A afirmação de que, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), "a direita detinha o poder político, mas a esquerda dominava a cultura e, portanto, influenciava a sociedade, necessitando ser enfrentada fortemente nesse campo" é atribuída principalmente ao General Golbery do Couto e Silva, um dos principais ideólogos e estrategistas do regime.
Contexto e Fundamentação:
Golbery do Couto e Silva:
Considerado o "teórico" do regime e principal articulador político, atuando como chefe da Casa Civil sob Geisel e Figueiredo.
Em sua visão geopolítica e de "guerra revolucionária", ele via o conflito não apenas no campo militar, mas também no campo ideológico e cultural. Acreditava que, para vencer a "guerra subversiva", era necessário conquistar "corações e mentes" e disputar a hegemonia cultural, então percebida como influenciada por valores de esquerda.
Outros Atores e Correntes:
Essa percepção também era compartilhada por setores conservadores, anticomunistas e integrantes da "linha dura" das Forças Armadas e de grupos civis aliados ao regime.
Intelectuais e organizações de direita, como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), já nos anos anteriores ao golpe, promoviam a ideia de que era preciso combater a "hegemonia cultural marxista" nas universidades, na imprensa, nas artes e na educação.
Tradução em Política de Estado:
Essa visão se materializou em políticas públicas e ações de Estado voltadas para o controle, a censura e a produção de uma cultura alinhada ao regime.
Órgãos como o Conselho Federal de Cultura (CFC), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e, principalmente, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) sob gestões específicas, foram instrumentalizados para esse fim.
O "Fortalecimento da Indústria Cultural" como Estratégia:
A ideia de usar a indústria cultural como instrumento de difusão de valores "nacionalistas", "conservadores" e "anticomunistas" foi uma das respostas a essa percepção. Isso se deu de várias formas:
Apoio Estatal a Gêneros e Produtos Específicos: O regime incentivou financeiramente e por meio de políticas de comunicação (como as da Embrafilme) produções culturais consideradas "adequadas" – como as comédias populares (pornochanchadas em certo período), o cinema nacional ufanista, a música sertaneja "romântica" e o samba "alienado" – em contraposição à MPB engajada, ao Cinema Novo crítico ou ao teatro de protesto.
Controle dos Meios de Comunicação: Concessões de rádio e TV eram dadas a aliados. A TV Globo, em ascensão a partir dos anos 1970, estabeleceu uma relação ambígua com o regime, mas frequentemente alinhou sua programação (telenovelas, jornalismo, entretenimento) a uma visão de modernização conservadora e apolítica, que servia indiretamente aos interesses do governo.
Patriotismo e "Identidade Nacional": A indústria cultural foi mobilizada para promover símbolos nacionais e uma narrativa de "brasilidade" que omitia conflitos sociais e políticas repressivas.
Conclusão:
Embora a frase específica possa ser uma síntese de um pensamento coletivo da cúpula do regime, seu principal formulador e difusor, no âmbito da estratégia de Estado, foi Golbery do Couto e Silva. Ele traduziu a visão de que a batalha pela sociedade brasileira se dava no terreno simbólico e cultural, legitimando assim a censura, a propaganda e o incentivo estatal a uma indústria cultural que atuasse como contraponto à influência percebida da esquerda.
Essa estratégia é um dos aspectos que explicam a complexa relação entre cultura e política no período, marcada não apenas por repressão, mas também por cooptação, incentivos seletivos e uma disputa pelo entretenimento de massas.
Pode explicar com mais detalhes as fontes bibliográficas utilizadas para a explicação acima?
Com prazer. A análise apresentada baseia-se num consenso consolidado pela historiografia especializada sobre o período, que se apoia em documentos oficiais, memórias de agentes do regime, estudos sobre políticas culturais e a produção cultural da época.
Abaixo, detalho as fontes bibliográficas, agrupadas por temas, que fundamentam a explicação anterior:
1. O Pensamento de Golbery e a Doutrina de Guerra Revolucionária (A Base Ideológica)
A percepção da cultura como campo de batalha ideológica é central na doutrina de "Guerra Revolucionária" e contra-insurgência, que influenciou os militares brasileiros.
Obra principal de Golbery: "Geopolítica do Brasil" (1967). Neste livro, Golbery expõe sua visão de que a segurança nacional depende do controle total do território e da população, incluindo sua dimensão psicológica e cultural. Ele argumenta que o inimigo (o comunismo) atua para subverter a sociedade por dentro, corrompendo seus valores.
"A Revolução Brasileira" (1965) de Carlos Lacerda: Embora de um civil, o livro reflete o pensamento de parte da elite que apoiou o golpe, que via a "infiltração esquerdista" nas universidades e na cultura como uma ameaça tão grave quanto a política.
Estudos Acadêmicos sobre a Doutrina:
GASPARI, Elio. série "A Ditadura" (especialmente "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada"). Baseado em ampla documentação e entrevistas, Gaspari detalha como o pensamento de Golbery e da Escola Superior de Guerra (ESG) moldou a estratégia do regime, incluindo a preocupação com a "guerra psicológica".
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. "Brasil: Nunca Mais". Este projeto, baseado em documentos do próprio regime, mostra como a perseguição ideológica se estendia a professores, artistas e intelectuais, corroborando a ideia de que eles eram vistos como alvos estratégicos.
D'ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary; CASTRO, Celso (Orgs.). "Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão". Coletânea que traz a visão de militares, muitos dos quais explicitam a preocupação com a influência cultural da esquerda.
2. As Políticas Culturais do Regime (A Materialização da Estratégia)
Aqui, a bibliografia é vasta e demonstra como o Estado atuou para controlar, censurar e produzir cultura.
NAPOLITANO, Marcos. "1964: História do Regime Militar Brasileiro". Capítulos fundamentais sobre "Cultura e Sociedade" e "A Ditadura do Espetáculo", onde o autor analisa a relação ambígua do regime com a indústria cultural, mostrando tanto a repressão quanto os incentivos a gêneros considerados inócuos ou ufanistas.
ORTIZ, Renato; CALABRE, Sérgio; RUBIM, Antonio Albino Canelas (Orgs.). Trabalhos sobre políticas culturais no Brasil. Eles mapeiam a atuação de órgãos como o Conselho Federal de Cultura (CFC) e o Ministério da Educação e Cultura (MEC), que sob gestões como a de Jarbas Passarinho e Ney Braga, tiveram políticas ativas para fomentar uma cultura "nacional e ordenada".
SCHWARZ, Roberto. "Cultura e Política, 1964-1969". Ensaio clássico que analisa a mudança no campo intelectual e cultural imediatamente após o golpe, descrevendo a ofensiva conservadora e as dificuldades da esquerda em reagir.
Documentos Oficiais: Os próprios Atos Institucionais (AI-5, especialmente), decretos-lei e portarias do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) revelam a extensão da censura prévia a peças de teatro, filmes, músicas e livros.
3. A Indústria Cultural como Campo de Disputa (A Estratégia de Ocupação)
Como o regime buscou usar o entretenimento de massa para seus fins.
"Embrafilme" e o Cinema: Trabalhos de SIMIS, Anita. "Estado e Cinema no Brasil" e GOMES, Paulo Emílio Salles. mostram como a estatal de cinema, após uma fase mais nacionalista e de esquerda nos anos 1960, foi progressivamente instrumentalizada pelo regime para financiar comédias populares (as pornochanchadas) e filmes de aventura ufanistas, marginalizando o Cinema Novo.
Televisão: Estudos de MATTOS, Sérgio. "História da Televisão Brasileira" e LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. analisam a relação simbiótica entre o regime (via concessões de canais) e redes como a TV Globo. A novela, o telejornalismo e os programas de auditório são vistos como vetores de uma modernização conservadora e de uma certa "despolitização" do cotidiano.
Música Popular: Trabalhos de NAPOLITANO, Marcos. "Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969)" e CÁLIX, Fábio. analisam a repressão à MPB engajada (com exílios, censuras a Chico Buarque, Geraldo Vandré, etc.) e o concomitante estímulo estatal e mercadológico a gêneros como a jovem guarda (menos política), o samba "tradicional" e, posteriormente, o sertanejo romântico e a disco music.
4. Memórias e Depoimentos (Fontes Primárias)
GOLBERY do Couto e Silva. Suas entrevistas e escritos são a fonte primária mais direta.
Depoimentos de Censores: Coleções como a do Projeto "Arquivo Miroel Silveira" (ECA-USP) com processos de censura a peças teatrais, ou os relatos de censores do DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), são fontes primárias valiosas que mostram a motivação ideológica por trás dos cortes e proibições.
Síntese da Linha Argumentativa:
A afirmação citada não é, portanto, uma citação literal isolada, mas a síntese histórica de uma mentalidade documentada. Essa mentalidade:
Nasce da doutrina de segurança nacional (Golbery, ESG).
Traduz-se em leis e políticas de estado (Censura, AI-5, atuação do SNI/MEC).
Materializa-se na disputa pela indústria do entretenimento (Embrafilme, TV Globo, incentivos seletivos).
É analisada e comprovada pela historiografia contemporânea (Napolitano, Ortiz, Schwarz, Gaspari).
Essa bibliografia, combinada, oferece um quadro robusto de como o regime militar brasileiro entendeu e atuou no campo da cultura como um front essencial de sua guerra política e ideológica.
3º Texto (artigo de Wladimir Safatle)
A perda de hegemonia
Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural. É uma situação nova no Brasil. E que precisa ser compreendida
POR CARTACAPITAL
01.09.2012 10H30
Nenhum comentário:
Postar um comentário