COMO OCORREU O ATAQUE AOS TRÊS PODERES.
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Usar a força contra a forçaVladimir Safatle
In: REVISTA CULT - 10 de janeiro de 2023
O mais singular sobre a invasão da Esplanada dos Ministérios no último domingo (8) é que sabíamos que ela ocorreria. Não foram poucos os que passaram o ano anterior inteiro a insistir que algo assim nos esperava, ainda mais depois de uma eleição na qual o governo Bolsonaro conseguiu ser referendado por quase metade dos eleitores presentes no segundo turno. Mas simplesmente não estávamos preparados para o que ocorreu. Como se o fato de acreditarmos em nossos desejos fosse suficiente para mudar a realidade. Então, agora, seria o caso de partir de algumas constatações como: Bolsonaro não foi um ponto fora da curva, o Brasil não “voltará ao normal”, o fascismo nacional não está isolado. Isso se chama: princípio de realidade.
O que se viu no último domingo foi um ato cuidadosamente montado, com apoio explícito da polícia militar, das forças armadas e de governadores da extrema-direita. Um ato nacional que alcançou realizações simbólicas enormes, como invadir o cerne do poder e se impor como força popular. Ato que se articulou ao bloqueio de refinarias e de estradas. Ou seja, algo que necessita de meses para ser organizado e financiado. Algo que tem um nome técnico bastante preciso: tentativa de golpe de Estado.
O fato de ser uma “tentativa” não significa que ela foi uma “mera” tentativa. A função inicial da ação foi desestabilizar o governo, mostrar sua fragilidade, impulsionar novas ações, produzir vitórias simbólicas que irão alimentar o imaginário insurrecional do fascismo brasileiro. Em bom português: esse foi apenas o primeiro capítulo. Outros virão. Nesse sentido, tudo foi extremamente bem-sucedido.
Não falo isso por exercício de masoquismo, mas porque há uma desconexão com a realidade vinda de análises inoperantes e ruins que se acumularam durante os últimos anos. Estamos no meio de uma insurreição fascista em várias etapas. Se lembrarmos, por exemplo, de 7 de setembro de 2021, encontraremos a mesma massa mobilizada, caminhoneiros bloqueando estradas e por fim um recuo. Qual foi a análise da época? Bolsonaro não conseguiu o que queria, seus apoiadores foram presos, ele está desmoralizado, ele acabou. Bem, depois disso, ele quase ganhou a eleição presidencial e agora seus apoiadores fizeram algo que fez a invasão norte-americana do Capitólio parecer ensaio de colegial. Ou seja, o processo não parou, ele se consolidou e agora irá se desdobrar em várias frentes.
Então, talvez fosse o caso de se perguntar: por que nos contentamos desesperadamente com essas análises que sempre se mostram inefetivas, que são desmentidas no mês seguinte? Talvez porque tenhamos medo de enunciar claramente as ações que necessitamos para sair da situação na qual nos encontramos.
Agora, o país acordou para o fato de que o início dessa catástrofe deve ser procurado na anistia que selou o começo da Nova República. Longe de ter sido um acordo nacional, ela foi uma extorsão produzida pelos militares. Será o caso de sempre repetir: não se anistiam crimes contra a humanidade, como tortura e terrorismo de Estado. A anistia não valeu para membros da luta armada que praticaram os chamados “crimes de sangue”. Eles ficaram presos mesmo depois de 1979. A anistia só valeu para os militares. Quando o país repete agora “Anistia, nunca mais”, “Sem anistia”, é para recomeçar o Brasil sem os mesmos erros do passado.
E essa exigência de justiça não visa apenas o sr. Jair Bolsonaro. Antes, ela visa todo o sistema civil-militar que compunha o verdadeiro eixo do governo. E visar o sistema significa destruí-lo. Não apenas colocar indivíduos na cadeia, mas decompor as estruturas de poder que submetem a democracia brasileira a uma chantagem contínua, que submeteram o povo brasileiro a gestões criminosas durante a pandemia.
Nesse sentido, algo como o que ocorreu no domingo não se resolverá com prisões, embora elas sejam necessárias. Ela exige duas ações centrais. A primeira é a dissolução da polícia militar. A polícia militar brasileira não é uma polícia de Estado, ela é uma facção armada. Como se não bastasse o fato de ela servir principalmente para operar massacres administrativos, chacinas periódicas que visam submeter setores da população brasileira à sujeição soberana de quem decide pela vida e pela morte, ela agora se apresenta como partido político.
No domingo, ficou claro como ela age, a saber, protegendo, auxiliando e estimulando golpes de Estado. Desde as atuações da Polícia Rodoviária no dia das eleições do segundo turno, estava claro que a PM e a PRF estariam em insubordinação contínua. Não será afastando um ou dois policiais que algo vai se modificar. A garantia da democracia brasileira passa pela dissolução da polícia militar, pela quebra de sua hierarquia e pela criação de outra polícia, não mais militar.
A segunda ação consiste em afastar o alto-comando das forças armadas e colocá-lo na reserva. O que vimos domingo foi simplesmente inimaginável em qualquer democracia: as forças armadas impedindo com tanques que a Força de Segurança Nacional entrasse na área em frente ao Quartel General, em Brasília, para desalojar fascistas. Isso já configura uma força militar em insubordinação contra o Presidente da República.
As forças armadas passaram os últimos quatro anos chantageando a República, colocando em questão a segurança das eleições. Elas tomaram o Estado brasileiro de assalto, colocando mais de 7000 de seus membros em postos de primeiro e segundo escalão, para gerir o Estado de acordo com seu grau de incompetência e insensibilidade. Quando eleito depois de uma campanha na qual sua vida foi ameaçada várias vezes, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, removeu quase 70 generais e coronéis do exército e da polícia. Era uma ação necessária para um país que não quer mais se sujeitar à excepcionalidade que as forças militares se arrogam.
Alguns podem achar tais proposições irrealistas. Eu diria que irrealista é a realidade na qual nos encontramos agora. Não é possível ter um governo que conviva diariamente com forças que procuram demovê-lo. É isso que acontecerá se não agirmos de maneira contundente nos primeiros dias do governo Lula. Tudo está muito claro a partir de agora. Que não nos contentemos mais uma vez com ilusões.
Vladimir Safatle é Professor Titular da USP e atualmente fellowship do The New Institute/ Hamburgo.
8/1/2023: o dia da infâmia para não ser esquecido! "Nunca más"!
10 de janeiro de 2023, 10h17 - Por Lenio Luiz Streck
Acompanhei pari passu os atos de terrorismo desde os primeiros momentos. Inacreditável o que se viu. Uma choldra, um valhacouto toma conta da capital federal. Mas uma súcia que tem gente por trás. Alguém financia.
Há prolegômenos. Dias antes, um juiz concedeu um mandado de segurança reconhecendo, a um "patriota do bem" (sic), o direito fundamental de pedir golpe de estado em frente de um quartel em Belo Horizonte, levando o Brasil inexoravelmente aos píncaros do patético.
Um deputado vestindo farda do Exército rindo com os atos terroristas. Um sujeito enrolado na bandeira grita palavras de ordens bolsonaristas na frente do Supremo Tribunal com a Constituição de cabeça para baixo que acabara de roubar do interior do prédio da Suprema Corte. Eis o retrato do Brasil dos "patriotas do bem".
O dia 8 foi pior do que os episódios do Capitólio dos EUA. Aqui, foram os três palácios. Depredados. Quebraram, roubaram. Tinham granadas. E armas. A imitação saiu pior que o molde.
Simbolicamente mostrou a vergonha nossa ao mundo. Terroristas (uso no sentido comum, político-sociológico do conceito) escoltados pelos guardas do DF. O Brasil vai ganhar o prêmio ig-Nobel. Vergonha nacional que se torna internacional. Papel de ridículo no palco do mundo.
O bizarro: descobriram — e a notícia é do Guilherme Amado, repetida pela CNN — que no acampamento principal em frente ao comando do Exército havia a esposa de um ex-comandante e parentes de outros militares. Estavam acampados, pedindo golpe. E, pior: por isso o Exército, em um primeiro momento, não permitiu o desmanche do acampamento na noite do dia 8. As forças de segurança do DF e da PF negociaram com o Exército para que isso fosse feito pela manhã. Isso ocorreu depois das onze da noite. Claro, parece que assim daria tempo para que os militares da reserva e parentes dos da ativa pudessem "puxar o carro".
Que coisa, não? O vivandeirismo assumindo um caráter nepotista, se me permitem. Parentes acampados na frente dos quartéis. Quem diria...
O dia 8 foi o dia, mesmo, da infâmia. O corolário do lavajatismo, o ovo da serpente dessa infâmia. Tudo começou com o amaldicionamento da política. E chegaram os outsiders. Os que "odeiam a política" e nela se metem. Para fazer o "bem". Influencers de quinta categoria, bombadões quebradores de placas e defensores de armamentos e sedizentes defensores da segurança pública tomaram conta do parlamento. A antipolítica assumiu a pauta da política após sua criminalização, num longo processo ao qual eu e tantos outros já viemos avisando de há muito. Será que ainda existe quem negue o vínculo entre os dois fenômenos?
Eis o resultado: as urnas eletrônicas são colocadas em dúvida ainda hoje, mesmo depois de tantas eleições. Cá entre nós, se as urnas foram fraudadas para dar vitória à Lula, os manipuladores devem ser punidos por incompetência. Afinal, esqueceram de fraudar a eleição de Ibaneis, por exemplo. Os manipuladores são gozadores? E por que deixaram Zambelli fazer mais de 800 mil votos? Esses fraudadores são uns pândegos. Tem um senso de humor bárbaro.
Houve um episódio no dia 8 que bem mostra o que quero dizer: o ex-líder do governo, Ricardo Barros, chegou a justificar os atos do dia 8, dizendo que, afinal, o código fonte não foi mostrado etc. e que as pessoas tinham motivos para lá estarem porque não tinham confiança no processo eleitoral. Ao que levou uma carraspana da jornalista da CNN Daniela Lima, que deu uma aula para o parlamentar.
Essa discussão entre a jornalista e o deputado simboliza o estado da arte do bolsonarismo. Vejam: bolsonarismo usado aqui como um conceito sócio-político que está para além de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo antecede Jair. E é muito maior que ele. Assim como o lavajatismo está para além da operação em si e dos desmandos que perpetrou. Eis a questão. Quem não perceber essa fenomenologia não conseguirá compreender a dimensão do reacionarismo que exsurgiu no país nos últimos anos. Tanto quanto Moro e Deltan são sintomas de um punitivismo seletivo, mequetrefe, fruto de um direito sem epistemologia e pessimamente ensinado nas faculdades, Bolsonaro é sintoma de uma fascistização do discurso público. A tempestade tinha sua crônica anunciada de há muito. A política foi criminalizada. Poderíamos falar aqui sobre várias consequências gravíssimas para o país. O dia 8 foi um resumo perfeito da tragédia.
Se alguém duvida do que estou dizendo, não assistiu aos atos do dia 8. Eles espancam... nossa cara e nossas dúvidas.
O rescaldo do dia da infâmia: mais de 1.500 presos. Investigações em andamento. Há muitos tipos penais a serem colocados em denúncias do MP (por sinal, o grande ausente no caos desde há muito, tornando letra morta o artigo 127 da CF, infelizmente).
Intervenção federal no DF; afastamento do governador; quadro de R$ 8 milhões destruído. Prejuízos de centenas de milhões. E tantas outras coisas.
Onde foi que erramos? Como deixamos chegar a esse ponto?
O direito fracassou? Não serve para nada? Não existe nenhum senso de vergonha institucional?
Nada disso era para ter acontecido. Avisos não faltaram. Mas "não era bem assim". A Lava Jato "prendeu corruptos". E Bolsonaro "só falava algumas bobagens". Tsk tsk. Enganou-se quem quis. E que agora assuma a bronca. E a responsabilidade.
E claro, nesse cenário todo não se pode esquecer o "doisladismo". A tese dos dois demônios. Ingenuidade, talvez? Será? Só aceita a leitura da ingenuidade quem é um tanto ingênuo.
O resultado está aí para quem quiser ver. Avacalharam os três Poderes. Destruíram, pilharam, saquearam, fizeram fiasco. Alguém podia ter se machucado gravemente.
E agora ameaçam com os caminhoneiros. Tudo armado no submundo das neocavernas. E financiadas pelos "novos patriotas". Pobre Brasil. Devemos ter jogado na Cruz de Cabrália. Ou algo assim.
O horror. O horror, como na peça shakespeareana.
Mas o maior prejuízo é o simbólico. A democracia foi violentada. Em seu nome. O direito foi ridicularizado. Também em seu nome. Parafraseando os filósofos de minha terra, quem não compreender isso é a mulher do padre.
E, atenção: nada mais de passapanismo, um dos erros históricos constantemente repetidos.
Aliás, precisamos aperfeiçoar o sistema legal: a lei antiterrorismo, consertar alguns crimes como o de prevaricação (veja-se o escândalo das milhares de atitudes criminosas ocorridas nos últimos tempos no país) que, para além da pena ridícula, tem um índice baixíssimo de aplicação — parece que há um monumento ao último condenado por prevaricação em algum lugar do país. E, como venho cobrando de há muito — mas de há muito mesmo — há que se construir mecanismos para punir autoridades omissas — para além da mera prevaricação.
Enfim, a tarefa é hercúlea.
Como a frase final da peroração do promotor do filme 1985, estrelado por Darin, "nunca más".
https://www.youtube.com/watch?v=CSCIKmSYmNw
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