Por Rafael Oliva (*)
Quem é sergipano ou anda por essas bandas a algum tempo já deve ter ouvido isso: “É porque sergipano não gosta de sergipano”. Esse é um dos principais mantras que reverbera no imaginário coletivo daqui, mesmo quando as cidades estão em silêncio. Políticos, artistas, jornalistas, feirantes, seu próprio povo se encarrega de repetir, mas será mesmo que eles estão certos?
Existem diversas formas de colonizar um povo, os portugueses, por exemplo, proibiam o uso de qualquer idioma que não fosse o deles durante o Brasil Imperial, extinguindo diversos idiomas indígenas até hoje. Os europeus pintaram Jesus Cristo a sua imagem e semelhança, um cara que nasceu no oriente médio, se apropriando até do Deus de um povo. Os negros foram proibidos de jogar capoeira e mais a frente de fazer samba. No final das contas, a jogada do colonizador é se apresentar como o iluminado, o enviado, o todo poderoso, enquanto tenta convencer o povo colonizado de sua feiura e pequenez. Tal qual fizeram e ainda fazem com o povo indígena e o povo preto, a ideia é apagar quem somos.
Quando Sergipe ainda fazia parte da Bahia, as oligarquias açucareiras daqui - pequenos grupos de famílias que detinham o poder político por essas terras - foram contrárias a independência de nosso estado. Fizeram as contas e preferiam assegurar seu comércio com o vizinho - além de garantir o uso do porto da Bahia pra escoar seu açúcar - do que apoiar o movimento. Ora, se a ideologia elitista é disseminada através dos meios de comunicação e escolas, qual a mensagem que seria passada para as pessoas até hoje por uma elite que se negou sergipana num momento crucial na história de qualquer povo, como a sua independência. Negar a libertação de um povo, é negar suas particularidades, é tentar condená-lo ao esquecimento e esse projeto de apagamento de quem somos está ativo até hoje.
Lembro que nos tempos de escola, o livro sobre a história de Sergipe era indesejado. Os professores passavam por ele como a gente passa por um conhecido que não quer encontrar: depressa e sem se prolongar. Logo voltávamos para História Geral, para aprender os feitos dos outros, enquanto os nossos... repousavam no escuro, dentro da mochila. Mais velho e circulando nos bares, nas rádios e palestras e de forma tardia, alguns desses feitos me foram revelados. Calcinha Preta, Volume 1,2,3... todos tocaram sem parar em meu bairro, no saudoso conjunto JK, durante minha infância e adolescência, mas nunca associei que aquele sucesso estrondoso de repercussão nacional, da maior banda de forró eletrônico que já existiu, era sergipana. Fui cair em si já no alto dos meus 30 anos e me perguntei por quê. Teria sido desatenção minha ou faz parte desse projeto de esquecimento da gente? Inclusive, você sabia que temos mais um representante de peso no forró, na sua mais nova vertente: a pisadinha? Sim, Iguinho e Lulinha vem conquistando o Brasil e é de Canindé do São Francisco/SE. Você provavelmente não sabia, mas não se culpe, é intencional.
Cândido de Faria, Ilustrador de Laranjeiras/SE, foi amigo dos irmãos Lumière, criadores do cinema. Como artista gráfico foi a quem os irmãos delegaram a tarefa desafiadora de representar um filme, numa única peça estática, que é um cartaz. Ele, também quadrinista, definiu as práticas de design que são vistas até hoje nos cartazes contemporâneos. Cândido de Faria poderia ser o nosso Santos Dumont, mas esse orgulho nos é negado.
Quando garoto sempre acompanhei futebol por tabela, meus irmãos sabiam de tudo. É um universo que não é o meu, mas que por causa deles quase que se torna. E com a distância confortável dessa condição, era possível observar a contradição das crianças não torcerem para os times de onde nasceram. Ora ora... se não voltamos a colonização, ao rezar para o Jesus europeu, quando Jesus na verdade se parece mais com a gente. Esse movimento remonta dos tempos que a radio nacional só transmitia jogos de times do Rio e São paulo e dessa forma foi evangelizando um país a torcer para os times do eixo. Acontece que quando fui ao batistão pela primeira vez torcer pra o Dragão do bairro industrial, senti uma alegria e uma identificação com o futebol que nenhuma mesa redonda com jornalistas esportivos do Rio conseguiu me transmitir quando eu era criança. Acho que no fundo a gente sente quem se é e com o tempo vai ficando mais claro toda a violência que é praticada pra se retardar essa percepção.
Afirmar que um povo não gosta de si é uma forma direta de colonizá-lo e fazer com que esse próprio povo reproduza essa ideia por gerações é um grande feito, porém nefasto. A elite daqui continua até hoje, fazendo seus nomes na política, e suas políticas reproduzem as suas vontades. Ao negar, historicamente, a participação de artistas sergipanos no aniversário da cidade somada a falta de políticas públicas que estimulem a produção da arte e cultura por todo ano, fora da prática imediatista de realização de grandes eventos, a Prefeitura e a Fundação Cultural Cidade de Aracaju (FUNCAJU), no nome de Luciano Correia, negam mais uma vez o direito desse povo de se conhecer e bravejam com os pulmões cheios: “Sergipano não gosta de sergipano” . E assim continuam lavando as mãos, assim como fez Pilatos... branco e europeu.
(*) Artista, Cantor da Samba do Arnesto e Membro do coletivo Live Suas Mãos
Nenhum comentário:
Postar um comentário