayne. Como cenário, Euler usa o Centro de Aracaju e a relação da artista com a cidade e suas dificuldades para realizar teatro como mote. Entre a Rua da Frente e o ponto final da caminhada, encontramos em sua fala fantasmas e assombros tão dela, e, ao mesmo tempo, tão nossos. De mãos dadas, seguimos por ruas e lugares ouvindo os áudios entre veículos, casas para alugar e poucos transeuntes. Encontro em “Rio, Sim” o mesmo desconforto incômodo que permeia “Desencontros”. São urgências, e os donos da dor têm pressa.
Ambos, Euler e Tinho, com vários anos de sacerdócio teatral, ainda estão distantes das décadas de palco do Grupo Imbuaça e seu diretor, Lindolfo Amaral, que em recente entrevista à Liz Barretto, da Mangue Jornalismo, questiona, “De que adianta celebrar 46 anos de Imbuaça se na sua própria cidade você não é respeitado?”, tendo em vista que o mais antigo grupo de teatro de rua do Brasil, patrimônio cultural sergipano, não é contratado pela prefeitura ou pela sua fundação de cultura, restando cada vez mais esparsas montagens locais e participação em festivais. (Leia AQUI a entrevista completa https://manguejornalismo.org/de-que-adianta-celebrar-46-anos-de-imbuaca-se-na-sua-propria-cidade-voce-nao-e-respeitado-questiona-o-ator-lindolfo-amaral/).
Nos teatros de Aracaju, produções pop do circuito nacional, como os musicais “Wandinha” e “A pequena Sereia”, dividem palco com produções sergipanas, como a montagem de “Lisbela e o prisioneiro” pela Ribalta Academia de Atores, prometido para junho próximo, e a peça “Desterrados”, do Cia. de Teatro, do Curso de Teatro da UFS, encenada em abril no auditório da Biblioteca Central da UFS. Sua montagem anterior se deu no teatro Atheneu, celebrando a reabertura do Memorial do Teatro Sergipano, transferido do quase sexagenário Teatro Lourival Baptista, que segue fechado e sem previsão de início da reforma prometida em 2019. Igualmente fechado e atrasado na entrega, prometida para dezembro de 2022, o Centro Cultural de Aracaju continua fazendo uma falta brutal. Além de sala para exposições, a sala de cinema Walmir Almeida e o Teatro João Costa, o Centro Cultural possui em suas dependências o Museu Cidade de Aracaju. Todos fechados e até agora sem data prevista para reabrir. Tanto assunto e nem entramos no mérito da discussão sobre o Centro de Criatividades.
O não dito
Tudo está conectado. Em maior ou menor grau de profundidade, da mesma forma que o canto dos galos que tecem a manhã do poema do João Cabral de Mello Neto. Tudo está conectado. E o que não foi dito acima sobre a cena cultural aracajuana, invisivelmente conecta-se: o Cinema Vitória, propondo uma programação alternativa ao cinema comercial; novos espaços se abrindo para também exibir filmes, peças teatrais e atrações musicais; novos e não tão novos nomes movendo a cena musical, do instrumental ao arrocha, dos grupos folclóricos tradicionais ao pisêro, passando por expressões influenciadas pela cultura pop e pelo clássico das Sinfônicas de Sergipe e da UFS, entre dezenas de outros nomes. Eventos como o FASC, o Encontro Cultural de Laranjeiras, o TobiArte (cuja PL 1610/2023 pretende “inserir no Calendário Nacional de Eventos, do Ministério do Turismo”) e o Festival de Artes Cênicas, cuja 4ª edição está prometida em edital para julho e agosto de 2023, ajudam, mas é pouco.
A resistência está aí, persistentemente insistindo em sobreviver à falta de apoio ou excesso de descaso dos poderes públicos. Enquanto somos direcionados, teleguiados, webguiados para um nocivo ensimesmamento digital, essas ações de resistência cultural se entrelaçam e (re)ensinam a força da coletividade, “se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão”.
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