quarta-feira, 11 de outubro de 2023

UMA LEMBRANÇA DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO QUE AINDA QUEIMA E UMA DESGRAÇA QUE NOS INVADE


‪ Antes que o marxismo existisse, o cristianismo já existia. E antes dele Isaías já pregava libertação sócio-política-espiritual !‬   Padre Zezinho, scj 

Romero Venâncio (UFS)

Havia internamente na Igreja católica no Brasil nos anos 80 o "burburinho" contra a teologia da libertação. Sempre se falava em "exageros" (políticos, em geral). Sempre se dizia a boca miúda que o Papa João Paulo II e seu Cardeal Ratzinger não gostavam e estavam agindo de maneira pragmática para enterrar na Igreja essa "forma de teologia". 

Escutava muito essas coisas. A Teologia da libertação que conheci tinha muito de figuras como René Guerre, Arturo Paoli, Segundo Galilea, o monge João Batista, frei Aloísio Fragoso, Irmã Agostinha Vieira de Melo, Irmã Ione Buyst, pe. Geraldo Leite ou Pe. Reginaldo Veloso... Pregadores de retiros, pessoas provocadoras em suas orações e liturgias e profundamente ligados a Igreja. Adaptações litúrgicas, meditações bíblicas, Ofícios divinos de comunidades ou mártires, etc. Gente simples e de modos discretos e sempre orientados pela vida popular. A ideia de que "ninguém se salva sozinho, mas nos salvamos em comunão" - escutei muito... Logo após a publicação e divulgação do documento "Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação" assinado pelo então Cardeal Ratzinger, vi desancar uma chuva de criticas à teologia da libertação em tudo. Agora, legitimados pela teologia de um grande teólogo e cardeal. 

Lembro de um desses bispos arrumadinhos falando das vestes de padres e religiosos e ainda dizendo que era de mal gosto e contra testemunho. Esses religisos criticados pelo bispo vestiam roupas e calçados modestos. Na teologia da libertação ninguém rezava, só se falava em lutas, pobres, fome, educação popular... Os religiosos que queriam um motivo para justificar sua ira e ódio a teologia da libertação tinham agora no documento cardinalício seu álibi. Essa gente tomou conta da igreja com suas orações de cura e libertação espiritual; com suas igrejas ricas, com sua bajulação às oligarquias locais para receber seus benefícios mensais, suas batinas arrumadas, seu discurso empolado e suas manias de classe média covarde e fetichista. Acusavam Pedro Casaldáliga de viver num "muquifo" enquanto eles buscavam os "palácios episcopais" para viverem o que mereciam. 

Deram a Igreja no Brasil esse perfil de classe média com seu discurso sacramentalista. Aceitaram as regras de Olavo de Carvalho, pe. Paulo Ricardo et caterva. O resultado já estamos vendo e engolindo amargamente. Padre de academia, padre de rodeio, padre da rede globo, padre das saunas, padres dos louvores das madrugadas inúteis, padres medíocres, padres bobocas e infantilizados... E depois se perguntam e choram a spitangas de porque tanta gente deixar o catolicismo... Deve ser por culpa da teologia da libertação, né!!!. Imaginação fértil desses senhores. Essa gente tão piedosa e "boquinhas de hóstias" mergulhada nos seus escândalos morais e tantos outros que sabemos bem... Escandalizados com "sinodalidade" e "neutros" perante a fome ou o horror vividos por pobres no Brasil ou por palestinos (vários católicos, inclusive na faixa de Gaza). Que testemunho deixa essa turma. 

------------------------------------

LEMBRANDO. Tive a honra e o prazer de escutar uma vez nos anos 80 o pe. René Guerre, já velhinho e bastante lúcido em Recife quando ainda estudava no ITER. Ele havia lançado à época o "Espiritualidade do Sacerdote Diocesano" pela editora paulinas, 1987. Ele falou uma "profecia" e que não entendíamos bem no momento. Dizia: o que vai destruir a igreja não é "marxismo", "comunismo" ou "ateísmo", mas o cinismo burguês dos altos prelados e de seus imitadores menores na hierarquia. A vida farta e vazia de uma fé profunda e encarnada é uma tragédia na Igreja. Dizia o Pe. Guerre que o "exagero espiritualista" sempre levou a uma alienação na Igreja e nunca a uma experiência profunda com Deus e que é vivida pela imensa maioria do povo que experimenta modestamente na sua vida. Cada vez acredito que o Pe. Guerre tinha razão.

------------------------------------

SOBRE UM ERRO ESTRATÉGICO-TEOLÓGICO E UMA APOSTA. NOTA

Não é segredo para ninguém e menos ainda para quem estuda o catolicismo romano no Brasil que a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro tem sido um real problema na ação pastoral urbana. Desde a década de 70, os Bispos/Cardeais que governam a Igreja no estado, alimentam uma postura conservadora que beira ao anacronismo em termos de prática pastoral e leitura teológica do mundo. Sempre tem as exceções, mas a regra é um distanciamento do mundo dos mais pobres e das imensas periferias que definem o Rio de Janeiro real. Esses prelados que atuam no Rio acreditam piamente que a administração dos sacramentos nas periferias é a forma mais certeira de evangelização. Tendo as missas diariamente e outras práticas sacramentais, o catolicismo tem seu lugar garantido na vida das pessoas. As classes médias católicas têm suas “confrarias conservadoras” propaladas em redes sociais e criando confusões teológicas sempre que possível. Não precisamos prosseguir mais nestes equívocos lamentáveis numa “pastoral urbana”. A prova disto? O rio de Janeiro é hoje o estado mais “pentecostal” do Brasil. Com isto, não queremos aqui fazer apenas uma crítica ao movimento pentecostal (mais complexo do que imaginamos) ou demonstrar alguma superioridade do catolicismo em relação a eles. Não se trata disto. Se trata de identificar uma prática pastoral profundamente equivocada e sem uma estratégia eficiente num mundo urbano, periférico e em constante mutação. O capitalismo numa cidade como o Rio de Janeiro tem peculiaridades e que foram dinamizadas cada vez mais no Século XX. Era preciso ter uma atividade pastoral moderna e antenada com as mudanças nas periferias de uma cidade que cresce desordenadamente e exclui constantemente os mais pobres.

A história das práticas dos cardeais e bispos do Rio de Janeiro desde Dom Sebastião Leme é acreditar e implementar uma política de aproximação com os ricos e os políticos no poder de plantão. Se a Igreja evangeliza os poderosos e mantém bom relação com eles, estaria ela fazendo a política pastoral correta. Evitar a todo custo conflitos e embates passa a ser a missão da Igreja (ver as pesquisas de Riolando Azzi). Nunca defendemos que Igreja deva ter um partido político ou fazer campanha para candidato algum. Essa não pode ser a tarefa da Igreja. Mas jamais deveria se afastar da luta contra a pobreza ou por ações sociais efetivas que beneficiem os mais vulneráveis. Não se constrói uma efetiva pastoral urbana sem uma profunda sensibilidade social coletiva. A atitude dos últimos cardeais do Rio de Janeiro tem demostrado exatamente o contrário: uma insensibilidade social e uma aposta em defesa de temas morais como prática pastoral. A pobreza e seu combate têm bem menos importância do que coisas sem sentido como “ideologia de gênero”. Cada vez mais fraca e desatualizada a formação teológica dos seminaristas em seminários católicos no Rio. Uma formação teológica fechada, afastada do povo, com uma cultura pré-Vaticano II. Com essas práticas, não tem catolicismo sério que resista. Estão à anos luz dos objetivos do Papa Francisco. Sinodalidade e “Igreja em saída” não fazem parte das ações pastorais da Arquidiocese do Rio. Não temos nenhuma possibilidade de diálogo entre a Igreja católica no Rio e a cultura intelectual consolidada na cidade, nas universidades ou nos meios de comunicação. Uma Igreja à deriva se achando no melhor dos mundos possíveis.

Uma aposta. Espero que o Papa Francisco tenha vida longa em seu pontificado para conseguir emplacar um bispo/cardeal antenado com uma pastoral urbana eficiente e justa no Rio de Janeiro quando gente como Dom Orani Tempesta chegar ao fim. Temos até um nome que seria ideal nesta atual conjuntura para ser pastor-bispo na terra de São Sebastião: Dom Vicente Ferreira. O bispo mais inteligente que conhecemos e ligado à vida urbana que vemos na Igreja do Brasil. Atualmente, Dom Vicente é bispo auxiliar na cidade de Belo Horizonte. Acabei de ler suas reflexões no livro: “Brumadinho. 25 é todo dia” publicado pela editora Expressão popular (2020). O livro é o resultado do envolvimento de Dom Vicente com a comunidade, depois da destruição de Brumadinho, em 25 de janeiro de 2018. Uma espécie de crônica poética que expressa o pensamento, o sentimento, a dor e a revolta daqueles que perderam seus parentes e amigos com o rompimento da barragem de rejeitos pela mineradora Vale. Em alguns momentos, o autor nos faz ouvir as vozes daqueles que foram levados pela lama tóxica, com a reconstrução dos fatos do crime ambiental e social. Os católicos do Rio de Janeiro precisam de um pastor como Dom Vicente.

Romero Venâncio (UFS) - Escrito em 2021...

Nenhum comentário: