Chico Alencar
PARA SACIAR A NOSSA SEDE
(breve reflexão para cristãos ou não)
Que maravilha o encontro de Jesus com a samaritana, relatado por João (4, 5-42) e lido hoje em milhares de comunidades de fé espalhadas pelo mundo!
Aquele encontro é exemplo de diálogo, de abertura ao outro, de comovente copresença.
Um aprendizado para nós, nesse mundo segmentado, fechado, individualista, preconceituoso, "lacrado"...
Jesus vai para a margem, para uma região discriminada. O peregrino sai da "zona de conforto". Humaníssimo, sente cansaço e sede. Busca a fonte de Jacó (em Sicar, na Samaria). "Era quase meio dia": claridade plena, no ápice da luz. Nada sob sombras, oculto.
No diálogo que ocorre há mil lições para o nosso hoje. As que mais me tocaram: 1 - Sem discriminações, Jesus conversa serena e profundamente com uma samaritana, de um povo odiado pelos judeus. Dialoga com uma mulher, o que era incomum na sociedade patriarcal e machista (que, em muitos aspectos, continua);
2 - "Dê-me de beber", abre ele o papo, reconhecendo na outra pessoa não uma "estranha", mas uma sua igual, que valoriza e da qual depende;
3 - Todo encontro fecundo é uma troca. Ao espanto da mulher, Jesus reage com palavras de afeto e estímulo: "se você conhecesse o dom de Deus, também me pediria e eu lhe daria água viva";
4 - A desconfiança é superada com a franqueza. A samaritana, de início, duvidou, apegada à tradição: "você não tem balde e o poço é fundo. Por acaso pretende ser maior que nosso pai Jacó, que nos deu essa fonte?". Amável desafiador, Jesus foi além: "aquele que beber a água que vou dar, nunca mais terá sede". O que pode saciar, de fato nossa fome e sede?
5 - O "lugar" de oração não está predeterminado. Não é o templo de Jerusalém, nem o monte Garizim, na Samaria. Mais o "como" que o "onde": "em espírito e verdade". A prece autêntica vem do coração, é expressão sincera do que de generoso descobrimos em nós mesmos.
Nossa fome e sede do Infinito, mesmo nos nossos corpos finitos, derruba fronteiras, rompe amarras, supera obstáculos, desmancha imposições.
João relata também que os discípulos ficaram admirados ao ver Jesus conversando com a samaritana, mas não ousaram questionar aquela "heresia". Recebem um toque: "meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar sua obra (...) Ergam os olhos e olhem os campos: já estão dourados para a colheita".
Ergamos os olhos, bebamos a água da vida, que sacia de fato! Ajudemos a realizar a obra maior, que é fazer desse mundo lindo e maltratado, tóxico e injusto, um espaço saudável de igualdade e fraternidade.
Para esse cuidado e essa ação, alimentemo-nos bem. Paulinho da Viola, dois milênios depois daquele encontro luminoso na fonte de Jacó, repete, iluminado, em "Dança da Solidão": "apesar de tudo existe uma fonte de água pura/ quem beber daquela água não terá mais amargura..."
(dedico essa reflexão menor à queridíssima Mara Kotscho - 1953-2023, que sempre buscou fontes de água pura)
Papa Francisco, que também bebe em mananciais cristalinos, completa amanhã dez anos à frente da Igreja Católica. Ele sofre imensa pressão dos conservadores. Mande mensagem por director@religiondigital.com
Hoje completam-se 10 anos de Francisco como papa. Destaco 10 características inéditas do seu pontificado:
1 - É o primeiro papa latino-americano, em 266 da história da igreja católica.
2 - Escolheu seu nome (era o cardeal Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires) como homenagem a São Francisco de Assis, o "poverello".
3 - Dispensou todos os sinais de ostentação, como crucifixo de ouro, estolas rubro-douradas e sapatos de luxo; mora, com outros religiosos, na Casa Santa Marta, e não nos aposentos exclusivos do Vaticano.
4 - Escreveu uma encíclica pioneira sobre a questão ambiental (Laudato Sì, sobre o cuidado da Casa Comum, 2015) e constantamente alerta sobre o colapso climático e a destruição do planeta promovido pelo sistema da ganância.
5 - Propõe uma nova economia mundial, fundada na solidariedade e na cooperação, e não na competição e na marginalização de milhões (Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, 2020).
6 - Afirma reiteradamente a necessidade da acolhida de tod@s, independentemente de sua orientação sexual, cor da pele e origem social ("quem sou eu para julgar?").
7 - Combate o clericalismo e quer uma igreja "em saída", que deixe as sacristias e vá para a rua, para o mundo; lembra também que o celibato dos padres não é um dogma e pode ser revisto.
8 - Sacode as estruturas emboloradas e "monárquicas" do Vaticano, e já denunciou o "alzheimer espiritual" da Cúria Romana.
9 - Tem grande apreço pelo Brasil, país de sua 1ª visita como papa (na Jornada Mundial da Juventude, em 2013): admira nosso carnaval e diversidade, e citou nosso poetinha Vinícius de Moraes na Fratelli Tutti: "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida".
10 - É, hoje, a personalidade mundial mais ecumênica e mais empenhada no fim das guerras, no combate à fome, à marginalização, à "cultura do descarte".
Francisco, 86 anos, está, quase sempre, bem humorado, expressão de sua profunda fé cristã, que não é alheia ao gosto de viver.
Por tudo isso, sofre perversa contestação dos conservadores, dos reacionários, dos negacionistas e fundamentalistas (inclusive de alguns bispos e cardeais).
Aos que pedem sua renúncia, responde com ironia: "exerço minha função sobretudo com a cabeça, não com os joelhos. Posso morrer amanhã, mas até aqui tudo está sob controle..." (citado por Bernardo Mello Franco, O Globo, 12/3/2023).
Viva Francisco!
Francisco na arte de Amarildo (Organic News Brasil)https://www.youtube.com/watch?v=hcTUBLHN2pc&t=1s
CANTA FRANCISCO
Dez anos de tensão: Cristianismo x Cristandade
No domingo, 19 de março, completam-se dez anos do início do ministério do papa Francisco como bispo de Roma e primaz das Igrejas da comunhão católico-romana no mundo. Por todo o mundo circulam análises e comentários sobre o que, durante este tempo, o papa Francisco deu à Igreja e ao mundo como avanços necessários e também sobre as possíveis limitações e lacunas de sua atuação.
A realidade da Igreja Católica, em Roma e no mundo, pode ser olhada a partir de ângulos e critérios diversos. Sem dúvida, atualmente, na maioria dos ambientes católicos, respira-se uma liberdade e energia renovadora, que não havia em 2013, quando o papa Francisco assumiu. Desde os últimos 50 anos, finalmente, um papa voltou a dialogar com a humanidade, sem ser para falar sobretudo de moral sexual, ou reafirmar os velhos dogmas, ainda formulados na linguagem greco-romana. Além disso, nestes dez anos, nenhum teólogo ou teóloga foi condenado/a pelo Vaticano. E, pela primeira vez, desde séculos, grupos católicos, padres, bispos e até cardeais criticam abertamente o papa e não sofrem punição canônica.
O papa Francisco retoma e busca atualizar as principais intuições do Concílio Vaticano II que, antes, tinham sido rejeitadas pelo Vaticano e por amplos setores da hierarquia. Ele valoriza as dioceses, não mais como filiais de uma multinacional e sim como comunhão de Igrejas, cada qual com rosto próprio e o direito de se inserir na vida e cultura do povo. Para fortalecer a comunhão de todas, Francisco lança a proposta da Sinodalidade, como modo normal da Igreja ser. Redefine a missão como serviço ao mundo e a partir dos mais empobrecidos. São conquistas importantíssimas. No entanto, só se realizam a partir de uma mudança de paradigma. Supõem a superação do modelo de Igreja-Cristandade, no qual a Igreja é vista como hierarquia clerical, com prestígio e poder paralelo aos poderosos do mundo.
Na América Latina, durante séculos, conhecemos a Cristandade colonial. Ela legitimou e abençoou a conquista e a colonização. Atualmente, ainda mantém elementos de pensamento e ação de tipo colonial. Recoloca dentro da Igreja elementos teológicos e espirituais da religião dos sacerdotes e escribas do templo de Jerusalém no tempo de Jesus e os mistura com roupas e estruturas da antiga religião romana, que o Cristianismo substituiu.
A Cistandade reinterpreta os evangelhos a partir da ótica da religião que Jesus denunciou como hipócrita e desumana. Prega um Deus patriarcal, todo-poderoso, amigo dos que se submetem à sua lei e cruel para os que não lhe agradam. É um Deus que reis e rainhas podem se apresentar como representantes dele. No passado e até hoje, em nome dele, ainda há patriarcas e bispos que abençoam armas e defendem guerras.
A Cristandade substituiu o Cristo crucificado e nu pelo Cristo Rei.
Ao povo, reserva apenas devocionalismos barrocos e superficiais. Em recente viagem ao sul da Itália, ao ver como jovens seminaristas se vestiam, o papa Francisco falou: “Imagino que vocês se vistam assim para expressar a saudade de suas avós. No entanto, o povo espera de nós mais do que isso”.
Para essa Igreja-Cristandade, pastorais sociais e Campanha da Fraternidade podem ser adendos ou acréscimos às tarefas eclesiais. No entanto, não fazem parte da missão da Igreja que deve ser só religiosa e espiritualista. Claro que isso não impede que esses mesmos padres e bispos defendam governantes de direita que, com armas na mão, gritam: “Deus acima de tudo”. Mesmo grupos evangélicos e pentecostais sonham em ver suas Igrejas dominando o país e este ser governado, não pela Constituição e sim pela Bíblia, interpretada o mais possível, ao pé da letra, de acordo com os gostos de seus pastores.
Ao deixar claro que a meta de suas propostas é retomar o evangelho de Jesus, o papa Francisco revive no Vaticano de hoje a solidão que, em décadas como 1970, profetas como Helder Camara e Pedro Casaldáliga no Brasil, assim como Oscar Romero, em El Salvador, viviam em suas relações com os seus irmãos no episcopado e com o papa em Roma.
Uma Igreja que se olha como Cristandade não pode aceitar pastores assim. Como poderia aceitar as propostas do papa Francisco? Sinodalidade, sim, mas contanto que se garanta a Hierarquia.
No evangelho, Jesus afirmou: “Na casa do meu Pai, há muitas moradas” (Jo 14, 1). A diversidade entre conservadores e progressistas sempre existiu e pode enriquecer a catolicidade das Igrejas. O que não ajuda é quando o conservadorismo é pretexto e arma para impedir a profecia do evangelho. Nesse contexto, Jesus deixou claro: “Não adianta pôr remendo novo em roupa velha, ou vinho novo em odres velhos. Para vinho novo, os barris têm de ser novos” (Mc 2, 22).
Leia e assista também:
quinta-feira, 2 de março de 2023
Dez anos com Francisco, o primeiro papa realmente global:
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ZÉ VICENTE NA HOMENAGEM AO PAPA FRANCISCO, PELOS DEZ ANOS DE PONTIFICADO.
A Opção Francisco: uma lufada de ar e virada profética. 10 anos de pontificado
Francisco: por meus dez anos como Papa, quero a paz como presente
A comunicação do Papa Francisco: 10 anos em 10 pontos. Artigo de Moisés Sbardelotto
Francisco: sonho com uma Igreja mais pastoral, mais justa, mais aberta
Há uma dimensão geopolítica pouco notada, no papado de Francisco. Ele deseuropetizou a igreja – da composição do Colégio dos Cardeais ao comando das ordens católicas. Sua aposta: Velho Continente, “criança mimada”, não pode comandar mais nada
Padre Zezinho: Papa Francisco um continuador
https://www.youtube.com/watch?v=DVnjrtO6J9Q&t=6s
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