O doutor em História Social João Klug diz que o neonazismo é “o velho nazismo acondicionado em uma nova sociedade e aplicado em grupos de extrema direita”
Por Fernanda Pessoa
5 maio 2023, 9h13
Em 2020, uma das maiores especialistas em neonazismo no Brasil, a pesquisadora Adriana Dias, identificou 69 células neonazistas de três a quarenta pessoas em Santa Catarina. O estado só fica atrás de São Paulo, onde foram mapeados 99 grupos. Porém, a população catarinense é ao menos seis vezes menor que a paulista, o que faz de SC, em termos de proporcionalidade, o lugar com maior presença desses grupos. Em outubro de 2022, a prisão de um grupo de jovens acusados de neonazismo ganhou destaque nacional, alguns deles eram estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que está implementando medidas contra discursos nazistas e racistas.
Recentemente, o aumento dos ataques violentos às escolas no Brasil reacendeu o debate sobre como combater a cultura do ódio. De 2002 a 2023, foram registrados 23 ataques, cometidos por pessoas que tinham entre 10 e 25 anos, segundo uma pesquisa realizada por Telma Vinha e Cleo Garcia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pesquisa foi difundida antes do ataque à creche de Blumenau e o ataque à escola de Goiás. O estudo aponta que o perfil de quem promove os atentados é o de homens brancos, machistas e misóginos, e as motivações partem da raiva, da vingança e do envolvimento com grupos extremistas, principalmente na internet.
Diante desse contexto, convidamos o historiador João Klug para uma entrevista sobre o nazismo e o neonazismo. Ele investiga há mais de quarenta anos, entre outros temas, a imigração alemã em Santa Catarina. Em uma das suas pesquisas, estudou como o imigrante alemão se tornou agricultor no subtrópico brasileiro, aprendendo com o caboclo, o negro e o indígena. “Esse é um assunto do qual pouco se fala, porque partem do princípio de que o alemão é o agente da civilização, ele vem de uma Europa civilizada para um Brasil onde reina a barbárie”, afirma o doutor em História Social e professor titular da UFSC. Esta ideia racista é central na ideologia nazista e neonazista, como explica em detalhes a seguir.
Catarinas: O que é o nazismo? E neonazismo? Quais as principais características?
João Klug: O nazismo é uma ideologia nacionalista, xenófoba, belicista, que começa após a Primeira Guerra Mundial. Temos que levar em conta que a Alemanha estava na lama em termos econômicos e sociais. O nazismo é essa ideologia que procurava insuflar o ânimo nacionalista, o louvor a algumas ideias onde, talvez, a questão fundamental seja o racismo. O nazismo nasceu profundamente anticomunista em um período em que a Alemanha estava tentando se refazer. Suas características são o racismo e o anticomunismo profundo. Tem uma vertente de uma pseudociência que se forma nessa época, que é a ideia de eugenia, de superioridade racial. Chamo de pseudociência porque o ponto de partida é viciado, que é a ideia do arianismo de que há uma raça superior que precisa ser valorizada, que é preciso dar todas as condições para que ela se imponha. O nazismo é basicamente essa pseudociência racial, eugênica, que tenta mostrar a superioridade da raça germânica e com isso levantar a Alemanha, que estava quebrada economicamente, com uma inflação galopante, que chegou a 23.000% ao mês.
O neonazismo mantém todas essas questões com um agravante. Ele é mais complicado, porque ele é negacionista. Ele nega, por exemplo, o Holocausto. Incorpora as ideias racistas no seu labor político, desenvolvendo ódio ao diferente, ao outro, não consegue trabalhar com a diversidade.
É tão comum você ver esses jovens neonazis empunhando alguns símbolos do antigo nazismo, mas adicionando elementos novos, como a dificuldade de dialogar com o diferente. A ideia de alteridade não está presente. Uma das questões que se evidenciam é as pessoas que se negam ao diálogo, porque não têm argumentos. Quando não há argumentos, eles falam nos punhos. É onde aparece a violência, a agressividade com os negros, com o homossexual, com o indígena, etc. Eles se dividem em vários grupos tentando mostrar uma visão supremacista branca. Eu ousaria dizer que grande parte dos neonazistas pouco conhecem o que foi o nazismo. Eles utilizam da violência, qualquer pretexto serve para eles se manifestarem de uma forma extremamente agressiva. É o velho nazismo acondicionado em uma nova sociedade e aplicado em grupos de extrema direita.
Catarinas: O que faz uma pessoa ser considerada nazista? É preciso que ela tenha consciência do que isso representa em termos históricos e políticos?
João Klug: Muitos deles não devem ser conscientes disso. Uma liderança, sim. Mas há uma parcela significativa que não pensou nisso com devida atenção, mas vê ali uma possibilidade de se impor de alguma maneira, mesmo que seja através da violência.
É assustador que esses grupos tenham crescido, principalmente nos últimos quatro/cinco anos. Eu penso que eles não se tornaram, eles já eram assim e não sabíamos ou não havia um espaço na sociedade para que eles se manifestassem. O que ocorreu em 2018 com a fatídica eleição de Bolsonaro foi que eles se sentiram estimulados.
Se olharmos em retrospectiva, quando deputado, Bolsonaro foi à tribuna e fez uma apologia ao capitão Brilhante Ustra e não aconteceu nada. Imagina o efeito pedagógico do presidente que vai à público fazendo gestos de armas, pegando crianças no colo e fazendo gestos de arma. Isso é um desastre total. É um estímulo à violência. Essas pessoas, que estavam no armário, saíram. Estamos vivenciando as consequências disso, lamentavelmente. É preocupante, porque com essas pessoas não há diálogo, a violência para eles fala mais alto.
Catarinas: Qual a relação do racismo com o nazismo? O nazismo também apresenta relação com o machismo, com a misoginia?
João Klug: O nazismo é totalmente machista. Esse é o ponto de partida, porque a mulher é vista dentro do nazismo como uma reprodutora. É terrível isso que eu vou falar, mas a mulher é vista como a fêmea que vai reproduzir pequenos nazistas. Não é qualquer fêmea tampouco, ela é selecionada dentro de um padrão genotípico. De novo, entra a eugenia como uma pseudociência racial. Eu destacaria os anos 1920 e 1930, como a eugenia fez escola no Brasil. Teve a figura do médico Renato Kehl, fundador da eugenia no Brasil, presidente da sociedade eugênica no país. Ele publicou doze livros, onze pela editora Livraria Francisco Alves. São livros em que o ponto de partida dele é que a eugenia é a ciência da sociedade. Se ela fosse levada em conta, a sociedade seria melhorada racialmente. Ele parte do princípio de que a sociedade estava composta por pessoas que não mereceriam viver, porque seriam inferiores. O primeiro livro dele Medicina e eugenia social é um indicativo do que estava por trás do movimento. Ele chegou a escrever dois manuais. Um sobre como escolher o marido ideal e outro na sequência sobre como escolher a esposa ideal. Eu tive a oportunidade de lê-los, é algo totalmente fora da realidade, o critério era genético. Assim como o criador de gado escolhe a sua vaca ideal, é a mesma coisa. Depois ele escreve o livro Sexo e civilização, de novo o papel da mulher é meramente de reprodutora de um ideal. Toda a ciência eugênica é elaborada em cima de um grande equívoco, que é a ideia de superioridade racial. Voltando à pergunta, a misoginia está presente de forma muito evidente. Esse médico fez um pequeno manual para quem pretendia se casar. Tem algo mais animalesco que isso? É profundamente racista, machista e misógino.
Catarinas: E tem outro aspecto, que é o desprezo às pessoas com deficiência.
João Klug: Esse é um dos pontos que o nazismo procura se ancorar cientificamente. Eles tentam demonstrar que “um indivíduo com defeitos não vai adiante, então a biologia deve se encarregar de lidar com esses inúteis”. É assim, literalmente, que as pessoas com deficiência são vistas por eles. Voltamos lá atrás, será que os neonazistas têm consciência desse absurdo? Em grande número, eu acredito que não.
Catarinas: E qual a relação das ideologias fascistas, como o nazismo, com a extrema direita?
João Klug: O neonazismo, o fascismo, sobreviveu porque ele teve espaço em grupos de extrema direita. Não falo da direita liberal, em termos de economia, eu me refiro a uma direita de cunho fascista. Essa direita fascista foi uma alimentadora desses grupos, ali eles encontraram guarida. Ali não há espaço para o questionamento, isso está de acordo com a visão dogmática de mundo desses grupos, pois eles seguem dogmas. No momento em que houve a possibilidade de eclosão desses dogmas, aqui estamos. Não é um fenômeno só do Brasil, tem acontecido em vários países. Em certa medida, eu ousaria dizer que estamos na segunda década dos anos 2000, vendo mais ou menos o que aconteceu na segunda década do século passado. Os anos 1920/1930 foram de crescimento de fascismos na Alemanha, na Itália, em Portugal, etc. Guardadas as distâncias, passaram-se 100 anos e, lamentavelmente, ainda temos que conviver com essa realidade hoje. Temos tanta coisa importante para nos preocupar e estamos nos preocupando com isso novamente. Especialmente com um segmento jovem.
Fico muito preocupado como professor de História. Durante anos, ajudei na formação de professores de História, passaram centenas de alunos que são professores nas minhas disciplinas. Eu me pergunto o que houve com o ensino de História? Quando eu vejo e ouço um jovem fazendo apologia ao nazismo, fazendo apologia ao regime militar, eu me pergunto onde se falhou no ensino de História?
Eu penso que a História, a Sociologia, a Filosofia falharam, porque é inadmissível que esse pessoal não tenha entendido essas questões. O ensino médio falhou nessa formação mais humanística. Ela não aconteceu, se tivesse acontecido não teria espaço para tanto ódio racial. Totalmente anti-humanista.
Catarinas: Será que esse ódio promovido contra as ciências humanas, não só no ensino médio, mas também nas universidades onde vemos discursos que colocam as ciências humanas como menores que outras ciências, contribuiu para prejudicar os ensinos de história, sociologia e filosofia nas escolas? Além disso, vemos professores que trabalham com direitos humanos sendo atacados e perseguidos.
João Klug: Estou falando aqui na qualidade de alguém que depois de 30 e poucos anos militando, estou saindo da pista com a aposentadoria, mas sentindo vontade de falar algumas coisas. Por que razão a área de humanas é relegada a ser como um apêndice da universidade? Nós tivemos uma época que, independentemente do curso – Engenharia, Medicina ou Odonto –, eles tinham uma carga mínima da área de humanas. Isso foi simplesmente banido dos currículos, porque era visto como um estorvo, para que isso?
A universidade como um todo entrou em uma preocupação muito grande em transmitir informações, mas se despreocupou com a formação. Formação é mais do que informação. Entra um esquema de valores, entra essa ideia humanística. Isso está desaparecendo. É fundamental uma grande humanização, estou contente com o Movimento Humaniza Santa Catarina, porque precisamos de um banho de humanização em todas as áreas do conhecimento, também nas ciências humanas.
Essa ideia de a universidade formar, na verdade está mais para informar. Às vezes, no processo da informação, ela deforma, porque o indivíduo sai da universidade pública e, de repente, está fazendo uma crítica terrível dela. No processo de informação vai ocorrendo a deformação, deformação de caráter, deformação da formação política, da cidadania. A universidade deveria se preocupar com esse banho de humanização, colocado de uma forma muito simplista.
Catarinas: Como o pensamento crítico e a educação podem combater ideologias nazistas, racistas e fascistas?
João Klug: Eu não tenho fórmula para isso, mas essas questões devem ser abordadas desde o ensino infantil. Eu tenho um neto que está com quatro anos e meio, ele está em um jardim de infância municipal, e eu percebo como é importante que algumas coisas sejam tratadas neste nível básico. Por exemplo, foi tratada na turma dele a questão do respeito à natureza. Ele aqui em casa me corrige em certas coisas. Outro dia eu queria exterminar um formigueiro que cresceu na grama de casa, só que o formigueiro segue ali, porque ele não deixou.
Tem coisas que devem ser tratadas no sentido do respeito ao outro, no respeito ao diferente, o respeito ao colega que tem down, ao colega que é negro. Isso deve ser aprofundado no ensino fundamental e médio. Lamentavelmente, acho que não está havendo tempo disponível. A grade curricular não prevê isso.
Em Santa Catarina, tem um agravante ainda maior, a nossa visão estatal da educação está enveredando para um discurso que vemos na Assembleia Legislativa, que é do Escola Sem Partido, da proibição de discussão de gênero. Isso é um atraso imenso. Se não houver alguma mudança, nós iremos pagar um preço muito alto por isso.
Catarinas: Por que há tantos grupos neonazistas em Santa Catarina? Historicamente, como isso pode ser analisado?
João Klug: Se você levar em conta a população, Santa Catarina é o estado que evidencia com mais força a presença desses grupos. Se levarmos em conta que SC é um dos estados que as oligarquias mais tiveram presença política. Aqui temos oligarquias que se revezam no poder, temos um coronelismo disfarçado, que não está de todo extinto. Isso significa uma força política de extrema direita. Como falávamos antes, é a extrema direita que abriga ideias neofacistas, neonazistas. Muita gente já me perguntou se tinha a ver com imigração alemã.
Algumas pessoas dizem de forma explícita que aqui tem neonazistas, porque foi onde teve maior volume de imigrantes alemães. Eu diria que parcialmente isso é verdade, mas aqui tivemos também muitos alemães que combateram o nazismo e pagaram o preço por isso. Sem dúvida a imigração alemã com essa visão com a qual a gente começou a nossa conversa, de uma superioridade, de serem agentes da civilização, da cultura do trabalho, isso foi se introjetando. Há uma elite econômica que fez isso acontecer.
Se levarmos em conta, por exemplo, o nosso movimento sindical. Se você comparar o movimento sindical do Vale do Itajaí e do Norte com o movimento sindical da área carbonífera em Criciúma e região é uma diferença impressionante. No Sul, você tem um movimento sindical reivindicatório, aqui você tem um movimento sindical de fachada. A professora do Museu Nacional Giralda Seyferth trabalha um conceito bem interessante, que é o do trabalhador que era um colono operário, seria aquele indivíduo que vai para a indústria têxtil, mecânica, metalmecânica, e no dia a dia encontra o dono da indústria, que passa na linha de produção, cumprimenta as pessoas, vai domesticando esses operários, enquanto na área carbonífera não se vê patrão, o patrão mora no Rio, em São Paulo. E como você vai fazer greve contra esse cara que está todo dia ali? Que, inclusive, promove o lazer dos operários, com as associações, os clubes, etc. Isso produziu uma classe trabalhadora bastante domesticada e muito propensa a votar de acordo com o patrão. Acho que isso ajuda a explicar um pouco porque Santa Catarina se caracteriza como um Estado em que a extrema direita tem campo fértil para crescer. Porque o Vale do Itajaí votou maciçamente no Bolsonaro? Tem a ver com a imigração? Tem, mas não é um mero fator migratório.
É uma conjuntura econômica, trabalhista, de sindicatos que nunca foram combativos, raramente o centro-esquerda teve uma projeção. Tem uma tolerância com discursos que começam em tom de piada, que tem um cunho racista, machista, misógino. Essas formas de fazer brincadeiras escondem atrás de si questões muito sérias.
Tem um texto chamado “A linguagem do Terceiro Reich”, de Victor Klemperer. Ele faz um estudo interessante. São algumas coisas que vão sendo introjetadas aos poucos, não parecem nada nocivas, são levadas como meras brincadeiras, cá entre nós, foi o que Bolsonaro fez no início do Governo: gesto de armas, piadinhas de cunhos racistas. Isso foi crescendo aqui em Santa Catarina com muita força. É uma conjunção de fatores, o caldo de cultura estava aí, e veio a bactéria maior e cresceu.
Catarinas: Tem mais algum tema que queira trazer, que considere relevante e não tenhamos abordado sobre essa temática?
João Klug: Eu me preocupo, porque esse tipo de postura que estamos tratando não se combate com a mesma moeda. Não dá para combater essa postura com uma semelhante, com o uso de violência. Nós temos que ter a sensibilidade de falar de uma forma não agressiva, com uma argumentação segura, para isso é preciso ter gente com argumentos. Tem essa necessidade urgente de trabalhar isso em todos os níveis escolares, na universidade, na igreja, nos clubes de mães e pais. Mas as pessoas fazem de conta que não estão vendo nada. Isso é direito político de cada um, mas não é direito político calar o outro porque ele pensa diferente. Isso precisa ser trabalhado intensamente, em todos os círculos possíveis.
Fernanda Pessoa
Jornalista metida a produtora audiovisual. Ativista em movimentos antirracistas e pela descriminalização do aborto. Louca por gatos, dança afro-brasileira e tecido acrobático.
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