sexta-feira, 9 de junho de 2023

Celio Turino faz defesa de sua tese de doutorado no dia 14/06 - VIAGEM À SEMENTE – uma anamnese da Cultura Viva

 

“Ego sum pauper. Nihil habeo. Cor dabo.”

(Eu sou pobre. Nada tenho. Dou meu coração)

 


Foram 4 anos de dedicação intensa, passados em meio à difusão da Economia de Francisco e Clara no Brasil, pandemia de Covid, conceituação e articulação pela lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, lançamento de um livro sobre a América Latina (POR TODOS OS CAMINHOS, ed. SESC, 2020), falecimento de minha mãe, início de novos projetos no Instituto Casa Comum, com cursos, podcasts e, desde 2022, a retomada de viagens pela América Latina, semeando as ideias do Bem Viver, dos Pontos de Cultura e da Cultura Viva. No meio disso a escrita de tese de doutorado, que defenderei no próximo dia 14 de junho, na USP, sob orientação do professor Sérgio Bairon, às 14 horas. Haverá transmissão pela Internet, via o canal do Instituto Casa Comum e o podcast CulturaPode, no youtube. Deixo o link da live https://www.youtube.com/live/hqkyxZ_4Gtk?feature=share a quem se interessar e puder acompanhar a defesa, podendo ativar o lembrete.

É uma tese longa, com 600 páginas, dividida em apenas dois capítulos, mais a introdução e as conclusões. Optei pelo formato de texto corrido por entender que forma e conteúdo precisam caminhar lado a lado, como duas pernas de um mesmo corpo, havendo uma conexão em cada recorde, que distribuo em subcapítulos. Atrevo-me a declarar que, em realidade, são duas teses que se complementam, como os leitores poderão perceber, mas que precisavam ser apresentadas em conjunto, pois uma é desdobramento da outra.

A primeira parte, ou a primeira tese, leva o título de ÁRVORE. Escolhi um conceito-metáfora para demonstrar que a Cultura Viva só pode ser compreendida quando se pensa o mundo em multiplicidade. Cultura Viva é algo muito mais complexo do que as aparências podem induzir, não se trata de um nome redundante (afinal, toda cultura, a princípio, deveria ser viva), mas de um conceito que se opõe à Cultura Morta, aquela retirada de contexto, um produto sem processo, por isso fossilizada, burocratizada e coisificada. Árvore pareceu-me uma boa metáfora a demonstrar que na vida tudo está conectado e em pulsação constante.

Ao longo de 300 páginas vou analisado e narrando a história a partir da introdução de outros conceitos-metáfora: Capinar; Germinação; Raiz – a busca por um Estado Integral; Tronco – quando se tentou cortar a Cultura Viva a machadadas; Tronco – os golpes a machadadas continuaram; Uma árvore não são números frios; Caule, por onde circula a seiva; Galhos e ramas; Copa; Frutos; À sombra da árvore, em busca da felicidade; Flores – a vida precisa de arte; Teia; Seiva; Cipó – o chá da alteridade; O coração da árvore – CORAZONAR, a Cultura Viva no coração da América; Arvoredo; E se? Cada qual em um subcapítulo, que procurei escrever em um fôlego só, apesar do mais de um milhar de horas de escrita e revisões.

Os subcapítulos são partes integradas de um mesmo corpo, deles parto para apresentar conceitos, narrar histórias, citar pessoas e convidar os leitores a escutá-las, por vezes em longos depoimentos transcritos, fazendo a conexão desses pensamentos, práticas e conceitos com extensa bibliografia, dados e números, incluindo equações. É bom pensar o mundo desde a matemática, a começar pelo conceito de Ponto de Cultura, que tem origem no enunciado de Arquimedes, o matemático da Grécia Antiga (“dá-me um ponto de apoio e uma lavanca que eu moverei o mundo”).

São histórias que eu poderia apresentar apenas na terceira pessoa, falando “de” e “sobre”, mas preferi coloca-las na primeira pessoa, na voz dos próprios agentes. São centenas de citações, espero que não as considerem cansativas. Para mim não foram, pois são vivas e a cada uma das histórias que relato na tese eu vi, senti, vivi e refleti sobre. A princípio eu poderia descrever situações em sentenças curtas; seria possível escrever assim, por exemplo: “Com o Ponto de Cultura recuperamos o idioma yawalapíti, pois antes havia apenas 7 falantes plenos junto a um povo de 280 pessoas, vários perdendo os traços principais da gramática e do modo de pensar original de um povo, que só uma língua pode fornecer”. Bastaria essa sentença para o leitor compreender o significado da ação do Ponto de Cultura do IPEAX (Instituto dos Povos do Alto Xingu), presidido pelo cacique Aritana. Mas a riqueza da obra que eles realizaram não estaria completa, nem seria plenamente aprendida. Por isso busquei trazer para dentro do texto a voz do meu amigo, cacique Aritana, morto por Covid em 2020; disse ele:

“- Meu pai conheceu uma índia camaiurá e se casou com ela. Orlando [Orlando Villas-Boas] tinha muita história, foi ele quem pegou a camaiurá e casou com meu pai. Quando eu nasci fui conhecer a aldeia yawalapíti e só tinha uma casa e doze yawalapítis. Hoje nós somos 280 na aldeia.

O que falo aqui é da cultura. Acho que esse Ministério da Cultura é para todos, para índios, negros, todos. Estou vendo uma grande ajuda. O yawalapíti é uma língua que está morrendo. Da população atual, 280 pessoas, apenas sete falam yawalapíti. Essa é a nossa maior preocupação. E a nossa grande luta é trazer essa língua de volta, para a rapaziada falar, para as crianças aprenderem a falar com o pai e a mãe.

[...]

O que eu estou fazendo agora? Com a ajuda do Ministério da Cultura eu procurei uma professora bilíngue [então uma doutoranda em linguística na Unicamp, Jaqueline Medeiros de França]. Eu sou o professor dela, ensinei minha língua a ela e, com nossa orientação, vai passar para os pequenos agora. Sei que é muito difícil mostrar aos jovens a importância de manter nossos costumes, mas eles estão vendo, através de muita conversa, que é melhor ser o que a gente é: índio.

Então, hoje, a língua, os cantos, a música, não existem. Uma senhora que se chama Wantsu, que tem 60 ou 70 anos – e que não pude trazer comigo porque seu velho marido não deixou [Aritana proferiu essa conferência na primeira Teia Nacional dos Pontos de Cultura, no prédio da Bienal de São Paulo, em 2006], ela é yawalapíti. Ela passou tudo que sabia sobre a língua e os cantos. Ela trouxe isso de volta para nós.”  

Uma língua! Isso é Ponto de Cultura, muito mais que a simples transferência de recursos do Estado para ações culturais de base comunitária. Há essa dimensão, mas reduzi-la a isso é empobrecer o conceito. Talvez narrando com delicadeza, e pela voz dos agentes, talvez eu conseguisse passar melhor o sentido. No caso do Ponto de Cultura dos Yawalapíti, procurei completar as memórias, sabedorias e interpretações do mundo, também na voz de Wantsu (enquanto escrevo ouço o canto na voz dela, que, como Aritana, já partiu desse plano):

“Yamurikumalu

Ayawa, ayaua rinari

Iyawa riyari Yamurikumari nawikamina

Atsanbia putaya nupikani nukamani

Kamatawira”

Traduzindo:

“As mulheres guerreiras

Yamirikumã merecem serem respeitadas.

Vocês não sabem como eu estou me sentindo

E que eu morrerei”

 

Escrevi essa tese para honrar histórias como essa, em uma escrita que é escuta. No ofício de escutar, antes de estar no Ministério da Cultura, inclusive, fui formulando conceitos, teorias, filosofia, método, que sistematizo e aprofundo, agora sob o rigor acadêmico.

São muitos conceitos, citarei apenas alguns. O conceito de Teia enquanto uma Ágora a acelerar processos de compreensão e interpretação do mundo, que parte da “zona de desenvolvimento proximal”, de Vygotsky. Da educação infantil e a formação social da mente, para a política cultural e a cultura política. Ou o conceito de seiva, o fluxo a transformar raiz e árvore. Seiva como o fluxo contínuo a alimentar identidade e alteridade como um organismo só, que afeta e é afetado enquanto a seiva é elaborada em movimento que parte da raiz para alimentar do tranco às folhas e delas retorna para realimentar a raiz. Seiva, a fusão entre identidade e alteridade até se enformarem em solidariedade.

Nos tempos atuais procuramos muito a identidade e nos afastamos da alteridade, recorro a outro povo indígena, os Ashaninka (subcapítulo “Cipó- o chá da alteridade”), para demonstrar de que somente a partir da firme compreensão da necessidade de identidade e alteridade caminharem juntas é que possível alcançar a emancipação. Da aldeia Apiwtxa, na Terra Indígena Kampa, às margens do rio Amônia, afluente do Juruá, na fronteira com o Peru, parto para o sul do México, em Chiapas. A aprendo com o povo de lá:

“’Caminemos!’. Dijo el uno que dos era. ‘?Como?’, preguntó el outro. ?‘Para donde?’  pregunto el uno. Y vieron que asi se movieran tantito. Primero para preguntar como, y luego preguntar donde. Contento se puso el uno que dos era cuando  vio que tantito se movian. Quisieron los dos al mesmo tempo moverse y no le pudieron. ‘? Como hacemos pues?’

Y se asomaba primero el uno y luego el outro y se movieran outro tantito y se dieron cuenta que si uno primero y outro Después entonces, si, se movían, y sacaron acuerdo para moverse: primero se mueve el uno y luego se mueve el outro y empezaron a moverse y nadie se acuerda quién primero se movió para empezar a moverse porque muy contentos estaban que ya se movian y ‘?qué importa quién primero si nos movemos? ‘ . Decían los dos dioses que el mismo eran y se reían. Y el primero acuerdo que sacaron fue hacer baile y se bailaron, um pasito el uno, um pasito el outro, y tardaron em el baile, porque contentos estaban de que se habían encontrado.” (El viejo Antonio – Subcomandante Insurgente Marcos – aqui coloco em espanhol pelo sentido do ouvir, na tese coloquei também a tradução para o português. Creio que se entende. Se entende porque temos que nos entender.).

Optei por apresentar os conceitos dessa maneira, pela poética caminhando ao lado do rigor acadêmico, com o suporte de extensa bibliografia e compilação de dados. Espero que a escrita tenha sido fiel à minha intenção.

Por muito tempo relutei em fazer essa anamnese da Cultura Viva. Joguei-me por demais na Cultura Viva, quando no Ministério da Cultura, na condição de secretário da cidadania cultural e depois, quando sem meios para evitar, acompanhei com sofrimento todos os desmontes, perseguições, assédios, infâmias, incompetências. Conto sobre isso também, nos subcapítulos Tronco e as tentativas em destruir o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura a machadadas. Não são relatos apenas, apresento dados e demonstro o mal que causaram.

Na primeira década do século XXI o Brasil foi vanguarda mundial em políticas públicas para a Cultura, sobretudo com a Cultura Viva, em Cultura Digital, Pontos de Mídia Livre, Interações Estéticas, a capacidade em integrar Identidade com Diversidade ensaiando um Estado de novo tipo, Integral. Antes da Cultura Viva o conceito de Griô sequer era mencionado no país, mal passando de círculos muito pequenos, hoje é algo popular. O conceito de Economia Viva, para além da subordinação das artes, da criatividade e da cultura aos ditames do Mercado. Cultura e Saúde; Pontinhos, com a valorização da cultura da infância. E a ideia de Pontões... Uma cultura em processo, como fluxo, por isso viva e pulsante.  Termos como pós-verdade e fakenews ainda nem eram conhecidos, mas aqui no Brasil, a partir do Ministério da Cultura, nós já havíamos inventado a vacina.  

A partir de 2011, por incompreensões, incompetências e uma técnica que absorvia a lógica e as ordens do Sistema dominante, tudo isso foi sendo combatido por dentro do Estado, por uma governomentabilidade tecnocrática. Enfrento esse debate. Até como desagravo aos que tiveram a voz arrancada da garganta. Qual a razão da descontinuidade tão abrupta? Não é objeto dessa tese, mas estudiosos de 2013 e dos horrores e retrocessos que vieram a partir de então poderão encontrar dados, referências e histórias para compreenderem algumas das razões de o chamado “campo progressista” ter sido tão derrotado na batalha de valores que se deu a partir da estratégia de Guerra Cultural empregada pela extrema direita. A vida é movimento, quando uma parte perde o fluxo ela necrosa e é comida pelas células cancerígenas. E se tivesse sido diferente? Deixo a pergunta exemplificada no subcapítulo final do primeiro capítulo, “E se?”.

Nós somos o que fazemos de nós, resultado de nossas escolhas, também somos resultado daquilo que escolhem por nós. Assim, somos metáfora de nós mesmos. Metáforas a realizarem perguntas. E perguntas são sementes.

No segundo capítulo, dedico-me a jogar sementes ao vento, sob o título: “SEMENTES AO VENTO – sentido, memória, narrativa e verdade”. Mas isso fica para outro dia. A quem puder assistir a defesa da tese, irei apresentar como percebi que se dá a depuração dos sentidos e a dimensão da Cultura Viva enquanto filosofia. A inspiração para o título veio da leitura de um conto de realismo fantástico, Viagem à semente, do cubano Alejo Carpentier:

“...reduziu sua percepção a essas realidades essenciais, renunciou à luz, que já lhe era acessória. Ignorava seu nome. Afastado o batismo, com seu sal desagradável, não quis mais o olfato nem o olvido, nem sequer a vista. Suas mãos roçavam formas prazerosas. Era um ser totalmente sensível e tátil. O universo lhe entrava por todos os poros. Então fechou os olhos que só divisavam gigantes nebulosos e penetrou em um corpo quente, úmido, cheio de travas, que morria. O corpo, ao senti-lo envolto em sua substância, resvalou até a vida.”

 Para finalizar, reforço o convite a quem quiser e puder acompanhar a defesa da tese de doutorado, dia 14 de junho às 14 horas, no link abaixo

https://www.youtube.com/live/hqkyxZ_4Gtk?feature=share

 

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