segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

A newsletter de fim de ano de Outras Cidades. Outras Palavras...

 

Olá para você que já está entrando no clima das festas!

2026 está batendo à porta — e promete ser um ano intenso. Vamos eleger presidente, governadores e deputados, em um cenário no qual a extrema direita já se organiza para o jogo sujo de sempre. Queremos ampliar nossa cobertura, estar mais próximos de vocês e contribuir com reflexões instigantes sobre o futuro das cidades. Indique esta newsletter para amigos, colegas e familiares. Este é um período em que muita gente — talvez você — está reunida, conversando, trocando ideias. E o Outras Cidades só cresce assim, no boca a boca, não pelos algoritmos. E, para encerrar o ano, escolhemos um gesto: um abraço. Da política com a poesia.

Boas festas e até breve!

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MAURÍCIO PEREIRA: POESIA NOS VÃOS DA METRÓPOLE

Ódio ao sabiá! Pois é. Muita gente comunga de tal desatino. Não por malvadeza, coração peludo, sangue de angu. É pelo maldito tuí-tuí do pobre bichinho com CEP paulistano! Sua melodia suave e ribombante, diferente do trinado de alvorada de seus compadres do interior. Um passarinho urbanizado que solta o gogó lá pelas cinco da madrugada pra anunciar que logo, loguinho, tocará o despertador. O dia raiará sob uma sinfonia automotiva, e aí é hora de pegar no batente, e pobre de você, amigo, que mal pregou os olhos de preocupação com os boletos, não pegou o trem do sono por enes razões. Ódio ao sabiá. Mas ódio desamargurado, ódio do bem, porque aqui a gente se ama com todo ódio e se odeia com todo amor, não é mesmo, Tom Zé?

“Quando se está sozinho em insônia, pensando merda, o sabiá dá um desespero”, diz o poeta e músico Maurício Pereira, 66 anos, numa manhã paulistana estranhamente amena. Uma média e a broa de milho quentinha estão sobre a mesa. E os olhos, pregados na janela de uma padoca na Vila Madalena, que emoldura a eterna correria da maior metrópole da América Latina, tão presente em suas canções. 

“Sim, São Paulo é um assunto. Normal, eu vivo por aqui, já andei muito pela cidade. Olhando. Aqui a gente tem que achar a beleza onde não tem beleza (mas tem…). Achar o lírico no meio da pressa, das tarefas, do corre-corre, da violência. O tempo todo tem enredos rolando, né? Conflito, atrito. Isso vai pro texto, pro espírito, pra observação".

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Poesia numa hora destas? A vida urbana pode ser muitas vezes áspera. Mas como encontrar suas belezas, encantos e respiros? Convidamos Maurício Pereira para nos ajudar. Um flâneur peculiar que abraça a Paulicéia e a Paulistânia, encanta-se com sabiás e aviões, e analisa com argúcia as tensões cotidianas das cidades: do concreto triste ao verde das praças, da velocidade inescapável aos silêncios necessários, do miúdo ao grandioso… Neste final de ano, com conquistas e apesar de derrotas, podemos nos inspirar a relembrar que as cidades vão além das trocas de mercadorias e serviços. São espaços de efervescência cultural, resistências populares e, por que não, de lirismos… 

Leia o artigo completo

SALVADOR, CAPITAL AFRO PARA QUEM? ✊🏿

A capital baiana é uma metrópole cindida. Por um lado, é uma vitrine reluzente de uma negritude que foi reduzida a ativo turístico e slogan eleitoral. De outro, há a negritude real — a que sofre despejo, violência religiosa, precarização e racismo institucional. Duas realidades recentes escancaram essa divisão: leis municipais que impõe símbolos cristãos — como o sudário em todos os enterros e a Bíblia como material paradidático nas escolas — e a descoberta do Cemitério da Pupileira sob um estacionamento, onde jazem mais de 100 mil negros, indígenas, ex-escravizados e pobres. Leia o artigo que inaugura a parceria entre Outras Cidades e BrCidades.

XÔ ENEL

O recente vendaval em São Paulo deixou 2,3 milhões de pessoas no escuro. Muitos ficaram mais de 70 horas sem luz. Não é a primeira vez. Em 2023 e 2024, São Paulo já havia tido problemas com o fornecimento de energia elétrica, e o prefeito Ricardo Nunes solicitou na ocasião o rompimento de contrato. Agora, um acordo entre governo federal, estadual e a Prefeitura da capital deve dar início ao processo que encerra o acordo com a Enel por ineficiência dos serviços prestados. Também foi apontado que a multinacional italiana, maior operadora de energia do Brasil e que atua no estado desde 2018, quando comprou o controle da Eletropaulo, havia se comprometido a realizar cerca de 282 mil podas de árvores, mas apenas 11% desse plano foi executado. Segundo o engenheiro Íkaro Chaves, ex-conselheiro da Eletronorte, em entrevista ao Brasil de Fato, a privatização do setor elétrico nos últimos 30 anos gerou dois fenômenos no Brasil: mesmo com uma das matrizes mais limpas e renováveis do mundo, a tarifa residencial subiu 401,4% entre 2000 e 2024; e, para garantir o lucro dos investidores, além do aumento das tarifas, os trabalhadores enfrentaram demissões, alta rotatividade e baixos salários. Dados de 2023 mostram que, desde 2019, primeiro ano completo de operações, a Enel dobrou o lucro e reduziu em 35% o número de funcionários. “A crise que acontece em São Paulo […] é o modelo de negócios que trabalha com a precarização da mão de obra […] O resultado é o impacto direto no dia a dia. A gente sente todo mês quando paga a conta de luz e também toda vez que chove que a gente fica sem energia e não tem a quem recorrer.” A urbanista Raquel Rolnik, em artigo no LabCidades, aponta: “Se o modelo adotado no Brasil nos anos 1990 de privatização do serviço já demonstrava limites e contradições, agora o que necessitamos é uma revisão radical do modelo. E não se trata apenas de definir a natureza do gestor do serviço — público ou privado — mas muito mais, é de relações federativas e competências e responsabilidades na gestão e de formas de relação entre estas, os cidadãos e o espaço público na cidade”.

A CONTA QUE NÃO FECHA

Pesquisa do Instituto Pólis mostrou que 36% das famílias dedicam maior parte do orçamento para as contas de luz. E a solução para os  apagões durante fortes chuvas e vendavais, como o enterramento de fios, caminha devagar ou então é sabotada pelas companhias, pois impactarão nos lucros dos acionistas. Em 2025, o governo federal optou pela renovação das licitações. A queda da qualidade e o descumprimento de regras, que incluem a modicidade tarifária, não bastaram para caracterizar quebra de contrato. 

CIDADES E DATA CENTERS

O futuro surge primeiro no campo — sugeriu, em 2020, o arquiteto holandês Rem Koolhaas, autor do clássico Nova York delirante. Com esta inspiração, um ensaio provocador de Guilherme Harris no Sidecar analisa como os silos de grãos rurais foram inspiração para arquitetos modernistas, que viram neles uma arquitetura cheia de força formal, sem ornamentos e muito funcional. Mas se os silos são o exemplo histórico, os data centers seriam o exemplo contemporâneo? Harris aponta que as gigantescas estruturas, tão essenciais para o desenvolvimento das inteligências artificiais, estiveram, por muito tempo, distantes de centros urbanos — afinal, implantá-las requer amplo acesso à terra barata. Porém, isto está mudando. Data centers estão “invadindo” as cidades, especialmente o modelo edge — mais versátil para uma expansão territorial e muito utilizado por grandes provedores de streaming, como Netflix e Youtube. Isso tem levado à reutilização de prédios industriais e escritórios obsoletos, bem como à implantação de data centers integrados a bairros densamente povoados, como em Londres, Frankfurt, Nova York e Xangai. O objetivo é estar mais próximo das corporações de tecnologia e outras fontes de energia. “O Data center é a tipologia arquitetônica de nossa época” — não exatamente no quesito construtivo, mas  política, energética e territorial: uma infraestrutura pura, “caixa-preta” sem linguagem, uma arquitetura sem intenção humana direta… 

COMBATE À “AIRBNBIZAÇÃO”

A União Europeia anunciou que irá regular os aluguéis de curto prazo para mitigar a pressão sobre o acesso à moradia digna e acessível. O fato é inédito, afinal, políticas habitacionais são, geralmente, uma competência de governos locais e nacionais, mas o debate sobre a disparada do preço dos aluguéis cresceu muito no Velho Continente. Plano enfrenta críticas por ser mais um “um arcabouço de intenções e cronogramas futuros” do que ações concretas e firmes. Entre 2010 e 2024, os preços dos imóveis aumentaram 53% em toda a UE, e os aluguéis, 25%, enquanto os preços em geral subiram 39%, segundo dados da Eurostat citados pelo The Guardian

ANIVERSÁRIO 🎉

David Harvey completa 90 anos! Para homenageá-lo, a editora londrina Verso Books convidou um grande time de especialistas para analisar em profundidade as principais obras do geógrafo marxistaOutras Palavras traduziu um dos artigos sobre o Cidades Rebeldes, livro publicado no Brasil em 2014, que mostra como a cidade tornou-se — mais que a fábrica — o centro das disputas com o capitalismo e o grande palco das rebeldias de nossos tempos.

“O PREFEITO ESTÁ OUVINDO”

A ideia é simples: entre na fila para falar com Zohran Mamdani, o socialista que tomará posse como prefeito de Nova York em 1º de janeiro. Ouviu 142 pessoas numa maratona de 15 horas. Cada cidadão tinha cerca de três minutos para o papo. Apesar dos esforços para diversificar o público, a plateia demonstrava uma auto-seleção evidente: predominavam pessoas entre trinta e quarenta anos, muitas delas declaradamente admiradoras de Mamdani. Inspiração, claro, é da famosa performance de Marina Abramović, “A Artista Está Presente”, que convidava visitantes do MoMA a se sentarem à sua frente, mantendo contato visual sem nada falar, por horas a fio. Quando um repórter da revista New Yorker perguntou a Dean Fuleihan, seu assessor, se ações como esta — que incluem a vez em que o candidato atravessou Manhattan a pé, de ponta a ponta — não resvalavam somente em performances, ele respondeu: “Uma agenda abrangente de redução do custo de vida exige comunicação constante.”

ENVELHECER NAS CIDADES

Daqui a 45 anos, os brasileiros com mais de 60 anos deverão corresponder a cerca de 37,8% da população do país. Hoje, eles são cerca de 16%. As cidades estão preparadas para este cenário demográfico? Esta é a provocação de um artigo publicado pelo Caos Planejado, que sugere que o desenho urbano pode aprofundar a exclusão — especialmente nas periferias. O desafio vai além do acesso à saúde e comércio a poucas quadras, centros de convivência ou acessibilidade no espaço público. “O curto prazo exige pragmatismo: bancos em praças, sombra nas ruas, corredores de ônibus que funcionem de fato etc. O médio prazo precisa contemplar ousadia: redesenhar a cidade para que envelhecer não seja sinônimo de confinamento ou guetificação. No longo prazo, deve-se reconhecer que o idoso não é só consumidor de um ‘mercado prateado’, e sim parte da inteligência urbana”, aponta a urbanista Gabriela Vasconcelos, autora do texto.

MOBILIDADE NAS QUEBRADAS

Os dados do Censo 2022 revelam, em números concretos, a profunda desigualdade em relação à mobilidade urbana que caracteriza as favelas brasileiras. Analisando essas comunidades, que somam 16 milhões de pessoas distribuídas em 656 municípios, a Agência Brasil compilou dados recentemente divulgados sobre como a precariedade da infraestrutura molda — e limita — a vida cotidiana de seus moradores. Um dos retratos mais cruéis dessa realidade é o acesso viário. Quase 20% dos residentes vivem em vias intransitáveis para carros ou caminhões. O cenário é de ruas estreitas, becos, vielas, escadarias e palafitas. Essa configuração não só impede a passagem de ambulâncias, transporte escolar, ônibus e caminhões de coleta de lixo, como também dificulta a locomoção a pé para mais da metade da população. A ausência de arborização, calçadas ou a presença de obstáculos são comuns, o que limita até a locomoção a pé. A iluminação pública, presente em 91% dos trechos, esconde disparidades gritantes. Em Paraisópolis e na Rocinha, as duas maiores favelas do país, os índices despencam para 66% e 54%, respectivamente. A sinalização cicloviária é quase inexistente e apenas 78% dos moradores têm vias pavimentadas no entorno de casa — um índice que, fora das comunidades, salta para 91,8%. Esse ambiente gera deslocamentos lentos e inseguros, agravados em horários de pico ou durante fortes chuvas. A drenagem urbana é outra fragilidade crítica: menos da metade das pessoas vivem em vias com sistema de escoamento, enquanto metade das comunidades enfrenta enchentes anuais. Em muitos casos, a manutenção e a provisão de serviços básicos recaem sobre os próprios moradores.

MORTE E VIDA DO COMÉRCIO LOCAL

Empreender no próprio bairro é tarefa árdua com o avanço da especulação imobiliária, das plataformas de aluguéis temporários e do “mercado gourmet”. Em quatro anos, por exemplo, 14% das lojas locais de Madri fecharam as portas. Uma jovem espanhola que sonha em abrir um pequeno negócio na comunidade onde vive, conta em artigo publicado pelo El Salto: “Empreender de forma independente, com preços justos e enraizamento local, é quase uma proeza diante de aluguéis exorbitantes e cadeias multinacionais. E aqueles que resistiram por décadas, famílias que herdaram pequenos negócios, muitas vezes acabam vendendo, exaustas após anos de incerteza.” O desafio de revitalizar e preservar a essência dos bairros, quando as políticas públicas não acompanham, é gigantesco. Entretanto, surgem iniciativas comunitárias que renovam a esperança, embora a duras penas…

QUANDO A CIDADE NÃO CIRCULA

Estudo demonstra como a operação policial nos complexos de favelas do Alemão e da Penha, que resultou na morte de mais de 120 pessoas, impactou a mobilidade urbana de todo o Rio de Janeiro — e afetou, sobretudo, os mais pobres. Ônibus pararam de circular. A redução nas viagens foi de 25%. À tarde, o colapso foi mais severo e trabalhadores ficaram “ilhados”, sem poder voltar para casa…Outras Cidades publica estudo inédito.

CICATRIZES DA VIOLÊNCIA URBANA

Publicado na revista BMC Public Health, um artigo investigou o impacto de episódios de violência na utilização dos serviços de saúde pela população de baixa renda do Rio de Janeiro, a partir de registros clínicos de mais de 529 mil usuários da Atenção Primária à Saúde (APS) entre 2010 e 2016, como mostra o Nexo. O estudo conclui que a violência funciona como um gatilho para a demanda imediata no SUS, particularmente para condições de saúde mental e problemas relacionados à gravidez, seguido de uma queda acentuada na utilização dos serviços nos meses subsequentes — um padrão que indica falhas críticas na continuidade do cuidado pós-violência.

DICA DE LIVRO

Um jovem negro e periférico. Um sonho em marcha: jogará na base de um grande time de futebol. A comemoração: noite de baile funk com amigos. E o terror: uma batida policial. Segue o Baile (Veneta, 2025), de Magô Pool, é um soco no estômago num país onde a bala nunca erra a juventude negra. 

POÉTICAS

 Errando em São Paulo: Apocalipse. O super-rico em seu castelo, chamado condomínio. Mas vem o ar irrespirável e a guerra de todos contra todos na cidade. Estará protegido? E quem servirá o jantar? ➡️ Mergulhe nesta “distopia”.

BÔNUS Um passeio por uma ex-SP de ribeirões, ainda viva na memória.

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