“Ego sum pauper. Nihil habeo. Cor dabo.”
(Eu sou pobre. Nada tenho. Dou meu coração)
Foram 4 anos de
dedicação intensa, passados em meio à difusão da Economia de Francisco e Clara
no Brasil, pandemia de Covid, conceituação e articulação pela lei de Emergência
Cultural Aldir Blanc, lançamento de um livro sobre a América Latina (POR TODOS
OS CAMINHOS, ed. SESC, 2020), falecimento de minha mãe, início de novos
projetos no Instituto Casa Comum, com cursos, podcasts e, desde 2022, a
retomada de viagens pela América Latina, semeando as ideias do Bem Viver, dos
Pontos de Cultura e da Cultura Viva. No meio disso a escrita de tese de
doutorado, que defenderei no próximo dia 14 de junho, na USP, sob orientação do
professor Sérgio Bairon, às 14 horas. Haverá transmissão pela Internet, via o
canal do Instituto Casa Comum e o podcast CulturaPode, no youtube. Deixo o link
da live https://www.youtube.com/live/hqkyxZ_4Gtk?feature=share
a quem se interessar e puder acompanhar a defesa, podendo ativar o lembrete.
É uma tese
longa, com 600 páginas, dividida em apenas dois capítulos, mais a introdução e
as conclusões. Optei pelo formato de texto corrido por entender que forma e
conteúdo precisam caminhar lado a lado, como duas pernas de um mesmo corpo,
havendo uma conexão em cada recorde, que distribuo em subcapítulos. Atrevo-me a
declarar que, em realidade, são duas teses que se complementam, como os
leitores poderão perceber, mas que precisavam ser apresentadas em conjunto,
pois uma é desdobramento da outra.
A primeira
parte, ou a primeira tese, leva o título de ÁRVORE. Escolhi um
conceito-metáfora para demonstrar que a Cultura Viva só pode ser compreendida
quando se pensa o mundo em multiplicidade. Cultura Viva é algo muito mais
complexo do que as aparências podem induzir, não se trata de um nome redundante
(afinal, toda cultura, a princípio, deveria ser viva), mas de um conceito que
se opõe à Cultura Morta, aquela retirada de contexto, um produto sem processo,
por isso fossilizada, burocratizada e coisificada. Árvore pareceu-me uma boa
metáfora a demonstrar que na vida tudo está conectado e em pulsação constante.
Ao longo de 300
páginas vou analisado e narrando a história a partir da introdução de outros
conceitos-metáfora: Capinar; Germinação; Raiz – a busca por um Estado Integral;
Tronco – quando se tentou cortar a Cultura Viva a machadadas; Tronco – os
golpes a machadadas continuaram; Uma árvore não são números frios; Caule, por
onde circula a seiva; Galhos e ramas; Copa; Frutos; À sombra da árvore, em
busca da felicidade; Flores – a vida precisa de arte; Teia; Seiva; Cipó – o chá
da alteridade; O coração da árvore – CORAZONAR, a Cultura Viva no coração da
América; Arvoredo; E se? Cada qual em um subcapítulo, que procurei escrever em
um fôlego só, apesar do mais de um milhar de horas de escrita e revisões.
Os subcapítulos
são partes integradas de um mesmo corpo, deles parto para apresentar conceitos,
narrar histórias, citar pessoas e convidar os leitores a escutá-las, por vezes em
longos depoimentos transcritos, fazendo a conexão desses pensamentos, práticas
e conceitos com extensa bibliografia, dados e números, incluindo equações. É
bom pensar o mundo desde a matemática, a começar pelo conceito de Ponto de Cultura,
que tem origem no enunciado de Arquimedes, o matemático da Grécia Antiga (“dá-me
um ponto de apoio e uma lavanca que eu moverei o mundo”).
São histórias
que eu poderia apresentar apenas na terceira pessoa, falando “de” e “sobre”,
mas preferi coloca-las na primeira pessoa, na voz dos próprios agentes. São
centenas de citações, espero que não as considerem cansativas. Para mim não
foram, pois são vivas e a cada uma das histórias que relato na tese eu vi,
senti, vivi e refleti sobre. A princípio eu poderia descrever situações em
sentenças curtas; seria possível escrever assim, por exemplo: “Com o Ponto de
Cultura recuperamos o idioma yawalapíti, pois antes havia apenas 7 falantes
plenos junto a um povo de 280 pessoas, vários perdendo os traços principais da
gramática e do modo de pensar original de um povo, que só uma língua pode
fornecer”. Bastaria essa sentença para o leitor compreender o significado da
ação do Ponto de Cultura do IPEAX (Instituto dos Povos do Alto Xingu),
presidido pelo cacique Aritana. Mas a riqueza da obra que eles realizaram não
estaria completa, nem seria plenamente aprendida. Por isso busquei trazer para
dentro do texto a voz do meu amigo, cacique Aritana, morto por Covid em 2020; disse
ele:
“- Meu pai
conheceu uma índia camaiurá e se casou com ela. Orlando [Orlando
Villas-Boas] tinha muita história, foi ele quem pegou a camaiurá e casou com
meu pai. Quando eu nasci fui conhecer a aldeia yawalapíti e só tinha uma casa e
doze yawalapítis. Hoje nós somos 280 na aldeia.
O que falo
aqui é da cultura. Acho que esse Ministério da Cultura é para todos, para
índios, negros, todos. Estou vendo uma grande ajuda. O yawalapíti é uma língua
que está morrendo. Da população atual, 280 pessoas, apenas sete falam
yawalapíti. Essa é a nossa maior preocupação. E a nossa grande luta é trazer
essa língua de volta, para a rapaziada falar, para as crianças aprenderem a
falar com o pai e a mãe.
[...]
O que eu
estou fazendo agora? Com a ajuda do Ministério da Cultura eu procurei uma
professora bilíngue [então uma doutoranda em linguística na Unicamp,
Jaqueline Medeiros de França]. Eu sou o professor dela, ensinei minha língua
a ela e, com nossa orientação, vai passar para os pequenos agora. Sei que é
muito difícil mostrar aos jovens a importância de manter nossos costumes, mas
eles estão vendo, através de muita conversa, que é melhor ser o que a gente é:
índio.
Então, hoje,
a língua, os cantos, a música, não existem. Uma senhora que se chama Wantsu,
que tem 60 ou 70 anos – e que não pude trazer comigo porque seu velho marido
não deixou [Aritana proferiu essa conferência na primeira Teia Nacional dos
Pontos de Cultura, no prédio da Bienal de São Paulo, em 2006], ela é
yawalapíti. Ela passou tudo que sabia sobre a língua e os cantos. Ela trouxe
isso de volta para nós.”
Uma língua!
Isso é Ponto de Cultura, muito mais que a simples transferência de recursos do
Estado para ações culturais de base comunitária. Há essa dimensão, mas
reduzi-la a isso é empobrecer o conceito. Talvez narrando com delicadeza, e pela
voz dos agentes, talvez eu conseguisse passar melhor o sentido. No caso do
Ponto de Cultura dos Yawalapíti, procurei completar as memórias, sabedorias e
interpretações do mundo, também na voz de Wantsu (enquanto escrevo ouço o canto
na voz dela, que, como Aritana, já partiu desse plano):
“Yamurikumalu
Ayawa, ayaua rinari
Iyawa riyari Yamurikumari nawikamina
Atsanbia putaya nupikani nukamani
Kamatawira”
Traduzindo:
“As mulheres guerreiras
Yamirikumã merecem serem respeitadas.
Vocês não sabem como eu estou me sentindo
E que eu morrerei”
Escrevi essa
tese para honrar histórias como essa, em uma escrita que é escuta. No ofício de
escutar, antes de estar no Ministério da Cultura, inclusive, fui formulando
conceitos, teorias, filosofia, método, que sistematizo e aprofundo, agora sob o
rigor acadêmico.
São muitos
conceitos, citarei apenas alguns. O conceito de Teia enquanto uma Ágora a
acelerar processos de compreensão e interpretação do mundo, que parte da “zona
de desenvolvimento proximal”, de Vygotsky. Da educação infantil e a formação
social da mente, para a política cultural e a cultura política. Ou o conceito
de seiva, o fluxo a transformar raiz e árvore. Seiva como o fluxo contínuo a
alimentar identidade e alteridade como um organismo só, que afeta e é afetado enquanto
a seiva é elaborada em movimento que parte da raiz para alimentar do tranco às
folhas e delas retorna para realimentar a raiz. Seiva, a fusão entre identidade
e alteridade até se enformarem em solidariedade.
Nos tempos
atuais procuramos muito a identidade e nos afastamos da alteridade, recorro a
outro povo indígena, os Ashaninka (subcapítulo “Cipó- o chá da alteridade”),
para demonstrar de que somente a partir da firme compreensão da necessidade de identidade
e alteridade caminharem juntas é que possível alcançar a emancipação. Da aldeia
Apiwtxa, na Terra Indígena Kampa, às margens do rio Amônia, afluente do Juruá,
na fronteira com o Peru, parto para o sul do México, em Chiapas. A aprendo com
o povo de lá:
“’Caminemos!’.
Dijo el uno que dos era. ‘?Como?’, preguntó el outro. ?‘Para donde?’ pregunto el uno. Y vieron que asi se movieran
tantito. Primero para preguntar como, y luego preguntar donde. Contento se puso
el uno que dos era cuando vio que
tantito se movian. Quisieron los dos al mesmo tempo moverse y no le pudieron.
‘? Como hacemos pues?’
Y se asomaba
primero el uno y luego el outro y se movieran outro tantito y se dieron cuenta
que si uno primero y outro Después entonces, si, se movían, y sacaron acuerdo
para moverse: primero se mueve el uno y luego se mueve el outro y empezaron a
moverse y nadie se acuerda quién primero se movió para empezar a moverse porque
muy contentos estaban que ya se movian y ‘?qué importa quién primero si nos
movemos? ‘ . Decían los dos dioses que el mismo eran y se reían. Y el primero
acuerdo que sacaron fue hacer baile y se bailaron, um pasito el uno, um pasito
el outro, y tardaron em el baile, porque contentos estaban de que se habían
encontrado.” (El viejo Antonio – Subcomandante Insurgente Marcos – aqui
coloco em espanhol pelo sentido do ouvir, na tese coloquei também a tradução
para o português. Creio que se entende. Se entende porque temos que nos
entender.).
Optei por
apresentar os conceitos dessa maneira, pela poética caminhando ao lado do rigor
acadêmico, com o suporte de extensa bibliografia e compilação de dados. Espero
que a escrita tenha sido fiel à minha intenção.
Por muito tempo
relutei em fazer essa anamnese da Cultura Viva. Joguei-me por demais na Cultura
Viva, quando no Ministério da Cultura, na condição de secretário da cidadania
cultural e depois, quando sem meios para evitar, acompanhei com sofrimento
todos os desmontes, perseguições, assédios, infâmias, incompetências. Conto sobre
isso também, nos subcapítulos Tronco e as tentativas em destruir o programa
Cultura Viva e os Pontos de Cultura a machadadas. Não são relatos apenas,
apresento dados e demonstro o mal que causaram.
Na primeira
década do século XXI o Brasil foi vanguarda mundial em políticas públicas para
a Cultura, sobretudo com a Cultura Viva, em Cultura Digital, Pontos de Mídia
Livre, Interações Estéticas, a capacidade em integrar Identidade com
Diversidade ensaiando um Estado de novo tipo, Integral. Antes da Cultura Viva o
conceito de Griô sequer era mencionado no país, mal passando de círculos muito
pequenos, hoje é algo popular. O conceito de Economia Viva, para além da
subordinação das artes, da criatividade e da cultura aos ditames do Mercado.
Cultura e Saúde; Pontinhos, com a valorização da cultura da infância. E a ideia
de Pontões... Uma cultura em processo, como fluxo, por isso viva e pulsante. Termos como pós-verdade e fakenews ainda nem
eram conhecidos, mas aqui no Brasil, a partir do Ministério da Cultura, nós já
havíamos inventado a vacina.
A partir de
2011, por incompreensões, incompetências e uma técnica que absorvia a lógica e
as ordens do Sistema dominante, tudo isso foi sendo combatido por dentro do
Estado, por uma governomentabilidade tecnocrática. Enfrento esse debate. Até
como desagravo aos que tiveram a voz arrancada da garganta. Qual a razão da
descontinuidade tão abrupta? Não é objeto dessa tese, mas estudiosos de 2013 e
dos horrores e retrocessos que vieram a partir de então poderão encontrar
dados, referências e histórias para compreenderem algumas das razões de o
chamado “campo progressista” ter sido tão derrotado na batalha de valores que
se deu a partir da estratégia de Guerra Cultural empregada pela extrema direita.
A vida é movimento, quando uma parte perde o fluxo ela necrosa e é comida pelas
células cancerígenas. E se tivesse sido diferente? Deixo a pergunta
exemplificada no subcapítulo final do primeiro capítulo, “E se?”.
Nós somos o que
fazemos de nós, resultado de nossas escolhas, também somos resultado daquilo
que escolhem por nós. Assim, somos metáfora de nós mesmos. Metáforas a
realizarem perguntas. E perguntas são sementes.
No segundo
capítulo, dedico-me a jogar sementes ao vento, sob o título: “SEMENTES AO VENTO
– sentido, memória, narrativa e verdade”. Mas isso fica para outro dia. A quem
puder assistir a defesa da tese, irei apresentar como percebi que se dá a
depuração dos sentidos e a dimensão da Cultura Viva enquanto filosofia. A inspiração
para o título veio da leitura de um conto de realismo fantástico, Viagem à
semente, do cubano Alejo Carpentier:
“...reduziu
sua percepção a essas realidades essenciais, renunciou à luz, que já lhe era
acessória. Ignorava seu nome. Afastado o batismo, com seu sal desagradável, não
quis mais o olfato nem o olvido, nem sequer a vista. Suas mãos roçavam formas
prazerosas. Era um ser totalmente sensível e tátil. O universo lhe entrava por
todos os poros. Então fechou os olhos que só divisavam gigantes nebulosos e
penetrou em um corpo quente, úmido, cheio de travas, que morria. O corpo, ao
senti-lo envolto em sua substância, resvalou até a vida.”
https://www.youtube.com/live/hqkyxZ_4Gtk?feature=share
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