O que a Baby do Brasil andou falando sobre abuso e perdão gerou indignação, mas não deveria surpreender. Para muitos, há uma contradição evidente entre sua trajetória nos Novos Baianos, um grupo que simbolizou a contracultura brasileira, e sua adesão ao fundamentalismo religioso. No entanto, há uma linha subterrânea que conecta esses dois mundos. A contracultura das décadas de 1960 e 1970, apesar de sua aparência libertária, sempre abrigou tendências místicas, anti-intelectuais e, em alguns casos, até reacionárias. O espírito de rebeldia e a busca por autenticidade, sem um compromisso com a crítica social, muitas vezes desembocam em dogmas rígidos, e não em transformações efetivas.
A contracultura sempre carregou um impulso de rejeição às instituições e tradições da modernidade ocidental, mas raramente substituiu essa crítica por um projeto emancipador. No Brasil, os Novos Baianos encarnaram um ideal de vida alternativa, baseada na coletividade e no desapego material. No entanto, essa recusa à ordem estabelecida não implicava, necessariamente, uma visão politicamente progressista. O culto à intuição sobre a razão, ao espontâneo sobre o planejado e ao "natural" sobre o social abre espaço para discursos moralizantes que, em certas condições, podem resvalar para o fundamentalismo.
O espiritualismo sempre ocupou um lugar central na contracultura. O movimento hippie e seus desdobramentos frequentemente se apoiaram em um misticismo difuso, que variava do esoterismo orientalista ao sincretismo new age. No Brasil, a Tropicália e os Novos Baianos incorporaram essa atmosfera, misturando referências religiosas e exaltando um certo panteísmo tropical. Esse misticismo, no entanto, nem sempre é progressista. Muitas vezes, ele reforça uma visão de mundo que despreza a análise materialista da realidade e enaltece uma moralidade individualista. A espiritualização do sofrimento e da opressão pode facilmente justificar a violência, a desigualdade e a inação diante das injustiças.
Além do misticismo, a contracultura também flertou com a exaltação da espontaneidade e da libertação dos instintos, sem necessariamente questionar as relações de poder que atravessam essas práticas. Em comunidades alternativas e coletivos artísticos, a rejeição das normas sociais nem sempre veio acompanhada de um compromisso com a igualdade e a justiça. A flexibilização dos costumes muitas vezes beneficiou apenas os homens, enquanto as mulheres continuaram relegadas a papéis tradicionais, ainda que sob uma nova roupagem. O ideal de liberdade sexual, por exemplo, frequentemente ignorou questões como violência e consentimento, algo que ressurge, de forma distorcida, no discurso de Baby sobre o "perdão" das mulheres em relação ao abuso.
A rejeição às instituições, um dos pilares da contracultura, encontra paralelo no fundamentalismo religioso. Ambos compartilham uma desconfiança profunda em relação à política institucional, à ciência e ao pensamento crítico sistemático. O fundamentalismo se alimenta dessa recusa ao debate racional, promovendo uma fé absoluta em dogmas e líderes espirituais. Da mesma forma, a contracultura sempre nutriu um certo anti-intelectualismo, privilegiando experiências sensoriais e emocionais em detrimento da reflexão crítica. Esse traço ajuda a explicar por que tantas figuras da contracultura migraram para crenças religiosas dogmáticas sem perceberem qualquer ruptura em sua trajetória.
O moralismo travestido de liberdade também não é novidade. Na contracultura, ele aparecia no elogio ao "natural", uma ideia que, levada ao extremo, reforça padrões conservadores de comportamento. O fundamentalismo segue uma lógica semelhante, sustentando-se na crença em uma "ordem divina" imutável. A visão de mundo que Baby agora defende, na qual o abuso pode ser perdoado porque faz parte de um destino espiritual, reflete, ainda que de forma perversa, os discursos contraculturais que exaltavam a entrega e a aceitação do fluxo da vida, sem se opor frontalmente às estruturas de opressão.
A transição de Baby Consuelo para Baby do Brasil não é um desvio acidental, mas um sintoma de uma continuidade ideológica possível dentro da contracultura. O desprezo pela razão crítica, a ênfase na experiência mística, a rejeição das instituições modernas e a exaltação de uma moralidade naturalizante criam um terreno fértil para conversões ao fundamentalismo. Em ambos os casos, há uma tendência a substituir a análise social por um conjunto de crenças absolutas, sejam elas a busca do "amor e paz" de ontem ou da "salvação" de hoje.
Isso não diminui a importância dos Novos Baianos – Baby, Moraes, Paulinho, Pepeu, Dadi e tantos outros. Foram inovadores ao misturar rock e música brasileira, criando uma sonoridade única, lírica e vibrante. Mas o presente de Baby do Brasil, desprovido de qualquer vestígio de seu antigo espírito libertário, não está tão distante de suas origens quanto pode parecer. E é óbvio, que tanto Baby, como outros artistas e pensadoras que participaram da contracultura, em vários momentos, contribuíram para romper dogmas e preceitos.
Se há algo a aprender com esse fenômeno, é que nem toda crítica disruptiva à sociedade leva, de fato, a avanços sociais. A verdadeira transformação exige não apenas rejeitar o estabelecido, mas construir um pensamento sólido sobre liberdade, igualdade, justiça e transgressão. O espírito de ruptura pode ser libertador ou reacionário, dependendo da direção que toma. Como diria John Lydon, no auge do punk: "Never trust a hippie." Eu completo: nem em todo hippie, nem em todo punk.]
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(*) publicado no grupo facebook Psicodelia Brasileira (Psychedelic Brazil)
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