Sobre a disputa acerca do método da
Teologia da Libertação:
debate com Clodovis Boff
On the dispute over the Liberation Theology method:
debate with Clodovis Boff
Pedro Igor Leite
Resumo
O artigo de Clodovis Boff (2007) chamando a teologia para voltar ao seu fundamento provocou uma série de discussões acerca do método e da epistemologia, sobretudo dentro do universo da teologia latino-americana da libertação. O contexto era o da Conferência de Aparecida e, naquele espírito, o texto apresentado na REB pretendia analisar a relação Cristo-pobre e o rigor do fundamento a partir do qual a teologia deve se orientar. Susin, Hammes, Leonardo Boff, Aquino Jr. e outros teólogos contra argumentaram e, cada um a partir de suas inquietações, produziram, também na REB, uma grande página na história da Teologia. Tal debate é visto por nós como uma verdadeira disputatio capaz de criar novos horizontes e novos caminhos de pesquisa e produção criativa no âmbito da ciência teológica, levando em conta a seriedade dos termos e a profundidade dos argumentos. O nosso artigo, por sua vez, não tem como objetivo se prender às polêmicas que daí resultaram, mas, indo além, busca expor as teses apresentadas por Clodovis, as antíteses levantadas pelos demais teólogos e, por fim, as sínteses que nasceram deste rico diálogo epistêmico.
Palavras-chave: Clodovis Boff. Fundamento. Cristo. Pobre. Epistemologia.
PqTeo, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 105-127 jan./jun. 2022 106
ISSN 2595-9409
DOI: 10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2022v5n9p105
Introdução
Clodovis Boff é sem dúvidas um dos maiores nomes da epistemologia e do método teológico no Brasil. Sua contribuição acadêmico-pastoral não só ajudou a estruturação do pensar e fazer teologia, como na organização das pastorais, sobretudo as de viés mais popular. Em agosto de 2007 escreveu um artigo, publicado pela REB no qual argumentava e convidava a Teologia da Libertação (TdL) a voltar ao seu fundamento. A partir deste artigo uma verdadeira disputatio em torno do método, dos princípios e da episteme da TdL foi desenvolvida.
Por primeiro, um artigo assinado por Luiz Carlos Susin e Érico João Hammes,1 na edição de Abril de 2008 da REB, propôs-se debater com Clodovis tendo como base o seu artigo. Na edição de julho do mesmo ano, Leonardo Boff em uma comunicação escreve um texto contrário ao irmão, intitulado Pelos pobres contra a estreiteza do método. Também Aquino Jr. apresenta, no alto de seu
doutoramento em Münster na Alemanha, um texto com aproximações críticas entre C. Boff e o método da TdL. Este bloco, podemos dizer, foi uma reação crítica e, em alguns casos, bastante assustada em relação ao primeiro artigo em questão.
Respondendo a estes, Clodovis assina uma réplica em outubro de 2008, também publicada pela REB onde ratifica os seus argumentos e endossa ainda mais sua perspectiva teórica, justificando-a de maneira mais pontual.2 Nosso intento, neste presente artigo, é apresentar o núcleo de cada texto em análise e, por fim, desenvolver uma reflexão sobre o desfecho da discussão, tendo em vista a passagem de uma década desde o evento teológico (assim chamemos esta disputatio) e a necessidade de não se perder a riqueza aqui analisada, pois é na própria explanação crítica das diferenças e contrariedades que a Teologia se faz e se conhece a si mesma.
1. Clodovis Boff e a volta ao fundamento3
2 Algumas comunicações da REB trazem uma espécie de ressonância sobre o debate em curso: José Comblin escreve um texto no qual discorre sobre As estranhas acusações de Clodovis Boff (REB, n. 273, pág. 196-202, jan. 2009). Padre Libanio escreve o texto: Excesso de zelo metodológico (REB, Petrópolis, n. 274, p. 472-474, abr. 2009). Ganha destaque na linha do aprofundamento teológico Fábio César Junges que desenvolveu sua pesquisa de mestrado em 2011 nas Faculdades EST com o título: Método da Teologia da Libertação em debate: a perspectiva de Clodovis Boff. O padre Jesuíta Francys Silvestrini Adão que também desenvolveu sua pesquisa de mestrado em 2013, na PUC-Rio, com o seguinte título: A encarnação do discurso teológico no Brasil. Clodovis Boff: teoria, revisão e debate. No ano seguinte F. Silvestrini publicou, na REB, um artigo síntese de sua dissertação com o título: Nossa parte da herança. Os frutos de um debate teológico no Brasil (REB, Petrópolis, n. 294, p. 264-299, abr./jun. 2014).
3 Antes de avançar é importante pontuar que a análise feita por Aquino Jr. tem duas partes, uma onde retoma a história do pensamento metodológico de Clodovis e outra onde apresenta, com base no artigo aqui discutido, sua análise crítica. Propomos que a primeira parte seja aqui colocada como pano de fundo ou mesmo lanterna que clareia a discussão e a segunda entre no corpo do texto, em sequência cronológica. Não é sem propósito que, por diversas vezes, em sua réplica, Clodovis deixa transparecer que Aquino consegue entender o seu pensamento, sobretudo porque faz uma leitura de conjunto de sua obra, não apenas do artigo de 2007. Neste artigo, Aquino identifica três fases que correspondem a três características ou compreensões da TdL e de seu método ( AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 598): 1. TdL como tema da teologia; 2. TdL como um horizonte ou uma perspectiva da Teologia e 3. TdL como um momento ou dimensão da Teologia. A primeira fase, contemporânea ao período em que Clodovis estava em Lovaina, aborda, por um lado, a Teologia como uma Teologia do genitivo (especificamente como Teologia do político) e, por outro, procura explicitar os problemas metodológicos a partir de mediações: o problema do objeto da Teologia (o político), mediado pelas ciências sócio-analíticas (objeto material); o problema do modo de apropriação deste objeto teológico, mediado pela hermenêutica bíblico-teológica – pertinência do discurso (objeto formal) e o problema da relação com a prática (estatuto social-histórico). Assim, em síntese, há dois pilares mestres da TdL como teologia do político: 1º Mediação sócio-analítica (em sua primazia lógico-cronológica) e 2º Mediação hermenêutica (em sua primazia na ordem
Clodovis divide o texto em duas partes: na primeira (sobre a qual iremos nos deter), faz um questionamento à TdL sem querer desqualificá-la, mas propondo uma refundação.4 Na segunda parte, partindo do até então recente Documento de Aparecida, sugere como a TdL pode ampliar seus horizontes. Dito isto, inicia sua exposição afirmando que há duas teologias da libertação: uma ideal e outra real. Aquela, segundo ele, é a que foi proposta por Gustavo Gutiérrez, esta outra, realmente existente, que tem um histórico de caminhada é a que é base para a discussão e a que é convidada a fazer uma volta ao seu fundamento. A crítica segue refletindo sobre a ambiguidade do termo fundamento e a inversão de primado, as consequências daí nascedouras e as possíveis causas desta inversão.
1.1. O primado epistemológico e a ambiguidade do termo fundamento
Clodovis não tem dúvida de que a opção pelos pobres está fundada epistemologicamente na Sagrada Escritura e na Tradição. Entrementes, ele entende
de importância). Esta primeira fase é resumida naquilo que Clodovis vai chamar de T1 e T2, onde aquela se ocuparia das realidades específicas da Religião (Deus, criação, Cristo...), e esta última estaria ocupada das realidades seculares (cultura, sexualidade, política...) (AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 599). Desta feita a TdL seria uma teologia do político, situada na área ou zona da T2 que, por sua vez, supõe uma T1 (teologia clássica). A segunda fase, mais crítica e revisionista, marcada pelo prefácio da 3ª edição de sua tese doutoral e pelo artigo sobre o método da TdL no Mysterium Liberationis, apresenta a TdL como uma teologia integral, no horizonte/perspectiva da libertação, contudo, constituída de dois momentos distintos, com momentos próprios: o primeiro momento (M1) é constituído assim: A- Organização em dois níveis (auditus fidei e cogitatio fidei); B – O resultado da operação pode ser assumido pela TdL a título de princípios iluminadores (à luz de) em seu momento 2 (M2); C – há uma refundação epistemológica. O segundo momento (M2), por um lado retoma o que se desenvolveu na fase anterior (as 3 mediações), por outro, destaca um pressuposto epistemológico na TdL, chamado de experiência espiritual no pobre. Noutras palavras: na segunda fase se diz que a TdL é uma teologia integral (com a perspectiva do pobre e da libertação) em dois momentos: o primeiro observando os aspectos da teologia positiva e especulativa e o segundo retomando as mediações da primeira fase. A terceira fase, a atual, ganha corpo na famosa Teoria do Método Teológico e nos artigos posteriores que aprimoram sua teoria. Aí, diz Aquino Jr., “a TdL e seu método são compreendidos como um momento da teologia cristã e de seu método, isto é, como ‘um dispositivo’ particular dentro do órganon total da teologia” (AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 604). Já em Como vejo a teologia latino-americana trinta anos depois, o próprio Clodovis, e isto é citado por Aquino, afirma ter percebido que a TdL não podia ser uma teologia completa e que pressupunha uma mais básica, o que levava a afirmar que o ideal seria não mais falar em TdL, mas em teologia cristã com dimensão libertadora (AQUINO JR. F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 597-608).
4 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1001.
de antemão tal questão como um tema,5 isto é, como algo que deve ser precedido por outra reflexão primordial. Observa ainda que há uma aplicação sem preocupação linguística e epistemológica com termos que definem significados e mesmo limites metodológicos. Citando Jon Sobrino, C. Boff diz: “(ele) fala dos pobres como a instância que dá a ‘direção fundamental’ à fé e como sendo o seu ‘lugar mais decisivo’”6 e acrescenta que tanto fundamental, quanto decisivo estão aí jogados com descuido. Na verdade, segundo o autor em questão, o primado deveria ser dado, em absoluto, “à fé apostólica transmitida pela Igreja”.
A preocupação aqui é sobre o significado de cada um destes termos, tendo em vista que se há erro no princípio epistemológico, certamente haverá nos desdobramentos seguintes. Para ele “o que é decisivo permanece nela (na TdL) indeciso. Daí sua inconsistência epistemológica”.7 O problema é a ambiguidade que nasce dessa inconsistência, provocando o que ele chama de erro de princípios.8
Tal erro é a “inversão de primado epistemológico”: “não é mais Deus, mas o pobre, o primeiro princípio operativo da teologia. (...) é um erro de prioridade; (...) de princípio e, por isso, de perspectiva”.9 Defende que o pobre possa ser um princípio da teologia ou mesmo um enfoque, mas sempre na linha de sua argumentação metodológica, isto é, como princípio segundo e, por isso mesmo, relativo.
Sua inquietação está no que ele chama de instrumentalização possível, tendo em vista que, com a inversão acima denunciada, a fé poderia ser – além de reduzida e politizada – instrumentalizada de forma ideológica, decaindo sua alteridade transcendente para o nível na imanência política.10
1.2. As consequências daí nascedouras
Uma primeira consequência que Clodovis encontra ao se deparar com a ambiguidade e a inversão de primado é a falta de clareza sobre o próprio
5 Observe-se que no texto original a expressão tema fundamental está em destaque com o recurso itálico. Não é sem pretensão. Na própria tese de doutorado, publicada pelas Vozes e no famoso Teoria do Método Teológico, Clodovis ao apresentar sua concepção de método em Teologia, apresenta a distinção de uma Teologia primeira (T1) e uma Teologia segunda (T2) (o assunto retornará mais a frente). Aquela seria a teologia em si, com suas preocupações clássicas, puras. A segunda seria o espaço, com as mediações necessárias, para uma teologia do genitivo, derivada. Por isso, sempre dependente da primeira.
6 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1002.
7 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1003.
8 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1003.
9 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1004.
10 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1005.
discurso, pois segundo ele não há uma nitidez sobre o princípio de constituição teológica. A convicção para tanto se encontra ao se tratar do ponto de partida tanto da Teologia quanto da pastoral, pois ainda para ele, não há clareza acerca da natureza material e formal deste ponto de partida, porque este tanto pode ser expresso no sentido de começo (seria sua dimensão material), quanto no de princípio (dimensão formal, hermenêutica). Para C. Boff, seguindo sua linha metodológica, pobre “pode ser ‘ponto de partida’ como ‘começo’ (começo de conversa), mas não como ‘princípio’ (critério determinante)”, o que seria uma falha mortal, pois mataria a própria TdL.11
Ademais, para além desta consequência primeira, Clodovis diz que partindo da inversão, chega-se a um enfraquecimento ou esvaziamento da identidade cristã, em pelo menos três níveis: Teológico; Eclesial e de Fé. No nível teológico, haveria uma substituição do seu caráter, por um mais religioso-pastoral, com tom sociológico e político; na dimensão eclesial, ele chega a dizer que a Igreja se onguiza, pois o que ele chama de pastoral da libertação se torna mais um braço do movimento popular; por fim, no plano da fé, afirma que esta vai se reduzindo até o desaparecimento absoluto, justamente por ter se tornado ideologia mobilizadora, ou, noutras palavras “uma hermenêutica cristã da existência humana”.12
1.3. Do fundamentum ao pobre: as causas da inversão epistemológica
Antes de qualquer avanço, Clodovis justifica o porquê destas inversões que causaram, em seu ponto de vista, tamanhos equívocos e graves consequências: parte, sem mais, daquilo que ele nomeia como descaso epistemológico, devido ao assombro da Igreja ao se encontrar de modo chocante com a pobreza: “‘a irrupção do pobre’ na Igreja abalou de tal modo a teologia que esta balançou realmente em seus próprios fundamentos. Ocorreu então um caso de hísteron próteron epistemológico: o depois veio antes”.13 Em seguida, fala de algo mais amplo, que seria uma cessão ao espírito da modernidade, que promoveu em todos os níveis a tão famigerada revolução copernicana (colocando o homem no centro, no lugar de Deus).
C. Boff coloca também a TdL na esteira da tradição moderna da teologia cristã, desde o protestantismo com Schleiermacher e a “teologia liberal”, passando pela reprimenda de Pio X com sua Pascendi, contra o movimento modernista, e o que posteriormente foi chamado de “virada antropológica” de
11 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1007.
12 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1007.
13 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1008.
K. Rahner. Esta modernização da teologia, provocou, antes de tudo, segundo o teólogo em análise, uma antropologização. Nesse sentido, indo mais fundo, diz que a TdL não colocou apenas o homem como o centro ou medida de todas as coisas, mas o homem pobre, assim, não se tratava simplesmente de uma antropologia, mas de um antropocentrismo da libertação.14
Por fim, chama a atenção para algo que ele intitula como “irrupção do mundo no espaço eclesial” (assim como aconteceu a irrupção dos pobres no espaço da teologia latino-americana), que seria a consequência da reação que a modernidade teve diante do totalitarismo teológico da cristandade, com todo seu arcabouço epistemológico de viés extremista (sobrenaturalismo, divinismo, fundamentalismo, integrismo...).15
2. A reação de Susin, Hammes e seus companheiros teólogos
Logo no resumo que serve de preâmbulo do primeiro artigo em resposta a Clodovis, Susin-Hammes16 sustentam que o pobre não é apenas uma decorrência cristológica, mas antes um “lugar teológico” privilegiado para compreender o Cristo. Dizem que é, também, seu teste de veracidade.17 Organizam o texto, segundo nossa leitura, em três tópicos que aqui serão traduzidos em: a fé como intellectus amoris, a circularidade hermenêutica frente a epistemologia linear e a questão do pobre como lugar teológico.
2.1. A fé como intellectus amoris
Clodovis, em sua exposição inicial, apresenta aguçada crítica a Jon Sobrino, citando inclusive a notificação romana que questionou a cristologia do teólogo de San Salvador. Boff diz:
Jon Sobrino, por exemplo, fala dos pobres como a instância que dá a “direção fundamental” à fé e como sendo seu “lugar mais decisivo”. Com toda a evidência, estes dois qualificativos “fundamental” e “decisivo” são jogados aí de modo descuidado. Pois não cabem, em absoluto, aos pobres, mas sim à “fé apostólica transmitida pela Igreja”, como lembra, de modo pertinente, a “notificação” romana, questionando certos pontos
14 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1008.
15 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1011.
16 Assim os chamaremos para facilitar a leitura.
17 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 277.
da cristologia do referido teólogo (n.2). Pode-se, no máximo, adivinhar e talvez justificar o que quer dizer Sobrino com aquelas expressões.18
Susin-Hammes, entrementes, dizem que não adianta fazer um corte na teologia de Sobrino sem considerar sua forma completa e estrutural.19 O embate aqui está colocado a respeito da compreensão do princípio epistemológico da fé e, por conseguinte, do processo de Revelação. Clodovis reafirma em seu texto que o intellectus fidei, voltado para o Evento da Revelação é ato de acolhimento-compreensão da própria Revelação – sendo, pois, princípio deste edifício epistemológico. Aqui está, também, segundo a leitura que este corpo de teólogos faz, o embate com Sobrino, para quem essa excelência pertence ao que ele chama de intellectus amoris ou intellectus justitiae, intellectus gratie, intellectus misericordiae, que desembocará no “princípio misericórdia” da existência e de uma teologia puramente cristã.20 Sobrino acrescenta a dimensão de práxis que é atestada de modo recorrente na Escritura e é, segundo interpretação deles, fundamental na construção epistemológica daquele edifício teológico bíblico e cristão.
Para Clodovis, a revelação e a fé se manifestam em linguagem. Para os debatedores, à luz da tradição bíblica relida por Gutiérrez e também por Sobrino, a partir da parábola do bom samaritano, o fundamento que pulula aqui é o da compaixão-misericórdia. Neste sentido, chegam a afirmar que “na medida em que a fé está orientada à salvação, pode dizer-se que aqui o princípio lógico e grande da salvação está ‘dentro’, não ‘acima’ do princípio existencial e humilde da compaixão e libertação”.21 Isto proporcionaria uma espécie de circularidade entre a salvação e a libertação, uma interpenetração entre o princípio fé e a misericórdia/amor/compaixão: “a transcendência redime a imanência, sim, mas não pela sublimação acima da imanência, e sim, por dentro da imanência”. Ou, noutro dizer, seguindo a lógica exposta e inspirada na parábola já exposta, “para se obter realmente a salvação, é preciso mais que ‘apenas’ a salvação: é preciso – digamo-lo sem medo – libertação!”.22
Em síntese, os autores justificam o não desvio da TdL partindo da convicção de que a verdade, biblicamente falando, é, antes de qualquer coisa, amor. A fé seria, assim, este amor em ato, e entender a teologia como intellectus amoris garantiria sua integridade e não seu equívoco.
18 BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1002.
19 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 279.
20 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 282.
21 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 283.
22 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 283.
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2.2. A circularidade hermenêutica frente a epistemologia linear
Outra questão levantada é sobre a hermenêutica teológica. Susin-Hammes acusam Clodovis de priorizar apaixonadamente o “único fundamento” que dá identidade cristã à teologia. Contudo, argumentam eles que o próprio Cristo, Deus encarnado, “se dá com uma pluralidade de acessos e, uma vez encontrado, remete para além de si: Cristo é encruzilhada, chegada de muitos caminhos e partida para muitas presenças: o Pai, o Espírito, os irmãos, a comunidade, as criaturas, o vasto mundo”.23 Numa palavra, a presença de Cristo é sempre remetida a alteridades, o que provoca no ser humano uma complexa dialética circular entre todos estes elementos. Os teólogos trazem para a discussão a simbologia da pericorese trinitária e apresentam o papel de Cristo nesta relação multiforme com as outras Pessoas de Deus, deixando em relevo a relação ampla que nasce da unidade que é cada vez mais plural. Sendo assim, concluem que “a pericorese é uma boa imagem do círculo hermenêutico da teologia cristã”.24
Assumem, de modo contrário a Clodovis, que interpreta (na lógica dos teólogos) sempre de modo linear a presente questão, a perspectiva do círculo hermenêutico que, por um lado, tem algumas vantagens sem, para isto, reduzir-se a uma dialética de pólos simétricos ou a um dualismo. Uma destas vantagens é que se pode partir de qualquer ponto e chegar bem a outro ponto, sem prejuízos. Exemplo disto é a Teologia trinitária e explicam: “o primeiro lógico é o Pai, mas historicamente e existencialmente é o Filho que revelou, desde sua humanidade, quem seja realmente Deus Trindade”; “assim também quanto à condição humana e divina de Cristo, e quanto aos diversos lugares teológicos em que se revela”; e, seguindo a argumentação bíblica de Christian Duquoc: “em primeiro lugar não se deve perguntar pela essência de Deus, mas pelo lugar desde onde ele se revela. Assim, pode-se partir de Cristo para chegar ao pobre” e vice-versa.25 Por outro lado, reconhecem possíveis riscos. Estes riscos são vistos a partir de uma afirmação feita por Clodovis de que de Cristo sempre se chega ao pobre, mas do pobre nem sempre se chega a Cristo. Os autores explicam tais riscos:
Se não se chega a um ponto é porque não se compreendeu bem também o outro, e isso vale para ambos: uma má compreensão de Cristo não leva necessariamente para o pobre – e temos exemplos constrangedores – enquanto uma compreensão real do pobre na perspectiva prática significa
23 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 285.
24 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 285.
25 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 286.
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o encontro com Cristo, mesmo se teoricamente ainda não seja conhecido.26
Ao se assumir esta opção hermenêutica, contrária àquela de cunho mais aristotélico e escolástico, percebe-se sua inspiração na simbologia da rede e da teia. Em ambas não há um centro ou fundamento sobre os quais os demais pontos se solidificam, antes, na verdade, há o que os autores chamam de centros descentrados27 o que evoca sempre a imagem de um Deus altruísta, não narcisista e que não tem sede de aplausos. Aí está também a categoria circular de Reino que inclui Deus e, além dele, toda a criação, com suas belezas e sofrimentos. Contudo, afirmam: “tudo o que é recíproco, redondo, com a complexidade da multirreferencialidade, incomoda uma construção analítica com lógica marcadamente linear, com um primeiro, um segundo”.28
Os autores, na contramão daquilo que Clodovis chama de enfoque ou ótica, preferem falar em lugares teológicos “reais, vivos, de carne e rosto”,29 que se tornam, eles mesmos, óticas. À luz de Melchior Cano, questionam Clodovis sobre sua posição rígida na interpretação daquilo que são os loci theologici e propõem a abertura para novos possíveis lugares teológicos que possam surgir. Assim, embasados na teoria hermenêutica do século XX, percebem que o lugar, tomado agora com mais evidência, abrange o tempo, a cultura e os eventos como experiências vivas, que dialogam permanentemente com os textos.
2.3. O pobre como lugar teológico
A discussão chega a este tema tão polemizado. Susin-Hammes afirmam, sem mais, que cabe à teologia a perigosa ousadia de assumir “‘o ponto de vista de Deus’ e nomear as preferências de hoje”. Se isto não acontece, dizem eles, há a verdadeira ambiguidade e um profundo deslocamento para outros lugares: “o lugar da ordem, do poder, da sacralização da instituição e da lei, que levará para uma paganização e uma idolatrização do Deus vivo, petrificando-o”. Mais do que isto, de forma enfática, concluem: “é o lugar do pobre, de carne e osso, lugar de uma alteridade ao mesmo tempo incontornável e irredutível, que se mantém a reserva de transcendência e mistério”.30
26 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 286.
27 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 286.
28 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 287.
29 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 291.
30 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 293.
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Continuam as justificativas na linha da preferência pelos pobres: estes deveriam ocupar o lugar da Igreja e não de Cristo, por isto tanto se falou numa Igreja descentrada; que sua preferência não se dá por serem virtuosos ou santos, mas porque “‘o lugar teológico do pobre’, lugar cristãmente privilegiado, está intrinsecamente conectado com o pobre como ‘sujeito eclesial’”. Por fim, reafirmam:
Parece-nos justo e apropriado reafirmar, depois de tudo, que o pobre não está no lugar de Cristo ou de Deus como um substitutivo, mas que Cristo – Deus mesmo – se encontra privilegiadamente no lugar do pobre. Isso não é só regime de urgência, é regime de excelência sub specie contrarii: escândalo e loucura, ruptura epistemológica, sabedoria e teologia verdadeiramente cristã, glória não narcisista de Deus.31
3. Comunicado de Leonardo Boff
O irmão de Clodovis, Leonardo Boff, apresenta um comunicado na REB de julho de 2008 e o intitula quase com um grito de protesto: “Pelos pobres contra a estreiteza do método”. Fazemos a leitura deste texto em três partes: recuos em relação à TdL; a quem interessam às críticas? E, por fim, as três ausências (no texto de Clodovis).
3.1. Recuos em relação à Teologia da Libertação
Ao introduzir a questão, Leonardo, por um lado, reconhece a biografia abnegada de Clodovis, por outro, destaca alguns recuos em sua atividade e reflexão e vê no seu texto traços claros que justificam sua percepção. São três, no dizer de L. Boff, os recuos: um pessimismo cultural, quando aborda a temática da modernidade (e que isto também estaria presente em setores mais importantes do Vaticano); um otimismo ingênuo em relação ao texto de Aparecida, além de um entusiasmo juvenil32 e, por fim, um recuo que provoca em Leonardo, perplexidade e perturbação.33
31 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 296.
32 É fundamental não esquecer que a edição da REB na qual Clodovis escreve o primeiro artigo desta série de discussão, versa sobre a recém acontecida, naquele contexto, Conferência de Aparecida. Também Susin-Hammes criticam Aparecida, criticando Clodovis: “No documento de Aparecida, a opção preferencial pelos pobres e excluídos foi parar na terceira parte, na promoção da dignidade humana (8.3). É tão forte a impressão de que se trata de destinatários da missão da Igreja...” (SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 294).
33 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 701.
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Sobre a modernidade, Leonardo diz que seria um erro contra o Espírito Santo achar que os modernos só tiveram pensamentos equivocados; sobre a leitura do documento de Aparecida, afirma que Clodovis não se deu conta do “esquematismo e do ahistoricismo da cristologia e da eclesiologia, tão bem apontadas por José Comblin, neste mesmo número da REB” (p. 875-880); em suma, falando da perturbação provocada, assegura: “a maioria dos teólogos da libertação que conheço não se sentiriam aí representados. Ademais, o autor assume uma postura magisterial que caberia melhor a autoridades doutrinárias que a um teólogo, frater inter frateres”.34
3.2. A quem interessam as críticas?
L. Boff se pergunta sobre a quem interessa o seu texto e chega a quatro suspeitas que são, de modo evidente, superiores à “polêmica intra-sistêmica da teologia”, que é, por sua vez, necessária e útil para o amadurecimento das questões.
Leonardo diz que setores eclesiásticos se sentiram bem apoiados pelas críticas incisivas de Clodovis em desfavor da TdL, sem a preocupação em fazer um balanço entre as várias e diferentes TdL, com suas práticas correspondentes.35 Na mesma linha, continua afirmando que tamanha crítica possa fornecer argumentos para aqueles setores da sociedade e da Igreja que querem condenar novamente a TdL, banindo-a do espaço eclesial.36
A posição de Clodovis, a partir da reflexão de Leonardo, agrada também aos ouvidos daqueles que, distanciados do mundo e das dores dos pobres, abominam esta teologia, reforçando, nestes, o intento de verem a TdL morta ou proibida de ser estudada, bem como referenciada na prática pastoral com os pobres e marginalizados.37 Por último, L. Boff também pontua que a crítica de C. Boff afaga aos que condenaram “Jon Sobrino, a Gustavo Gutiérrez, a Ivone Gebara, a Marcelo Barros, a José Maria Vigil, a Juan José Tamayo, a Castillo, a Depuis e a Küng”, e acrescenta: “lhe dirão satisfeitos e com peito inflado de fervor doutrinário: ‘Bravo, irmão. Enfim alguém teve a coragem de desmascarar os equívocos e os graves e fatais erros da Teologia da Libertação’!”.38
34 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 701-702.
35 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 702.
36 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 702.
37 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 703.
38 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 703.
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3.3. Três ausências
Leonardo Boff encerra o comunicado apontando a ausência de três aspectos teológicos no texto de Clodovis, a saber: uma Teologia da encarnação; o sentido do pobre dado pela TdL; e uma Teologia do Espírito Santo.
Sobre a encarnação, após longa referência que lhe justifica bíblica e dogmaticamente, afirma que a preocupação pelos pobres pertence à essência do Evangelho e que, portanto, estes não podem ser apenas um tema, ainda que fundamental da Teologia. “Nem é ‘apenas princípio segundo e prioridade relativa’, como afirma a (REB 1004). O pobre pertence à substância do Evangelho e à essência da mensagem e do legado de Jesus. Dizer o contrário é colocar-se fora da sagrada herança de Jesus e dos Apóstolos”.39 Retoma, outrossim, tal qual Susin-Hammes, a questão do lugar teológico:
O lugar do pobre é um lugar (há outros) privilegiado de encontro com o Senhor. Quem encontra o pobre, encontra infalivelmente a Cristo, na forma ainda crucificada, pedindo para ser baixado da cruz e ser ressuscitado. É falsa, por causa da fé na encarnação, a segunda parte da seguinte afirmação: “o princípio-Cristo inclui sempre o pobre, sem que o princípio-pobre inclua necessariamente Cristo” (REB 1012). Dizer que o pobre não inclui necessariamente o Cristo é desdizer o que o Juiz supremo diz. Desde que o Filho se fez homem e homem pobre, o lugar do pobre é lugar de Cristo e vice-versa. Desde que Deus por Jesus se fez pobre, o pobre foi estatuído em princípio-operativo da libertação.40
Deste modo, conclui Leonardo, é necessário superar as categorias gregas e pagãs da imanência e transcendência, por outra, de viés mais cristão: a transparência,41 deste modo, por meio desta transparência, a transcendência participa da imanência e vice-versa.
Há uma ausência do sentido de pobre que a TdL sempre realçou: não apenas o pobre no sentido economicista, mas a partir de uma espiritualidade que o vê como transparência do Encarnado-Crucificado. L. Boff recorda, a partir da cristologia da libertação, que, aí, pobre e Cristo são vistos e pensados juntos por causa do mistério da encarnação. Já no texto de Clodovis, segundo Leonardo, há uma ruptura: por um lado estaria Cristo e seu primado epistemológico, como princípio primeiro e, de outro, o pobre como princípio
39 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 705.
40 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 706.
41 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 707.
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segundo e prioridade relativa. Para o crítico, esta divisão entre teologia primeira e segunda não encontra sustentação na tradição teológica da Igreja.42
Por fim, L. Boff diz sentir a ausência de uma Teologia do Espírito Santo. Segundo ele, seu irmão se centrou em demasia na figura do Cristo (e de um Cristo sárquico). Acusa Clodovis de cristomonista e de que ele teria esquecido as Pessoas do Pai e do Espírito: “esta ‘ditadura’ de Cristo em sua teologia o aproxima, em algumas passagens, ao fundamentalismo (REB 1013)”.43 Acrescenta, ainda, que quem não inclui o Espírito na cristologia não está falando do Cristo total. Isto acarreta uma prisão nos sistemas fechados da teologia que não consegue incluir no Jesus histórico sua dimensão cósmica, advinda da encarnação e ressurreição. Mais do que isto, recorda que é justamente o Espírito quem supera o sufoco do peso institucional e areja continuamente a Igreja, anima a teologia a ser mais criativa e a superar o seu engessamento em tradições e doutrinas que, segundo ele, são codificadas.44
4. Apreciação crítica de Francisco de Aquino Jr.
Como explicado na nota n. 2 deste artigo, Aquino Jr. divide seu artigo em duas partes: na primeira, expõe aquilo que ele chama de fases para a compreensão do pensamento de Clodovis acerca da TdL e, no segundo momento, apresenta sua apreciação crítica sobre o texto que tem servido de pano de fundo para esta discussão, indicando cinco questões que, em seu modo de ver, isto é, segundo um ponto de vista epistemológico, não estão adequadamente formuladas ou parecem problemáticas. Eis seus apontamentos críticos:
4.1 Aquino identifica que a partir da tese doutoral de C. Boff (onde pretende explicitar de forma crítica e sistemática os princípios teóricos da TdL), ele é, até a fase atual, determinado pelo pressuposto de que a libertação é um tema da teologia e a TdL, uma teologia do genitivo. Isto teria provocado um engessamento e um consequente empobrecimento de sua teologia, impedindo-a/tolhendo-a de suas capacidades;45
4.2 A questão não está solucionada, segundo Aquino, dizendo apenas que “a perspectiva do pobre” ou a “libertação” é constitutiva da totalidade da teologia ou da “teologia cristã” se, na prática metodológica, ela
42 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 707.
43 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 708.
44 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 708.
45 AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 609.
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está destinada ao “segundo momento”, como se o “primeiro momento” não tivesse que ser conformado por ela;46
4.3 A. Jr chega ao núcleo do assunto justificando que não pode haver, isto na perspectiva da revelação, primeiro uma manifestação de Deus e depois uma opção pelos pobres, como se o discurso de Deus (em si) tornasse secundária sua parcialidade pelos pobres. Antes, argumenta que o Deus bíblico se dá a conhecer como o Deus dos pobres e dos oprimidos e, haja vista que não há outra forma de conhecê-lo, senão como ele mesmo se nos deu, não se pode prescindir de sua parcialidade nem para falar a ele (âmbito da experiência), nem para falar dele (teologia);47
4.4 Aquino reconhece uma coerência no discurso de C. Boff, a partir de sua tese doutoral, sobretudo quando este privilegia a fides quae como princípio determinante da teologia. Isto assegura a distinção que o próprio Boff já fizera entre “ordem da existência e ordem da inteligência” ou entre “vida e pensamento” ou, como conclui Aquino, entre “linguagem e realidade”. Embora haja continuidade no pensamento de Boff, há dois problemas levantados: um é que esta postura parece não dar conta da mediação/vinculação prática de toda linguagem e, depois, porque se há distinção entre estas realidades, aquela não conseguiria dizer nada sobre esta, nem mesmo de suas distinções;48
4.5 Olhando para a teologia de Jon Sobrino e das críticas de C. Boff, Aquino contra-argumenta em quatro pontos:49 a) Sobrino não pretende substituir a teologia clássica por seu intellectus amoris, mas se questiona o porquê de a teologia ter que ser, apenas, intellectus fidei; b) quando Sobrino fala sobre intellectus fidei não se resume à fé, mas a formulação dogmática da mesma, cabendo à própria teologia o aprofundamento e seu sentido; c) o intellectus amoris para Sobrino, não é – como na interpretação de C. Boff – uma contraposição entre amor antropológico e amor de Deus, mas uma questão sobre o conteúdo da Revelação e da própria fé que é o amor; e d) para Aquino, Sobrino não substitui em sua Cristologia a fé apostólica pelos pobres. Antes, ele (a) a partir da compreensão de Ellacuría faz uma distinção entre as fontes e o lugar da cristologia da libertação e (b) distingue o lugar eclesial do lugar social da cristologia.
46 AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 609-610.
47 AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 610-611.
48 AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 611-612.
49 AQUINO JR., F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 612-613.
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5. A réplica de Clodovis Boff: volta ao fundamento
Clodovis Boff escreve uma réplica aos artigos que nasceram confrontando o seu próprio texto, em outubro de 2008. Aí ele afirma que não rompeu com a causa de fundo da TdL, contudo se afasta da corrente dominante: “Se mudei de posição? Em absoluto! Sempre defendi, sem solução de continuidade, uma TdL assentada, sem equívocos, no fundamento cristológico”.50 Tal resposta está dividida em três partes: o fundamento da teologia é e só pode ser Cristo e não outro, mesmo o pobre; a ambiguidade da TdL que ainda permanece e a tentativa de repropor à TdL o fundamento da fé. Pelo grande volume deste novo artigo e sem pretender encerrar a questão, nossa proposta é apresentar algumas respostas que ele dá às críticas pontuais tanto de Susin-Hammes, como de L. Boff e Aquino Jr.51
A tese basilar de Clodovis é que há, na maioria dos casos,52 ambiguidade nos fundamentos e que esta leva à inversão dos polos (no caso, o pobre se tornaria princípio), o que permitiria uma ideologização/instrumentalização da questão cristológica.
Respostas a Susin-Hammes
Contra a afirmação de Susin-Hammes sobre a diversidade de mediações do princípio-Cristo,53 C. Boff reafirma com ênfase que o princípio determinante da teologia não pode não ser exclusivamente a fé em Cristo, “A opção pelo pobre e por sua libertação vem em seguida e pode mesmo ser um princípio segundo, tão privilegiado quanto se queira, mas não o princípio primeiro ou determinante”.54 Por fim, conclui: “a TdL é uma teologia subordinada e, por isso, também limitada. Mesmo como ‘ótica’, a sua é sempre uma ‘ótica’ particular: a do pobre, e não de tudo na teologia. Só a ‘ótica de Deus’ ou ‘da fé’ é absolutamente total”.55 Esta defesa de Clodovis não pode se enquadrar, segundo ele, dentro da lógica linear da qual o acusa a dupla de teólogos
50 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 893.
51 Não há uma ordem nas respostas de Clodovis. Ele, na medida em que elabora seu texto, coloca as questões seguindo um critério que não coincide com a sequência em que as críticas foram levantadas.
52 No artigo de réplica ele diz que esta ambiguidade se dá na maioria dos casos (da TdL) (BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 895), no primeiro artigo ele generaliza e diz que há ambiguidades (BOFF, C., Teologia da libertação e volta ao fundamento, p. 1002), sem mais.
53 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 280.
54 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 896.
55 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 897.
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gaúchos. Optar por uma ordem do discurso, argumenta Boff, é uma consequência da coerência da própria vida e do bom senso.56
Quando Susin-Hammes acusam C. Boff de se centrar em uma teologia abstrata, por causa da discussão sobre o fundamento,57 Clodovis contra-argumenta que Cristo é, assim como os pobres, de carne e osso e não um príncipe que reivindica a si serviços de súditos.58 Tais teólogos, em sua crítica, põem como princípio da teologia essa unidade: Cristo-pobre, justapondo-os, como princípio teológico. Sabendo Boff que os teólogos não simpatizam com a afirmação dos dois momentos, mas que tudo tem que vir junto, afirma:
(Susin-Hammes) apela para termos refinados como “dialética”, “círculo hermenêutico” e “pericórese”, dizendo que não importa se o princípio compete a Cristo ou a pobre, podendo ser ora esse, ora aquele (p. 284-290). Mas, mesmo aí, não se pensa o modo dessa “dialética”: se tem um polo dominante e qual. Também não se diz como “entrar” no “círculo hermenêutico”, como receita Heidegger. Daí que “dialética”, “pericórese” e “círculo” passam a gerar discursos que giram como rodas no ar. Nesses discursos não se vê hierarquia entre os termos a se articular.59
Ainda sobre a primazia do pobre, C. Boff diz que Susin-Hammes “argumentam, misturando sempre metodologia e teologia, que, uma vez que Deus se fez pobre, o pobre ocupa o centro: ele é o princípio”. Mas não percebem, segue Boff, que com esta argumentação “o nexo Deus-pobre deixa de ser da ordem da graça (o indevido), para se tornar da ordem da natureza (o devido), transformando, sem perceber, a livre iniciativa de Deus em algo de metafísico e de pseudo-dogmático”.60 Conclui, dizendo: “a pericórese Jesus-pobre não se dá por necessidade metafísica, mas por livre e amorosa decisão de Deus, enquanto condescendente com o último”.61 Mais ainda: diante do que Susin-Hammes pontuaram, de que Deus não é narcisista e, por isso, honra o pobre,62 Clodovis lembra que se Deus honra o pobre, não o faz por não-narcisismo, mas por sua capacidade de amar em superabundância.63
56 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 895.
57 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 291.
58 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 900.
59 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 911.
60 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 911.
61 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 911.
62 SUSIN, L. C.; HAMMES, E. J., A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos, p. 287-288.
63 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 912.
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Os TdL, enquanto consideram os pobres uma mediação incontornável para Deus, cometem dois erros simétricos, igualmente fatais: de um lado, absolutizam o pobre, como se a relação Deus-pobres não fosse livre; e, do outro, desabsolutizam o Absoluto, como se Ele estivesse sempre condicionado ao pobre.64
Respostas a Leonardo Boff
Leonardo Boff em sua comunicação, embora muito breve, apresenta críticas contundentes e bem inflamadas a seu irmão. Dentre elas, uma das primeiras respondidas por Clodovis, está a das ausências (que foram expostas por nós), sobretudo no que tange à encarnação e à pneumatologia.65 Clodovis assim responde: “o foco [de seu artigo primeiro] não era a doutrina teológica, mas o fundamento da teologia. Era, portanto, uma questão de metodologia e não de ciência teológica”.66 E a partir disso desenvolve o seu argumento tratando da importância do fundamento. Para isto cita Tomás de Aquino, para quem, antes da ciência, o que deve ser estudado é o método.67
Clodovis pontua que “a questão do fundamento não é uma questão qualquer, mas é a questio magna do método, a conditio sine qua non de qualquer teologia”. E mais: “a questão do princípio é a das ‘mais importantes’. A razão é simples: do princípio depende tudo. Assim, se o primeiro passo é dado na direção correta, pode-se esperar chegar ao destino”,68 e o contrário também é verdadeiro. Nessa mesma linha, C. Boff responde à crítica de Leonardo que o acusou de cristomonista.69 “Trata-se, antes, do mais puro e decidido ‘cristocentrismo’, na medida em que Cristo, centro do mistério cristão, não é tudo, mas pode integrar tudo, desde a Trindade até o pobre”.70
Sobre esta questão do primado absoluto de Cristo, Clodovis atenta para o fato de que o princípio-Cristo é, na verdade, um primado pré-teológico e não uma tese teológica: “Isso é dogma, não theologoúmenon”.71 Esta insistência em reafirmar Cristo como fundamento faz com que, também Clodovis, acuse o
64 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 913.
65 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 704-708.
66 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 894.
67 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 894.
68 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 894.
69 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 708.
70 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 897.
71 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 897.
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irmão: se de um lado Leonardo o chama de cristomonista, de outro lado, quando debatem sobre a espiritualidade, Clodovis o acusa de gnóstico:
É verdade que, na “conclusão” de sua crítica, Leonardo se refere, de modo pertinente, à necessidade de uma “espiritualidade” que anime toda obra da libertação para que esta tenha qualidade evangélica (p. 709-710). Fala-se, todavia, aí de modo abstrato e vaporoso. A espiritualidade aí proposta tem pouco a ver com o Espírito Santo, e a “Luz Santa” que aí se invoca, em termos hegelianos, não remete à luz de Cristo, mas, antes, à gnose”.72
Na linha da ambiguidade suscitada pelos críticos, Clodovis rebate a questão de Leonardo que segue o esquema: “pobres, porque Cristo”,73 segundo o qual o pobre seria princípio ou fundamento porque Cristo, através da encarnação, teria se identificado com ele. E aí Clodovis apresenta uma suposta contradição de Leonardo: “Não vê que, se o pobre vale ‘porque Cristo...’, então Cristo é o fundante, e o pobre, o fundado”.74 Para isto conclui dizendo que Cristo, e somente ele, é a cláusula de validação do pobre e não pode ser o contrário.75
Leonardo busca argumento no dogma de Calcedônia, afirmando que com a encarnação, Cristo deixa sua transcendência.76 E Clodovis, de modo muito firme, observa que Leonardo quebrou o célebre equilíbrio do Concílio que prega “uma união sem confusão”: “dir-se-á, então, que na encarnação o Verbo ‘virou’ carne (e não que a assumiu) – erro que o mesmo Concílio taxou de ‘tolo’ (anóetos: DH 300a). Mas é exatamente nesse erro, cheirando à heresia, que caiu Leonardo”.77
A discussão segue uma linha mais hermenêutica, quando se trata da interpretação de Santo Tomás de Aquino: se Leonardo se apoia em Tomás para dizer que, segundo o Doutor Angélico, a teologia é o pensar sobre Deus e sobre todas as coisas à luz de Deus,78 Clodovis rebate, também com Tomás, dizendo: “Sto Tomás diz exatamente o contrário: ‘A Sagrada Doutrina não trata de Deus e das criaturas por igual (non... ex aequo), mas de Deus principalmente e das criaturas enquanto se referem a Deus”.79
72 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 900.
73 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 704.
74 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 908.
75 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 909.
76 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 704.
77 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 909.
78 BOFF, L., Pelos pobres contra a estreiteza do método, p. 708.
79 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 909.
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Respostas a Aquino Jr.
O Teólogo Aquino Jr. lança a hipótese de que o enfoque segundo poderia interferir na positividade da fé, produzindo algo de constitutivo no enfoque primeiro e não somente de consecutivo.80 A isto segue a argumentação de Clodovis, para quem a interferência do enfoque segundo não tem o poder de acrescentar algo de substancial. Antes, exerce dois efeitos cognitivos, a saber: explicitar e confirmar o que já é dado, isto no intuito de desenvolver as virtualidades internas da fé, à luz da evolução do próprio dogma.81
Aquino, por sua vez, acha problemático afirmar que a fides quae seja princípio determinante da teologia, à exclusão da prática libertadora, tendo em vista que a prática seria parte constitutiva daquela, havendo, assim, uma circularidade.82 Clodovis, numa espécie de autocrítica, reconhece que não há clareza em sua argumentação ou que precisa ser melhor analisada.
De um lado, sustenta que a determinação última é a fé-palavra, entendida como Palavra de Deus (a fé eclesial que está à jusante de tal Palavra pode também estar à montante da experiência da fé e da práxis cristã). De outro lado, quanto à dimensão práxica, afirma que se há uma práxis constitutiva da fé, esta não pode ser a nossa, mas a práxis de Deus – entendida como o agir de Deus na história. Conclui, desta feita, dizendo: “portanto, mantenho, como sempre, a determinação suprema da Palavra da fé sobre qualquer outra instância, por mais privilegiada que seja, como a dos pobres e da prática libertadora”.83
Por fim, ao apresentar sua parte mais propositiva com seis tópicos que ensaiam uma volta ao fundamento – renovar a TdL, partindo de Cristo, para melhor servir ao pobres (p. 919); enriquecer qualitativamente a ideia de pobre (p. 920); necessidade de tematizar o humano para articular Cristo e pobre (p. 921); a atual TdL corre o risco de ficar superada (p. 923); refundar a TdL sobre o Cristo da fé, fundamento perene de toda a teologia (p. 924); e, por fim, a apresentação dos dois modelos da TdL: açúcar em torrão (entendido como a forma atual da TdL, com suas ambiguidades de base) e açúcar diluído (entendido como modelo dimensional, onde se trata de qualquer tema teológico em dimensão libertadora) – Clodovis acrescenta, reforçando a mesma observação que já fizera Aquino Jr., que há alguns anos vem se debruçando sobre uma nova colocação epistemológica da TdL: “Se essa TdL pode-se
80 AQUINO JR. F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 606-607; 609-611.
81 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 901.
82 AQUINO JR. F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 611-612.
83 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 902.
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chamar de ‘nova’ não é em referência ao seu fundamento, que é sempre antigo, mas apenas em relação à forma dominante de TdL”.84
Conclusão
As considerações aqui apresentadas seguem em três perspectivas: a importância de um debate teológico, neste nível, na teologia brasileira; a reação inflamada dos teólogos contra a argumentação de Clodovis e, por fim, a sua insistência em dizer que seu pensamento não mudou.
A discussão, com a qualidade de disputatio, possibilita um crescimento sem precedentes para a pesquisa teológica. Isso porque há uma consciência de maturidade sobre o que é afirmado: aquilo que é dito, nem sempre é aceito, simplesmente. Assim como na filosofia antiga, o conhecimento é gerado exatamente pela capacidade da refutação e do debate sadio. Longe de polêmicas, cada argumento e seus contra-argumentos levaram esta página da história a uma redescoberta da importância do fundamento. De um lado ou de outro, o ponto nevrálgico está naquilo que é princípio, primeiro, ponto de partida. Francys S. Adão reconhece a qualidade e a importância do presente debate que transcende às respostas ou discussões meramente magisteriais: “é justamente este exercício que permite a emergência de sensibilidades distintas e de legítimas respostas variadas para uma problemática comum (como vimos neste debate, um tanto tardio, sobre os ‘fundamentos’ da TdL)”.85
Quando esta discussão não é levada a sério, todo o edifício teológico (ou científico, em linhas gerais) é posto em descrédito. Assim, independente das posições epistemológicas, o que fica claro é que não se pode relativizar este tema, correndo o risco de tratar o problema de modo não profundo, artificial e mesmo superficial.
Em certo sentido, os teólogos estranharam a tomada de decisão de Clodovis em criticar a teologia que ele mesmo tanto contribuiu para sua elaboração. Entrementes, os argumentos fugiram todos, com exceção de Aquino Jr., de fazer uma leitura completa da obra de C. Boff. De tal forma que, para Aquino, há uma coerência no discurso de Boff, a partir de sua tese doutoral.86 Atrelado a isto, o próprio C. Boff insiste que seu pensamento traz coerência interna, que não sofreu alteração e agradece aos debatedores: “quero, enfim, dizer que minha réplica não
84 BOFF, C., Volta ao fundamento, p. 925.
85 ADÃO, F. S., Nossa parte da herança, p. 296.
86 AQUINO JR. F., Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação, p. 611.
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tem, finalmente, outra pretensão senão a de contribuir para o proveito dos pobres, a confusão do Diabo e ad maiorem Dei gloriam!”.87
Por fim, é mister pontuar a partir do debate que não convém que se perca nas poeiras das bibliotecas e da história a necessidade de discutir o método, antes do conteúdo científico. Da mesma forma é de suma importância proporcionar a antítese crítica, capaz de gerar novas sínteses e reflexões e, de forma madura, perceber que a ciência (mesmo teológica, de cunho bastante dogmático) pode e deve ser posta em questão, para que haja firmeza de argumento e clareza de reflexão.
Referências bibliográficas
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Pedro Igor Leite
Mestre em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco
Docente da Escola de Educação e Humanidades da Universidade
Católica de Pernambuco
Olinda / PE – Brasil E-mail: pedro.igor@unicap.br
Recebido em: 05/01/2021
Aprovado em:13/04/2022
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