A cada colega que tomba colocando fim à sua vida, vejo as lamentações e apelos, por “soluções” imediatas que inibam essa tragédia. Já escrevi sobre o assunto e estou convencido que enquanto não revisarmos o próprio ministério, não encontraremos a raiz do problema.
A insistência de uma boa parcela, no papel restrito da igreja na salvação das almas e naquilo que os tradicionalistas chamam de “espiritual”, é um tremendo de um reducionismo e é disso que precisamos falar, quando abordamos a missão da igreja e a situação psíquica dos líderes religiosos de hoje. Estamos nos referindo a homens e mulheres que viram na Igreja, algo que os seduziu, mas que não os preenche mais em algum momento de suas vidas. Faz-se necessário mais do que nunca, resgatar as teses da Teologia da Libertação, paradoxalmente tão combatida nos dias que correm! Em que essa teologia pode contribuir para saciar a fome e a sede de jovens, que vêm no seguimento de Jesus um ideal? Com o seu método indutivo, não partindo da Revelação e da Tradição eclesial para fazer interpretações teológicas e aplicá-las à realidade, mas sim da interpretação da realidade da pobreza e exclusão e do compromisso com a libertação para fazer a reflexão teológica e convidar à ação transformadora desta mesma realidade, a TL abre o espaço para o engajamento na luta pelo Reino à luz da ação do próprio Jesus. Ela desempenhou verdadeiro serviço à Igreja, ao interpretar o Evangelho e apresenta-lo na sua perene validade junto aos pobres e excluídos, segundo o modus operandi de Jesus de Nazaré. A TL alimentou sonhos de vida, que transformaram vidas para sempre! Ninguém vive plenamente a “meio gás”! É impossível o ser humano ser feliz, sem que veja na sua existência, um sentido que lhe advém em última análise, da doação aos outros. Se opta pela família, sua vida será consumida na entrega a ela e em sacrifícios contínuos para mantê-la “viva”. Por sua vez, se optar pelo serviço ao Reino, a sua vida adquirirá a plenitude no serviço a um povo “que vive como ovelhas sem pastor”. Logo, a compaixão, a misericórdia, a proximidade e a doação total, serão a tónica da vida do presbítero.
A salvação das almas alheia ao interesse pela vida concreta do homem, não encontra eco nenhum na Sagrada Escritura e de modo especial, no Ministério de Jesus, anunciado em Lc 4 em Nazaré. A salvação é integral e embora o Reino se consuma na eternidade, faz-se necessário que os seus sinais sejam explícitos no aqui e agora da história. O candidato ao presbitério e o presbítero em si, são moldados para reproduzir junto ao povo de Deus, os mesmos sinais emitidos pela ação de Jesus nos evangelhos. É isso que dá sentido à vida, tornando-a uma luta constante contra o que é incompatível com o Reino de Deus e fazendo-a denúncia aos projetos que atentam contra a dignidade do ser humano.
Precisamos corajosamente afirmar, que o reducionismo da Boa Nova, é mais do que uma visão teológica diversa! Se assim fosse, glória a Deus na diversidade! Ele é, porém, perverso e castrador! Causa direta de insatisfação, desânimo, desespero e morte. Os seminaristas e os padres, não suportarão existencialmente viver sem um projeto de vida que vá muito além das vestes e do altar! Mas aí, alguém pode perguntar: então, porque antigamente os padres não se deprimiam e punham fim à vida? Até o Vaticano II os padres trilhavam um caminho e um script, que não lhes trazia nenhum desafio, embalados pelo status adquirido pela ordenação, devidamente valorizado e respeitado pela sociedade. O padre sentia-se realizado e seguro, pelo pertencimento ao clero e por conseguinte a uma Instituição forte e temida. Inúmeros padres permaneciam na mesma paróquia da ordenação à morte, sem jamais lerem algo, além da singela teologia nos “Seminários Maiores”. Eram “curas de aldeia” que peregrinavam com o povo, revestidos da autoridade que a Mãe Igreja lhes conferia. A realização pessoal estava na fidelidade ao serviço a eles conferido, sob a égide da salvação das almas para Deus. Eram caridosos, sensíveis e disponíveis. Mas eram uma autoridade local, no mesmo nível das demais! Suas vestes, como as do soldado, ou da professora, ajudava-nos na definição! Diziam mais sobre eles, do que as palavras que da sua boca saiam – comumente não entendidas! Não havia questões que fossem além da apologética e do esgrime da doutrina ortodoxa da Santa Madre Igreja. Repito: eram felizes e realizados enquanto tal.
O Vaticano II abriu espaço para a definição do presbítero de forma mais abrangente, situando-o à luz da profecia veterotestamentária e do pastoreio do próprio Senhor. Medellin e Puebla, reforçam esse papel, dando ao ministro ordenado as ferramentas de análise e de execução da sua missão. Pés no chão, trabalhando pela libertação do povo, sob a constante dimensão do martírio que acompanha os amigos de Jesus. Uma vida assim merece o epíteto: “prefiro morrer do que perder a vida”! O Concílio e as Conferencias Latino Americanas, bem como a eclesiologia de Francisco, deram ao presbítero os pincéis para colorirem a sua vida ministerial com um sentido profundo, na travessia do mar revolto cultural em que vivemos. Chaves anteriores, não servirão para a fechadura que o século XXI nos apresenta. O que realizava os nossos padres do passado é hoje fonte de angústia e desânimo. Os psicólogos se encarregarão de demonstrar que a “nostalgia clerical”, além de ser ineficaz, é fonte de doenças.
Como escreve José Manuel Vidal em Religion Digital, “será o grande legado de Francisco ao mundo e à Igreja. Seu concílio sem concílio. Ou o prelúdio do Concílio Vaticano III. Se a sua saúde lhe permitir (se Deus quiser) chegar a 2025, terá conseguido lançar um processo sinodal imparável que mudará o rosto da Igreja, adaptando-o ao Evangelho e tornando-o significativo para os homens de hoje e poder continuar dando sentido às suas vidas”
O nosso modelo formativo não é somente arcaico, mas está falido. Não se sustenta mais! Jovens retirados de seus meios, vivendo uma vida artificial, repleta de “mordomias” e perdendo completamente a capacidade de dialogar com o diferente ou até de experimentarem as derrotas, inerentes a qualquer debate. Eles são “preparados” para dizer a última palavra! E isso é um desastre em termos atuais! Saem da formação considerando-se garantidores da ortodoxia eclesiástica, conhecedores da doutrina e experts em quase tudo! Para vincarem esta postura anacrónica e eu diria, fatal, apostam nas vestes e adornos litúrgicos que evidentemente os distanciam do sacerdócio comum. Se achamos que o modelo de Trento está esgotado, ficamos ainda mais intrigados e preocupados, ao perceber que o apego ferrenho a essa performance formativa, representa uma autêntica fobia na adesão ao novo modus vivendi e operandi que a Igreja procura apresentar, no diálogo profícuo e legítimo com o mundo. Os que leem este artigo, constatam que em muitos casos nem a Ratio é cumprida!
A base fétida e movediça por trás desta chaga, está na visão equivocada, e longínqua da Escritura, sobre os Ministérios, que durante séculos se encrostou na Igreja. “Quem de vós quiser ser o maior, seja o servo de todos” (Mt 20, 26). Galgar o poder no usufruto de cargos com infelizes e enormes vantagens (inclusive financeiras), é um atrativo para quem adentrou no sacerdócio ferido por miopias insanáveis ou incuráveis. Não temos na formação atual como corrigir cirurgicamente estas distorções! Alguém poderia sublinhar o papel de formadores extraordinários. Concordo que no passado fizeram a diferença. Contudo, com trinta anos de padre, constatei a impotência de muitos deles, perante o atual sistema. O Seminário para ser fiel ao que se propõe, não pode mais ser apenas, um lugar “retirado”! Há de se conjugar uma formação específica com uma inserção em meios académicos laicos, que proporcione aos jovens candidatos saborear a vida real, onde irão exercer o seu ministério. Hoje, não existe nenhuma concessão ao modelo pré-conciliar! Portanto, formar padres para apresentarem respostas antigas a questões atuais, é contraproducente e tolerância com processos incubadores de autoritarismo e clericalismo!
O ponto nevrálgico de uma reflexão profícua sobre a formação dos padres, está num olho para o passado: um passado da Tradição e do Magistério, com um claro resgate da Palavra Bíblica e um olhar para o futuro, cujos indícios já são perceptíveis no presente. A Palavra e a Tradição dos Santos Padres, nos obriga a proceder àquilo que já foi chamado de “desacerdotalizaçao” do padre! Palavra estranha que basicamente questiona a figura do clérigo desenvolvida a partir do século IV, que se impôs numa Europa feudal, que foi reforçada pelo Concílio de Trento, numa necessidade proeminente de responder à Reforma e que veio até ontem
Resgatar o sentido de uma vida consagrada ao Reino, que nos mantenha vivos e sonhadores, enquanto nos doamos totalmente, é o nosso grande desafio. O processo de sinodalidade esmagará por completo o clericalismo e fará cair de podres, os modelos que o geravam e nele se inspiravam. A turbulência processual inerente, infelizmente causando sofrimento inevitável, nos mostrará claramente que o atual modelo é nefasto e doentio. Talvez uma leitura de Viktor Frankl ajudasse a entender por onde passa esse “meaning of life!
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos
Arquidiocese de Londrina
Junho 2023
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