domingo, 15 de janeiro de 2023

Reações a morte de Bento XVI. O que indica do futuro para as reformas da Igreja Católica propostas por Francisco? Artigo de Faustino Teixeira

 https://www.youtube.com/watch?v=gOY4AEon4bM


Avaliando com um pouco mais de calma a conjuntura do catolicismo romano nesse difícil momento histórico, confesso que sou tomado por pasmo e preocupação. 

Passado esse período que se seguiu à morte do papa Ratzinger, e lendo diversos artigos que foram publicados nesse período, dou-me conta que estamos vivendo uma crise muito grave, que envolve o horizonte de um projeto eclesial, tentado levar adiante pelo papa Francisco.

Muitas coisas foram ditas sobre o Ratzinger, algumas interessantes e válidas. Impressionou-me o fato de em muitos artigos que li, situou-se o gesto de renúncia dele no pontificado como o grande legado que ele deixa para o mundo. A meu ver, concordando com um amigo com que acabo de conversar, o que ele deixa como legado, de fato, é ter sido um inquisidor, que puniu gravemente um enorme contingente de teólogos ou pastoralistas. Esse é o legado que fica para mim.

O que percebi em artigos nacionais e estrangeiros, em análises de teólogos, pastoralistas, bispos, cardeais e vaticanistas, é que a sintonia com o projeto-Francisco está muito frágil. 

O clima deixado pelos "lobos", para utilizar uma expressão de Marco Politi, ainda é muito firme e contagioso. As malhas de um catolicismo conservador estão bem asseguradas, depois de quatro décadas dos pontificados de Wojtilla e Ratzinger.

Uma boa parte do clero, um número impressionante de novos padres, e segmentos significativos de leigos, ficam bem mais confortados num horizonte eclesiástico tradicional. Basta ver os alunos nos institutos teológicos, de toda parte, e seu enraizamento num catolicismo conservador. 

Os artigos que foram feitos depois da morte de Ratzinger mostram claramente o "fio delicado" que envolve um compromisso mais efetivo com a dinâmica evangelizadora de Francisco. 

Confesso a vocês que ando meio sem esperança numa renovação eclesial. Aquele nosso precioso compromisso com uma Igreja que a gente acredita, vai se pulverizando num terreno de escândalos abafados e resistências cada vez mais precisas contra um catolicismo libertador. 

A utilização indevida do nome de Deus por católicos tradicionalistas, empenhados na defesa do governo Bolsonaro, causou-me indignação e dor. A estética das arminhas em ambientes eclesiásticos foi uma vida demonstração do encaminhamento desejado por muitos. Os episódios recentes em Brasília foram expressão de sua continuidade...

Essa lamentável situação ocorre também no cenário de igrejas irmãs, como a luterana, que igualmente se viu cindida por posicionamentos adversos com respeito ao apoio a Bolsonaro. A recente e contundente carta aberta de Walter Altmann, um de nossos melhores teólogos no Brasil, dirigida a um pastor bolsonarista é exemplo vivo do que está ocorrendo também em âmbito evangélico.

O que mais me irrita, confesso, é o silêncio que se impõe, com raras e nobres exceções, como no caso de Dom Moll e alguns outros, visualizando um costume bem naturalizado entre católicos de preferir o silêncio ao sadio profetismo. 

Não são poucos os amigos, e gente maravilhosa, que me procuram e manifestam sua descrença no catolicismo que está aí; o seu cansaço com o clericalismo e a revolta com tudo o que vem sendo abafado num mundo que parece estar em "decomposição". Talvez essa seja uma palavra forte, mas é a que vem em minha mente, com tristeza. 

Em seu recente livro, "Vers l' implosion" (2022), a socióloga francesa, Danielle Hervieu-Léger - entrevistada por Jean-Louis Schlegel -, trata de uma série de questões que nos preocupam: os vacilos presentes numa igreja em processo de "implosão"; de um catolicismo exculturado; de uma igreja bloqueada; de um clericalismo crescente, que ela identifica como auto-imune. 

Ao final lança algumas perspectivas de futuro, mas bem tímidas... Grande questão levantada por ela ao final do livro: Como permanecer católico. Avança na ideia, quem sabe, de um catolicismo de diáspora e dispersão.

Cito um trecho do livro: "A crise de abusos sexuais e espirituais revelados depois de cerca trinta anos, faz vacilar a Igreja Católica. A crise vem do interior do catolicismo, e mesmo de seus ´melhores servidores`, padres ou leigos, mas também porque ela é universal e sistêmica. Muito debilitada por uma intensa secularização em razão das mudanças societárias da segunda metade do século XX. Por falta de reformas consequentes, a Igreja aparece cada vez mais expulsa da cultura comum, e deslegitimizada".

Lendo com calma o artigo de Marco Politi, um dos mais lúcidos vaticanistas, sobre a "guerra dentro da Igreja" (Il Fatto Quotidiano), minhas preocupações acumulam-se mais. 

Ele fala da "frente conservadora-tradicionalista" que vem se mobilizando contra Francisco, e que agora com a morte do bispo emérito de Roma tende a se agravar: "Petições foram lançadas contra Francisco, cardeais de alto nível questionaram publicamente suas posições teológicas, conferências convocadas a poucos passos do Vaticano falaram de suas ´teses heréticas`, um arcebispo-núncio exigiu perante a opinião pública mundial que Bergoglio deixou o papal trono!". 

Falando do governo do papa anterior, Politi sublinha que o pontífice alemão foi um "incansável produtor de uma guerra cultural contra a modernidade em nome de ´princípios inegociáveis`". 

E agora, num cenário modificado, depois de sua morte, o que estamos presenciando, diz Politi, são inúmeros ataques doutrinários contra Francisco, movidos por grupos de cardeais e bispos em manobras no mínimo muito estranhas. O fato mais recente, também lamentável, foi a publicação do livro de Ganswein, fiel escudeiro de Ratzinger.

O grosso da batalha, continua Politi, está por vir, com o Sínodo Mundial a ser realizado em Roma em 2024. Ali estará em jogo, também não tenho dúvida, "o próximo conclave que a feroz frente conservadora - fortalecida pelos temores dos moderados - pretende predeterminar."

Há que ter esperança, não tenho dúvida, mas está difícil!!!

Faustino Teixeira

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sábado, 31 de dezembro de 2022

TODOS OS PAPAS SÃO MORTAIS. SOBRE BENTO XVI

OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES

A opção pelos pobres vem sendo sistematicamente abandonada por boa parte do episcopado e do clero, para sequer falar dos cristãos que buscam a Deus de coração sincero. Na contramão da "Igreja em saída", proposta pelo Papa Franciaco, o que se vê na prática cristã, no modo de viver a fé e na formação em geral é um retorno à sacristia, como refúgio das tempestades e turbulências do dia-a-dia.

Vestuário vistoso e brilhante, o cuidado menticuloso com os objetos sagrados, a primazia do templo sobre as "ovelhas perdidas" e o formalismo rigorosamente ritual da liturgia - tudo isso tende a esconder um vácuo e um vazio teológico e solidário cada vez mais profundo e, ao mesmo tempo, cada vez mais superficial.

Navega-se nas ondas aparentes dos modismos apresentados pela mídia católica, quase que inteiramente descompromissada com o aspecto social, para evitar mergulhos mais profundos na realidade dura, fragmentada e mutilada da população. Criam-se fã-clubes debruçados sobre o próprio umbigo e vai-se colhendo os aplausos efêmeros que exigem não exatamente a Boa Nova do Evangelho, e sim as novidades de um gigantesco e enganoso mercado da fé.

Basta percorrer os corredores dos seminários ou as sacristias de tantas comunidades e paróquias para dar-se conta da distância em que estamos dos passos do "Jesus histórico de Nazaré". O Papa Francisco bem que tentou trazer o Nazareno ao centro da Igreja. Mas suas palavras e seus gestos proféticos tendem a ser folclorizados, o que é bem mais cômodo que segui-lo.

Ouve-se o "Angelus" com certo entusiasmo, lê-se os escritos do Santo Padre, acompanha-se seus gestos solidários, concorda-se com sua denúncia sobre a "economia que exclui, descarta e mata", mas nada disso mexe com nosso comportamento diário. Ao contrário, parece que quanto mais o pontífice bate nessa tecla de uma globalização excludente, mais diversos setores da Igreja procuram esmerar-se em pompa, em brilho e em aplausos fáceis. Aplaude-se o chefe supremo da Igreja Católica, claro, mas em seguida o folclore predomina sobre uma opção real e comprometida com os pobres, indefesos, abandonados e descartados pelo mercado excludente.

As congregações religiosas, fundadas para nos conduzir às periferias, aos porões e às fronteiras, também elas, com raras e boas exceções, acabam se acomodando na sacristia das paráquias mais rendosas, procurando administrar seus bens e suas estruturas obsoletas. Talvez nos institutos femininos, menos apegados à disputa pelo poder, se encontre uma tentativa mais ousada e profética de "avançar para águas mais profundas". Mesmo aí, contudo, não raro prevalecem o brilho das exterioridades e a defesa dos "bens e estruturas".

Como Igreja, distanciamo-nos do "profeta itinerante de Nazaré. Práticas, teologia, espiritualidade, opção pastoral - tudo parece desmentir a pobreza, a castidade e a obediência do Menino que nasceu em Belém. Não uma pobreza da miséria, mas aquela que descobriu o verdadeiro tesouro; não uma castidade estéril, mas viva e fecunda; não uma obediência cega e castradora, mas expressão da liberdade diante do projeto do Pai. Onde foi parar o verdadeiro seguimento de Jesus? 

Em lugar disso, nossos interesses se voltam para o carro de último tipo, os ornamentos sagrados e litúrgicos, o bem-estar de nossas vidas, o ninho aconchegante da sacristia. Para quê sujar mãos e pés quando podemos mantê-los limpos?! As opções proféticas deram lugar a vidas envernizadas, das quais, de resto, o povo se sente distante. E sente vergonha de convidar o ministro de Deus ou a religiosa para sua casa, tão pobre, tão desprovida, tão afastada desses ilustres "homens e mulheres de Deus"!

Mas o que mais ilustra a falta de opção pelos pobres é, sem dúvida, o uso do tempo, a maior riqueza dos discípulos e missionários do Reino. Uns usam o tempo como "latifúndio", propriedade privada, quase sempre improdutiva, e devidamente cercada contra os pobres e intrusos. Tempo para o celular, a TV, o carro, a vida particular... e o tédio, pois tudo que se acumula apodrece. Outros usam o tempo como "investimento", interiorizando os critérios do capitalismo. "Time is money", gasta- se somente com quem traz dividendos imediatos; nada de perder tempo com que não pode dar retorno; o tempo é milimetricamente calculado para gerar mais influência, mais capitalização... ou um dízimo mais robusto.

Poucos usam o tempo à maneira de Jesus: "tempo gratutito". O tempo do Filho é o tempo do Pai, deve estar a serviço dos pobres, sem qualquer esperança de ressarcimento. Por isso, a caravana de Jesus jamais ignora ou atropela quem pede socorro. O Mestre sempre se detém quando a vida está ameaçada. Seu tempo é oferecido gratuitamente aos sem vez e sem voz... Numa clara opção pelos pobres, desvalidos e marginalizados.

Fica a pergunta: a "Igreja em saída" do Papa Francisco irá sobreviver ao pontífice? A tentativa de trazer para o centro Jesus e Nazaré e os pobres prevalecerá? Ou, ao contrário, os lobos estão à espreita para tomar conta do rebanho e devorá-lo? A opção pelos pobres é frágil, tem como única arma o amor e o serviço. Como vencer as turbulências e contradiçõed do momento? A extrema-direita em ascensão não se esconde também sob o manto sagrado da fé, às vezes sob uma Maria "europeizada", descontextualizada, idealizada, para interromper os passos de Francisco e impor caminhos mais tenebrosos. Toda a atenção e vigilância serão poucas, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista religioso. Ambos podem ser manipulados e instrumentalizados para os interesses das classes dominantes... e o são!

Alfredo, SP, 16/01/2023

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