segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O Brasil vive sua terapia de cura

 Segunda-feira, 12 de dezembro de 2022 


Pós-eleição, calor e jogos da Copa viraram pretexto para aglomerações festivas e as pequenas grandes brasilidades esquecidas na pandemia.

Doeu a derrota da seleção brasileira para a Croácia nas quartas de final. Foi por pouco. A vitória daria um pouco mais de fôlego para um processo de cura que a Copa do Mundo inaugurou nesta reta final de 2022, especialmente no Brasil. Desde 20 de novembro, quando começou a festa do futebol, houve motivos perfeitos para se reunir com seus afetos. Juntem os jogos do Brasil, o calor anunciando o verão e o anseio reprimido de encontrar seus pares e começamos a fazer o caminho de volta à vida pré-coronavírus. Embora a pandemia não tenha acabado por completo, saímos do status de confinamento que durou até o ano passado, para o de “agrupamento” de amigos, vivenciando a vocação nacional para a festa a qualquer hora do dia.

A Copa de 2022 vai ficar marcada pela derrota para a seleção europeia, mas também por uma mudança de comportamento que já começou no Brasil. Há quanto tempo não se provava essa sensação de liberdade ilimitada de se ver, abraçar, rir, celebrar, protegidos pelas folgas no dia das partidas do Brasil. Sim, é diferente de outrora. Nos adaptamos aos novos tempos de abraços partidos do país. Nossos círculos de convivência mudaram nos últimos anos. Encontramos apenas os amigos que, como nós, acreditam na vacina contra a covid-19, os que estão vendo dias melhores no Brasil depois do resultado da eleição deste ano e os que matutam formas de dar um salto maior na vida em sociedade. Tudo isso depois de o país passar anos, especialmente nas redes sociais, lavando roupa suja publicamente.

Perdemos o pudor e agora já sabemos que golpista é golpista, moralista é moralista, e quem segue cultivando a resistência para ampliar valores democráticos. Ninguém esconde quem é quem. E isso não precisa ser ruim. Na verdade, diria que há uma peleja silenciosa, e não planejada, que marca gols em direção ao bom senso neste final de 2022. 

Como explicar que a camisa verde e amarela foi resgatada durante a Copa do Mundo? Sem alarde, sem violência, sem confronto. Na hora agá, progressistas vestiram a camisa para celebrar a seleção e quando viram… já foi. Os manifestantes que não aceitam o resultado da eleição em frente aos quartéis decretaram o boicote à copa! E abandonaram a camiseta verde e amarela. Quer algo mais simbólico?



O calor desértico do Catar nos empurrou para uma Copa do Mundo em novembro, quase um mês depois do segundo turno. Essa alteração no calendário nos livrou da distração que os jogos representam durante o ano de eleições presidenciais. 

Houve mais tempo para as fichas caírem e para que uma maioria apoiasse o projeto mais democrático e menos desumano nas urnas. Até a pauta da liberação das armas chegou fragilizada no segundo turno, com uma forcinha de Bob Jefferson e da deputada Carla Zambelli. Subitamente, nos vemos outra vez impelidos a celebrar e a resgatar as encantadoras pequenas grandes virtudes brasileiras. Como a empatia dos torcedores que celebraram o único gol de honra da Coreia do Sul ao final da partida que terminou em 4 x 1 na semana passada. Não queremos que outros sintam a dor do 7x1 de 2014 contra a Alemanha. Aos olhos de hoje, já era um prenúncio dos anos difíceis que viriam. 

É futebol, a vida real não é assim, dirão alguns. Mas é o teatro social, a crônica que fascina e resgata um desejo de felicidade neste país. 



Os torcedores japoneses sempre são destaque nas Copas do Mundo, porque limpam a sujeira da arquibancada do estádio onde estavam sentados antes de ir embora. Está lá um traço do DNA do Japão impresso nesse singelo hábito. Pois o Brasil tem essa paixão irrefreável pelo futebol, para o bem e para o mal, e é por ele também que se revelam outros gestos da genuína personalidade brasileira. É a polêmica dancinha para celebrar cada gol, que envolveu até o treinador Tite imitando um pombo no jogo contra a Coreia. A dança só irritou os gringos que não alcançam a alma brasileira. 

O Brasil não chegou às semifinais e segue com suas cinco estrelas de campeão na camiseta. Em todo caso, este não é um texto sobre futebol. É sobre um sentimento que andava perdido, confinado, uma espécie de amnésia coletiva de como confiar na brasilidade. 

Com tudo jogando contra nos últimos anos, ainda guardamos essa vontade irreprimível de ser feliz. Uma reportagem do G1 comparou diversos indicadores socioeconômicos dos oito países que estavam nas quartas de final da Copa até a semana passada. Somos lanterna em desigualdade econômica e ficamos em sexta posição no quesito índice de democracia, que mede a liberdade eleitoral, a capacidade de funcionamento do governo e a participação política de cada país. Perdemos até da Argentina nessa área, especialmente depois dos anos autoritários de Bolsonaro. Mas, quando se fala em felicidade, guardamos um honroso quarto lugar, perdendo apenas para os países ricos da tabela, Holanda, Inglaterra e França. Não é pouco, com tantas adversidades acumuladas: da pandemia descontrolada passando pela volta da fome, até a ascensão do nazismo. 

Num mundo que acaba de passar por uma tentativa de golpe da extrema esquerda no Peru e da extrema direita na Alemanha, lograr virar a página do bolsonarismo é parte da vocação nacional para a empatia. Foi o que nos manteve vivos na pandemia, sem dúvida. 

Um grande amigo estrangeiro, que viveu três anos intensos aqui por razões profissionais, falava de um traço do brasileiro que se destacava a seus olhos: a delicadeza. Ele se surpreendia com o hábito dos paulistanos de plantar as orquídeas nos troncos das árvores das ruas, quando a flor já estava "adulta". É um gesto espontâneo para dar espaço às raízes fora dos vasos caseiros, de modo que cresçam mais livres. Parte, talvez, da herança indígena dos que cuidam dos biomas no Brasil e que agora têm a chance de restaurar um pouco de suas raízes. É nessa empatia de preservar a Amazônia que o país resgata também seu "soft power" no cenário internacional, como a COP-27, no Egito, mostrou. 

A admiração pelo futebol em campo também é parte desse capital global. Ainda vai doer essa despedida do sonhado hexa, mas, se olharmos para trás, vivemos tantas coisas verdadeiramente dolorosas que talvez agora o futebol venha para ficar no lugar onde sempre deveria estar. É mais importante ganhar a copa da vacinação e da educação do que o hexa. Sigamos os passos do Brasil, na reconstrução de relações e da nossa identidade. Logo mais tem festas natalinas e governo novo. A energia precisa estar concentrada onde nossa atenção realmente vai fazer diferença.

Carla Jimenez

Colunista

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sábado, 16 de abril de 2016

E para reconstruir o Brasil do futuro, tome Chico, Caetano e...............................


Caetano foi ver o show "Caravanas"de Chico no Rio e usou as redes sociais para publicar esse texto:

Fiquei extasiado, não somente porque estávamos diante de um artista imenso que nos deixa esperando anos para vê-lo atuar; nem apenas porque os lindos versos de “Caravanas” trazem “suburbanos como muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá”; nem só porque o cenário de Hélio Eichbauer, com esfera armilar esboçando assimetrias a partir do sistema concêntrico, estende suas cordas de assinatura a uma complexidade de rede de ondas, movimento e poesia; nem mesmo porque “Massarandupió” traz a rica música que habita o coração de Chico Brown. Ou porque o repertório contenha sucessos cantados pela multidão e que estes sejam todos posteriores aos clássicos que fincaram Chico no lugar que ocupa em nossas vidas: não há “Quem te viu, quem te vê”, “Carolina”, “Januária”, “Samba do grande amor” ou “Noite dos mascarados” – nem pensar em “Pedro Pedreiro” ou “Olê olá”: para um cara da geração de Chico, o repertório é todo de coisas novas, a maioria datando de quando ele entortou seus caminhos harmônico-melódicos, toreou suas rimas (justo quando um idiota da imprensa disse que não ouviria seu novo disco por já saber o que iria encontrar: era um erro perfeito). É uma exuberância. Os arranjos de Luiz Cláudio levam ao máximo a elegância musical que ele sempre apresenta. Mas a força vem de como tudo isso foi estruturado dentro da concepção bossa nova. Um homem de voz pequena e anasalada domina o universo, rodeado por sons econômicos e profundos, equilibrados e misteriosos. Da forma dos arranjos (que contam com o canto perfeito de Bia Paes Leme) à política de volumes da amplificação (finalmente um show que não rompe nossos tímpanos toma toda a grande sala de difícil acústica!), tudo funciona para expor a realização da bossa nova, do seu essencial. É a vitória da bossa nova verdadeira, sua vingança, sua definitiva consagração, desmentindo a sensação de que o Brasil não se respeita: ao contrário, ali parece que o Brasil chega finalmente a merecer a bossa nova. E nada disso seria possível sem a lealdade de Chico à prosódia irretocável, à rima que vem com a ideia, à melodia que homenageia a tradição e amadurece para quase se desmelodizar. Ouvindo Chico assim, somos obrigados a crer no povo brasileiro.

Caetano Veloso






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