Romero Venâncio (UFS)
Publicada em 2022 pela editora RECRIAR, a coletânea sobre a Teologia da Libertação já nasce "clássica". Faltava algo assim no Brasil. São 34 textos sobre os diversos temas transversais que marcam e desafiam uma das formas mais originais de se fazer teologia na América Latina. E em dois volumes. A organização ficou a cargo dos teólogos Edward Guimarães, Emerson Sbardelotti e Marcelo Barros.
Depois da coleção "Teologia e Libertação", acredito ser pouco provável encontrarmos uma coletânea tão ampla e tão ousada no campo teológico brasileiro. Obviamente que todos os temas trabalhados pelos autores/autoras na coletânea fazem alguma fronteira com os temas propostos no índice: memória, balanço e perspectivas. Sem contar com alguns temas desafiadores pela atualidade. Não consigo ver um tema relevante dentro da Teologia da Libertação que ficou de fora da reflexão presente nos dois volumes. Trajetória, ecumenismo, hermenêutica bíblica, Concílio Vaticano II, Igreja na América Latina, pneumatologia, direitos humanos, arte, mercado, opção pelos pobres, educação popular, gênero, perspectiva indígena, teoquilombismo, pluralismo religioso, decolonialidade, temática LGBTQIA+, ecoteologia, mística, língua e alteridade... Impressionante o conjunto de temas trabalhados todos numa perspectiva teológica libertadora.
Pelo currículos dos organizados e de todos e todas que escreveram seus ensaios, percebe-se tempo de estudo, seriedade na pesquisa teológica e posicionamento em termos de lugar social onde se pratica a teologia. As Igrejas cristãs (sérias) devem notar este trabalho coletivo. Um esforço gratificante. Um farol para as gerações mais novas de cristãos/cristãs num país em que as instituições cristãs tem uma divida histórica e um passado suspeito diante de genocídio indígena e escravidão negra. Mas ainda no presente, vemos uma leva considerável de religiosos cristãos colaborando com ideais fascistas e de extrema direita. Uma onda "negacionista" entrou com força dentro de várias igrejas cristãs e isto gerou uma imensa desconfiaça sobre a teologia (ou a negação dela) praticada nestas instituições.
Destacaria três méritos fundamentais na coletânea:
Primeiro. O necessário balanço (crítico) do que foi a Teologia da Libertação no continente latino americano e seus desafios atuais. Nenhum dos colaboradores fala em "morte" da Teologia da Libertação, mas todos têm uma abordagem crítica e livre no seu tema. Não se trata de textos apologéticos. Muito pelo contrário. Nada mais estranho a uma teologia como a da libertação se limitar a uma defesa apologética e dogmática. Pelo visto, as pessoas sabem do que escrevem não só por capacidade intelectual no assunto, mas porque vivem cada um à sua maneira a experiência da Teologia da Libertação.
Segundo. Os textos demonstram a vitalidade da Teologia da Libertação. Com todas as críticas e perseguições que sofreram teólogos e teólogas e toda uma propaganda panfletária sobre temas superficiais que nada definiam os rumos da Teologia da Libertação... Apesar de tudo isto, ela continua sendo necessária num continente que cada vez mais carece de libertação. A vitalidade é demonstrada pela capacidade de incorporar novos temas teológicos e para além deles. A coletânea demonstra o quão sério é a teologia quando levada a sério num continente carente de reflexão rigorosa em teologia.
Terceiro. A maneira como foi destacado temas atuais e de difícil trato num país cada vez mais marcado por um conservadorismo galopante. Entre 2013 a 2018, um Brasil reacionário ganhou notoriedade nas redes digitais (de sociais não têm quase nada), nas Igrejas e nas ruas. Com a vitória de um extremista de direita nas eleições de 2018, não restou mais dúvidas de que país vinha à público. As agressões a feministas, homossexuais, transexuais ou ao movimento negro foi uma constante. Um anticomunismo delirante ganhou força e obviamente, a Teologia da Libertação virou coisa demoníaca. Merece destaque como se trabalhou com as temática no campo LGBTQI+, negritude, gênero e a perspectiva indígena. Sempre cuidadosa, criteriosa e fundamentada teologicamente.
Uma característica importante da Teologia da Libertação desde seu inicio formal nos nos 60 foi sua capacidade criativa e engajada. Uma teologia que não tinha medo ou perplexidade diante da modernidade. Uma teologia que nunca se iludiu com a lógica do capital. Uma teologia que sabia do seu lugar social. Uma teologia que na sua pastoralidade sempre imaginou uma "igreja que se fazia povo". Por certo, o campo religioso brasileiro mudou muito nos últimos 50 anos e a Teologia da Libertação soube acompanhar tais mudanças sem perder a ternura e o vigor fundamentais numa teologia.
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