Sem ser historiador ou sociólogo, conseguia navegar por todas as formas de conhecimento e imprimir uma visão moderna, civilizada, em um país em que, até hoje, viceja o senso comum primário e selvagem.
Luis Nassif - jornalggn@gmail.com
Publicado em 14 de maio de 2023, 12:26
Descobri Manoel Bomfim em algum momento de 1994. Era Semana Santa, comprei o livro “América Latina, Males de Origem” e levei para ler nos feriados. Mudou para sempre minha maneira de ver o Brasil.
No início do século 20, o diagnóstico de Bomfim era absolutamente contemporâneo, ainda mais naqueles anos de pacotes econômicos e de imposição da ultrafinanceirização.
Certa vez, conversando com o professor Antonio Cândido ele me disse que seu pai havia chamado a atenção para Bomfim ainda nos longínquos anos 30. Depois, soube que no final dos anos 60 (ou seria 70), Darcy Ribeiro relembrou Bomfim.
A partir da leitura, tornei-me um militante da causa de Bomfim. E creio que os artigos que escrevi na Folha ajudaram a convencer Francisco Weffort a incluí-lo em uma coleção Brasilianas editada pelo Ministério da Cultura; além de ter convencido o influente crítico WIlson Martins sobre sua relevância, depois de ter escrito um prefácio crítico em uma obra relançada de Bomfim.
Nesse momento em que os sociólogos e historiadores se empenham em desvendar oi mistério de uma formação que, em pleno século 21, resultou em Michel Temer e Jair Bolsonaro, seria relevante relembrar Bomfim
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/dinheiro/9.html
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/3/02/dinheiro/7.html
Valho-me do prefácio de Ronaldo Conde Aguiar à edição de 2006 do livro “O Brasil na História: Deturpação das tradições / Degradação política”, de Bomfim, escrito originalmente em outubro de 1926 e publicado em setembro de 1929.
O sergipano Bomfim tinha formação de psicólogo. E foi o primeiro a se insurgir contra as teorias raciais. Depois, enveredou por diversos temas, inclusive na história e na sociologia. Sem ser historiador ou sociólogo, conseguia navegar por todas as formas de conhecimento e imprimir uma visão moderna, civilizada, em um país em que, até hoje, viceja o senso comum primário e selvagem.
Vamos a alguns trechos relevantes do prefácio:
O atraso brasileiro (e dos países latino americanos) era o produto mais evidente da exploração econômica das colônias pelas metrópoles e dos escravos e trabalhadores pelos senhores e proprietários.
Evidenciando a sua formação médica, o sergipano utilizou o conceito de parasitismo social para caracterizar as relações entre nações hegemônicas (parasitas) e nações dependentes (parasitados) e entre classes dominantes e classes dominadas. Numa época em que o conceito de imperialismo estava ainda em aberto,1 o conceito de parasitismo permitiu a Bomfim desenhar um quadro explicativo sobre a dominação.
Bomfim foi, na realidade, o primeiro pensador social a evidenciar que o Estado brasileiro era o produto da transposição do Estado português para a colônia. “O Estado”, disse ele, “era um corpo alheio à nacionalidade, vivendo à custa da colônia, alimentando toda a metrópole.
A saída, argumentou Bomfim, seria um amplo projeto de educação básica e pública que, além da instrução formal, ensinas também ao brasileiro o sentido da cidadania (ou seja, “a consciência de seus direitos e deveres”), transformando os indivíduos em agentes conscientes das mudanças sociais (“do progresso necessário”).
No Brasil, notou Bomfim, o Estado jamais representou ou defendeu os interesses gerais da sociedade, mantendo ao mínimo as ações de “utilidade pública” — ou seja, os “gastos sociais”, como dizemos hoje — em favor das despesas com a manutenção da máquina governamental e, principalmente, tal como acontece ainda hoje, com o pagamento dos empréstimos externos.
Para demonstrar tudo isso, Bomfim realizou uma demolido ra análise do orçamento de 1903, evidenciando, conforme destacou o jornalista Luís Nassif, “há quanto tempo a classe política brasileira perdeu a noção de nação”. Para um orçamento de 330 mil contos, 122 mil contos (37% do total) representavam os gastos com o funcionamento do governo e 133 mil contos (40%).
No meu artigo, mencionada por Aguiar, destaco uma frase de Bomfim: “”Mesmo os mais ousados entre os homens públicos, os mais revolucionários, são tão conservadores como os conservadores de ofício. (…) Amanhã será tudo como ontem (…) Parece um paradoxo, tão estranho é: pouco importa a luta, os conflitos, levantes e revoluções que tenham trazido o indivíduo ao poder: uma vez ali, ‘sentindo as responsabilidades do governo’, o verdadeiro homem se revela: tudo parou, o revolucionário de ontem desaparece, as gentes ponderadas e graves podem se aproximar.”.
Daí considerar — bem antes de Caio Prado Júnior, cujo livro de estreia é de 1933 — que o futuro da nação brasileira já estava, em linhas gerais, “delineado” no seu passado, nas etapas anteriores da sua formação, todas elas marcadas, a ferro e fogo, por tensões entre dominadores e dominados — ou, para sermos mais atuais, entre globalizadores e globalizados.
Em relação a Tiradentes, figura até hoje decantada nas solenidades oficiais, Bomfim argumentou que a consagração do “pobre homem de São João del-Rei” foi a maneira pela qual a historiografia oficial fez desaparecerem os verdadeiros mártires e pioneiros da independência brasileira, valorizando, no entanto, um movimento (a Inconfidência Mineira. RCA) inconsequente e passivo. “Foi nos esconderijos de tais histórias que desapareceram os verdadeiros precursores, aqueles cuja existência, mesmo com a derrota que lhes tirou a vida, tornou impossível a submissão a Portugal.” E mais: “que mal Tiradentes podia fazer ao bragantismo? Nenhum”. Tiradentes transformou-se numa espécie de contestador tolerado pelas elites, pois, a rigor, não questionou a fundo nem levantou-se en armas contra o poder opressor dos dominantes.
Voltarei a escrever sobre o livro, à medida em que for sendo lido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário