quarta-feira, 22 de março de 2023

COBLIN, UM PADRE QUE ACREDITOU SER POSSÍVEL PAPA FRANCISCO, MESMO APÓS JOÃO PAULO II E BENTO XVI.

Marcelo Barros

Querido Padre José Comblin,  

Neste dia em que você completaria cem anos do seu nascimento (22 de março de 1923), começo o dia lhe escrevendo essas linhas para lhe agradecer o tanto que aprendi de você e como o seu testemunho espiritual e teológico é atual e pode responder a muitos desafios que, hoje, enfrentamos no Brasil e no mundo. Todos/todas nós que tivemos a graça de conviver com você queremos sinalizar isso nas Igrejas e no mundo.

Pessoalmente, o conheci desde que você chegou ao Recife, convidado por Dom Helder Camara, em 1964, para ajudá-lo a organizar os estudos teológicos. Você ficou hospedado no Mosteiro de São Bento no qual, na época, eu era noviço. Você era, então, um padre jovem, tímido e com uma ironia fina que se manifestava no modo de sorrir e de reagir às pessoas que se aproximavam para conhecer um teólogo que já vinha da Europa com certa fama. Você respondia às perguntas com outras perguntas que sempre levava as pessoas a aprofundar mais o assunto. 

Nos anos seguintes, fui seu aluno de teologia no Seminário de Camaragibe e mais tarde (1968) no Instituto Teológico do Recife (ITER). Com você aprendi não apenas a estudar os tratados teológicos, mas a procurar fazer Teologia, em diálogo com os estudos acadêmicos, mas principalmente a partir da inserção amorosa no mundo dos pobres. No terceiro ano de Teologia, estudava o tratado dos Sacramentos, quando você precisou viajar por um mês a Europa. No lugar de chamar um professor para substituí-lo, você escolheu um aluno da classe para coordenar as aulas sobre Sacramentos na sua ausência e o escolhido fui eu. 

A partir dali, descobri que tinha uma vocação para o estudo mais profundo da Bíblia e para fazer Teologia. Você me ajudou a descobrir que deveria ser teólogo das bases e não apenas da academia. 

Em 1968, a pedido de Dom Helder, você escreveu um documento de subsídios teológicos preparatórios à 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín. Este documento com propostas de profunda transformação política para o continente caiu nas mãos dos militares da ditadura e você foi expulso do Brasil. Dez anos depois, quando você pôde voltar, o reencontrei ainda mais ecumênico e ligado às bases. A partir de então, seus livros serão cada vez mais escritos em linguagem simples e dirigidos às pessoas de base e não apenas aos ambientes da teologia.

Nos primeiros anos deste século, no Mosteiro ecumênico e inserido em que vivi na Cidade de Goiás,  tive a alegria de, a cada ano, receber você e Mônica para viverem conosco o Tríduo Pascal e celebrarmos juntos a Páscoa de um modo novo e profundamente inserido com os vizinhos mais pobres. E falamos que quando você achasse que seria o caso, quem sabe, poderia vir morar conosco. No entanto, a conjuntura levou a você e a mim para situações diferentes. Eu, por doença, voltei a morar em Recife. Por solidariedade, você e Mônica foram acompanhar mais de perto Dom Luis Cappio e a diocese da Barra na defesa do rio São Francisco e na vivência de uma ecoteologia das águas e da Terra da qual todos nós precisamos. 

Em meio a um encontro que assessorava em Salvador, você partiu sem aviso prévio e o seu corpo foi plantado pelos irmãos e irmãs, junto ao túmulo do padre-mestre Ibiapina, no Santuário da Santa Fé em Solânia- PB. 

A sua mensagem profética de doutor da Igreja dos Pobres continua viva e atuante. Encoraja-nos na missão de renovar a Igreja no caminho do evangelho e transformar o mundo para acolher em seu seio o reinado divino. 

As notícias da nossa Igreja Católica não são muito alvissareiras. As comunidades eclesiais de base resistem e cada vez mais se tornam comunidades humanas (ecumênicas) de base, enquanto a Igreja oficial continua falando em pequenas comunidades. O papa propõe um processo sinodal. A maioria das dioceses já mandou ao Vaticano o resultado de suas consultas às bases. A maioria dessas sínteses são vergonhosamente genéricas e sem quaisquer propostas concretas de mudanças. Apesar de todos os esforços do papa Francisco, o clero é cada vez mais clerical e avesso à Sinodalidade. A maioria das paróquias ressuscita devocionalismos barrocos da época da minha bisavó, enquanto o mundo sofre aumento descomunal da pobreza, agravamento da crise ecológica e várias guerras internacionais nos países pobres, para experimentarem as armas fabricadas nos países ricos. 

Do lado nosso, no Recife e propomos para o Brasil todo um Mutirão da Profecia. Por todo o país se organizam grupos cristãos com gente de várias Igrejas que, no dia 7 de setembro, junto ao Grito dos Excluídos, expressarão de forma atualizada um novo “Pacto das Catacumbas” como compromissso de vivermos a fé como Igreja dos Pobres, em comunhão com a mãe-Terra e junto aos povos originários, comunidades negras e todo o mundo dos empobrecidos/as. 

Muito obrigado por nos ter sempre inspirado a vivermos este caminho. Interceda por nós e nos abençoe. Abraço do irmão Marcelo Barros

 

Pe. Coblin e Dom Hélder..

 JOSÉ NUNES (*)

Comblin,  100 anos  

22/03/2023 às 07h00 • atualizado em 21/03/2023 às 14h24

No ano do centenário de nascimento do Padre José Comblin (*), é momento de relembrar sua caminhada na Igreja do Brasil e da Paraíba. Uma caminhada iniciada quando aqui chegou com outros sacerdotes europeus, em junho de 1958, logo construindo amizade com destacados nomes da Igreja que buscavam novos caminhos para estar mais perto do povo. 

Depois de uma estadia de três anos no Chile, retornando ao Brasil, conheceu o então Padre Marcelo Pinto Carvalheira, em 1965, que o estimulou vir morar em Recife. A pedido de Dom Helder Câmara, passou a atuar na linha da Teologia da Libertação, que buscava recuperar o rosto profético da igreja do tempo dos apóstolos, em que todos tinham tudo em comum, ajudavam-se, repartiam o que possuíam, de modo que não tivesse necessitado nas comunidades onde residiam. Era preciso voltar à Igreja da opção preferencial pelos pobres, sem, contudo, deixar de olhar para os afortunados.  

Depois de conhecer o Nordeste, Comblin descobriu a obra missionária de Padre Ibiapina e deste recolheu ensinamentos que ajudaram a montar a proposta que tanto sonhava, que era justamente a de uma Igreja ainda mais servidora. 

Junto com outros teólogos, trouxe um novo modo de ensino para os seminaristas, que era no sentido de atuar a partir do “ver”, “julgar”, “agir”, que depois ficou conhecido como “Teologia da Enxada”, colocado em prática na Paraíba. Tempos depois as Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) tomaram corpo, animando as famílias que desejavam mais espaço também dentro da Igreja.  

Foi semente a germinar movimentos sociais que, com firmeza, surgiram nas décadas de 1970 e 1990 e adentraram no novo século, dando voz às reivindicações das famílias que viviam à margem da sociedade, principalmente no meio rural.  

Tudo levava a descobrir os sinais de fé, de amor e de esperança. 

Agora, quando lembro destes acontecimentos, por ocasião dos 100 anos de nascimento de Padre José Comblin, recordo que completou 10 anos da minha primeira visita ao seu túmulo, em Santa Fé, na divisa entre Arara e Solânea, quando ocorreu um ano depois de sua passagem. O que me chamou a atenção foi que tinha nascido sobre sua cova uma florzinha, entre da terra seca e seixos, como a nos apontar a esperança que brota do lugar esturricado.  

Como recorda Padre José Floren, cabe-nos dizer, muito obrigado Padre Comblin. Obrigado pelos ensinamentos, por nos ter ensinado a rezar de modo diferente e a conhecer melhor Nosso Senhor Jesus Cristo e o seu Evangelho. 

Como disse Padre Floren, Comblin abriu-nos os olhos, os ouvidos e o coração para o grito dos excluídos e para pensar o futuro da Igreja. Aprendemos muitos a refletir com seus 70 livros publicados e mais de 400 artigos produzidos em quase sete décadas de estudos.  

Ele nos deixou um legado sobre vocação e missão, mostrou exemplo de simplicidade, de amor ao povo e fervor missionário.  

Podemos dizer, a partir de uma definição de Padre Floren, que nosso amado Comblin sonhava com uma Igreja “povo de Deus”, menos clerical e mais comunidade. Menos do passado e mais do futuro, menos do direito canônico e mais do Espírito Santo, menos acomodada e mais missionária e samaritana.  

(*) Nascimento: 22 de março de 1923, Bruxelas, Bélgica e falecimento: 27 de março de 2011, Simões Filho, Bahia. 

(*) Jornalista, cronista, diácono na Arquidiocese da Paraíba, integra o IHGP, a Academia Cabedelense de Letras e Artes Litorânea, API e União Brasileira de Escritores-Paraíba, tem vários publicados.


Romero Venâncio (UFS)

JOSÉ COMBLIN FAZ 100 ANOS. UM TEÓLOGO DA PRÁXIS. A PRÁXIS DO TEÓLOGO
O teólogo belga/brasileiro/nordestino José Comblin faz 100 anos. Ou louvando a quem bem merece. Conheci de perto o pe. José Comblin em duas situações diferentes. Primeiro, no ITER (Instituto de Teologia do Recife) onde ensinava História da Igreja (primeira Igreja e a Patristica). Impressionante o conhecimento e erudição no tema. Mas sem aquele ranço conservador de acreditar que o passado é a única coisa que define a Igreja. Era crítico das equivocadas leituras dos "antigos padres" sem colocar a fé em situação constrangedora. Sabia da sabedoria do passado para a Igreja mas sem ofuscar os tempos presentes. Os valores que enfatizava nos estudos da "Igreja primitiva" eram sempre os comunitários, proféticos e a coerência com a escolha da fé no Cristo ressussitado que a primeira comunidade fez. Sempre imaginei que ele tinha um método de ensino totalmente antenado com o espírito do Concílio Vaticano II  e com a sabedoria patrística. Segundo momento, foi na cidade de João Pessoa nos anos 90 quando ele veio morar nas aproximações da capital paraibana e através do professor Alder Julio Calado (um dos mais sinceros discipulos de José Comblin. Alder sempre soube articular Comblin com Paulo Freire sem menos ou mais).
Imagino sempre três variantes do Teólogo Comblin: o escritor, o homem de projetos missionários, o homem com um sentimento de latinidade
O escritor. Comblin era um escritor compulsico. Escrevia todo o tempo que lhe fosse possível. Uma espécie de "Sartre da Teologia". Nunca sei exatamente quantos livros, artigos, capitulos de livros ou texto de ocasião este homem publicou. E sei que não escrevia para contar suas publuicações. Comblin em nada, nada  se parece com esse produtivismo acadêmico brasileiro (sempre doentio e inócuo). A preocupação dele era a reflexão e renovação. Um Teólogo para Comblin era um ser de pensamento e pesquisa. Não faz sentido um Teólogo que não pespquisa, não se atualiza. Mas isto não é tudo na vida de um Teólogo. A teologia requer uma práxis. A atividade pastoral de um teólogo na vida concreta das pessoas tem seu valor incontornável. Não se escrever para se alienar. Se esceve para se libertar. Comblin via na escrita teológica uma forma de pensar a libertação. Libertação do Êxodo, profética, cristã, popular... Latino americana. A escrita de Comblin é sempre representativa em seus temas de livros: Jesus, Atos dos Apóstolos, Igreja, Trindade, antropologia, Cidade, Missão, Formação, CEB`s... Impressionante a quantidade livros e temas em teologia.
O homem de projetos missionários. Comblin toda sua vida foi uma homem de fé. Viveu momentos turbulentos da Igeja no Século XX. Viu os "invernos" e "primaveras" da Igreja na Europa e América Larina. A experiência do Teólogo pesou em sua formação e suas escolhas pastorais. Comblin num filme documental sobre Dom Helder Câmara afirmou que, quando o Arcebispo de Olinda e Recife via alguém, sempre via ali um projeto. Eu afirmo que Comblin era assim. Via pessoas vinculadas a projetos de vida, pastoral, libertador. Comblin já nos anos 60 pensava projetos pastorais vinculados a vida das pessoas em seu lugar de existência e de trabalho. Pensar a teologia vinculada ao trabalho em sentido paulino foi uma marca da teologia de Comblin. Sempre reclamou dos padres/seminaristas não "trabalharem" (em termos de oficio como qualquer ser humano). Separar um jovem pobre de sua família e seu lugar de vida, lhe dar uma vida de "classe média" nos seminários e formá-lo numa bolha, corre-se um sério risco de formar um "padreco pequeno buguês", distante das reais condições do povo. E isto é sério. Não é apenas chavão. Comblin via nos projetos missionários populares (campo e cidade) uma alternativa à clericalização da Igreja no Brasil. A "Teologia da enxada" foi o inicio... Depois vieram as experiências de centros de formação missionária no campo. E depois vieram as primeiras experiências de formação missionárias nas periferias das cidades no Nordeste (jamais exclusivo apenas ao Noerdeste). Formar teologicamente os leigos para ação no mundo dos pobres. Comblin e o monge João Batista foram fundamentais para a Comunidade Bom Pastar de Aracaju, por exemplo. Os exemplos poderiam se multiplicar por aqui. Mas fiquemos apenas com isto: Comblin foi um teólogo da práxis. Até o fim de sua vida.
O sentimento de latinidade. Comblin sempre chamou a atenção para nossa condição de brasileiros/brasileiras na América latina. Somos latinos. O Brasil tem um problema sério em ser latino americano. O nosso eurocentrismo e herança colonial é muito impactante. Uma das características centrais da Teologia da Libertação foi nos colocar enquanto igrejas no coração da América Latina. A Pátria Grande como dizia Pedro Casaldáliga. Comblin viajou muito aos paises latino americanos e sempre tinha algo a nos dizer. As experiências políticas, pastorais e das organizações populares. Sabia bem do marxismo latino americano, das experiência de inculturação de uma teologia indígena, das lutas populares por terra, água, comida, moradia, direitos... Uma teologia latino americana sempre aparecia em suas reflexões teológicas.
Por tudo e por mais, Comblin é um Teólogo do século XXI.

Tiago de França (**)
100 anos do nascimento do Pe. José Comblin

O padre belga José Comblin nasceu em 22 de março de 1923. Em sua terra natal doutorou-se em Teologia, e em 1958 veio para o Brasil. Em 1972, durante a ditadura militar, foi expulso do Brasil, mas, posteriormente, retornou para continuar sua missão. Durante décadas escreveu, lecionou, formou clérigos e leigos. Em março de 2011, faleceu na madrugada de um domingo, no qual se meditava sobre o evangelho da samaritana com Jesus, junto ao poço de Jacó (cf. Jo 4,5-42).
Sua vida e obra foram tão fecundas e de um significado tão grandioso para a história da Igreja e da Teologia católica no século XX, que é até difícil escrever sobre este homem de Deus. Quero apenas falar sobre três qualidades deste grande homem da Igreja e de alguns momentos meus, relacionados com ele. 
Pe. José Comblin era um homem tímido, silencioso. E neste silêncio produziu um arcabouço teológico rigoroso e profético. Não gostava de chamar a atenção para si; nem tinha essa necessidade. Gostava de observar. Era perspicaz. Era um homem contemplativo sem ser monge. Tinha uma intuição teológica sem igual. Sempre surpreendia com suas análises. Era, muitas vezes, ácido, mas sem perder a caridade.
Pe. José Comblin conhecia a Tradição e o Magistério. Sabia passear pela História da Igreja e do mundo. Estudava história, teologia, economia, sociologia e psicologia. Era um homem enciclopédico. Não tinha quem o refutasse, porque estava muito além. Apesar de ousado na arte de pensar a fé em Jesus na Igreja, não foi censurado pelo Vaticano. Não foi cassado. Era respeitado pelo episcopado e pelo clero dotado de bom senso e inteligência. 
Pe. José Comblin era um doutor da Igreja dos Pobres, profundamente humilde. Viveu e morreu pobremente, sem vaidade. Quem o conheceu de perto, viu sua simplicidade. Escutá-lo era algo fora do comum, dada a sua sabedoria. Falava com simplicidade. Era um mestre da fé, que gostava de deixar as consciências inquietas. 
Meus pais estudaram a denominada "teologia da enxada" com ele. Eu era adolescente. Quando meus pais chegavam em casa com os livros, eu fazia questão de ler tudo. Posteriormente, fui comprando os livros dele. Tornei-me, indiretamente, seu discípulo. Depois, passei a me corresponder com ele, que sempre me respondia por e-mail. Eu dizia que queria ser padre, e ele me incentivava. Dizia que queria ser teólogo, para continuar o labor teológico, necessário à Igreja. Ele ficava feliz com esse meu desejo.
Quando faleceu, eu estava no noviciado da congregação da missão. Ele me acompanhava em minhas inquietações. Seus conselhos eram certeiros. Às vezes, duros. Mas realistas. Ele era de um realismo que doía na gente. Era como Jesus: simples, objetivo e amável. Desde 2011, ele me ajuda com sua intercessão. Quando preparo a homilia, recordo-me dos seus ensinamentos. Ele dominava as Escrituras, e isso me ajuda até hoje. É meu intercessor. 
Sinto-me desafiado a continuar na fidelidade ao Evangelho, estimulado pelo seu testemunho. Ele me dizia que temos que pregar o Evangelho. Somente. Esta é a nossa missão. O que vem além disso não é o essencial. É o que tenho procurado fazer. Certa vez, me disse que se o anúncio não incomodar, não é anúncio, é maquiagem. 
Pe. José, meu irmão, olhe por mim e pela Igreja, nesta hora desafiadora da humanidade. Que o Espírito de Jesus faça nascer na Igreja profetas como você. A carência de profetas é grande, e como disse Dom Helder, seu amigo, ao monge Marcelo Barros: não vamos deixar cair a profecia. Jamais.
(**) Pe. Tiago de França -  Diocese de Parnaíba, PI.

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