domingo, 17 de setembro de 2023

A necessária revolução cultural para enfrentar o neoliberalismo e o neofascismo. Por Margareth Menezes, Jamil Chade, Célio Turino e Juca Ferreira.

 https://www.youtube.com/watch?v=38HQnbB8UXA

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, recebeu jornalistas da mídia alternativa para uma entrevista coletiva, sobre a supervisão do setor cultural e da democracia no país, com a participação de Regina Zappa da TV 247.




https://www.youtube.com/watch?v=MIVA_q7q5IE&t=82s

Ao se fazer mudanças na LAB de cima para baixo se inverte o sentido de  uma lei  que foi construída de baixo para cima, mesmo com os limites restritivos impostos pela pandemia da covid 19,  mas não impeditivos de uma potente construção coletiva que reuniu fazedores de cultura na base, parlamentares aliados da cultura e gestores culturais, mesmo a revelia do governo Bolsonaro.

Algo semelhante no Brasil só tem paralelo com a apresentação das emendas populares a assembleia nacional constituinte nos anos de 1986 e 1987, tendo sido  inclusive aprovadas algumas dessas no texto da Constituição de 1988,   como a que prevê os mecanismos de democracia direta: iniciativa popular de lei, plebiscito e  referendo.

Célio Turino é historiador, escritor, gestor de políticas públicas e idealizador dos Pontos de Cultura, programa referência no Brasil, América Latina, Vaticano e etc., como exemplo de política pública para inclusão de populações vulneráveis e marginalizadas em ações culturais participativas e libertadoras.    


Juca Ferreira: “A curto prazo é cota de tela, regulação do streaming e das grandes plataformas”

13 de setembro de 2023 - Bia Abramo e Guto Alves

O ex-ministro da Cultura trata da crise no audiovisual brasileiro, alerta para a precarização do trabalho no setor e no avanço das grandes plataformas de streaming: “O Brasil virou terra de ninguém”. Segundo Juca Ferreira, é hora de retomar a cultura como uma política de Estado para a formação de cidadãos e instrumento de identidade nacional

Apesar dos bons ventos que sopram as políticas de fomento do Ministério da Cultura, o Brasil tem enfrentado uma verdadeira crise na indústria do audiovisual nacional: desde o cinema aos streaming de grandes companhias estrangeiras que invadiram o país e colocaram em desequilíbrio a relação com direitos autorais e trabalhistas do setor. 

A pendenga é grande. Trabalhadores e entidades representativas de classe e das grandes emissoras e conglomerados de mídia brigam em Brasília em busca de regulação e garantias de direitos autorais para todos. A solução é simples, afirma Juca Ferreira, ex-ministro da cultura de Lula e Dilma: é preciso ter pressa. “A gente já tem mais de oito meses de governo e ainda estamos quase sem inaugurar uma política [para o audiovisual] do terceiro governo Lula. Isso vai dando uma sensação de urgência, uma ansiedade, uma necessidade”, admite. 

Juca fala sobre suas atividades na nova função, como assessor da Presidência do Banco Nacional do Desenvolvimento de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Aqui, compartilha suas ideias, análises, críticas e projeções para o audiovisual nacional. 

Apesar de afastar de si a ideia veiculada pela imprensa, a de que cuidaria apenas da economia criativa, Juca põe o dedo nas feridas do setor e defende a retomada urgente de uma estruturação programática, com organização, metas e, sobretudo, um observatório que trace diagnósticos de problemas, de demanda e que e dialogue com o público brasileiro. 

Juca, que tem uma carreira extensa na gestão da cultura e muita experiência na área, vê o futuro como otimismo: “Os BRICS estão gritando para nós como uma bola quicando na porta do gol, pedindo para que a gente apresente um projeto de política cinematográfica, de audiovisual comum”, destaca. “Eu diria que em dez anos, nós podemos chegar entre os dez maiores distribuidores e exibidores e nossos produtos, poderão ocupar um espaço razoável do mercado mundial. Para isso, vai ter que ter investimentos e enfrentamento dos gargalos”

A dificuldade do setor, no entanto, não reside apenas em deficiências públicas, aponta o sociólogo, que critica a pouca relação do que é criado com o público. “Vou apontar um grande erro: o cara tem uma ideia, transforma em roteiro, concorre num edital, ganha e faz o filme. Aí o filme está acabando e ele já está em outro projeto, outro edital”, aponta. “Não pode ser assim. Se produz para um mercado, se produz pra dialogar com as necessidades, os desejos, as vontades e as tendências dos espectadores. Isso está pouco desenvolvido no Brasil. A dimensão principal do cinema, que é a relação com o público, não aparece como um fator importante na dinâmica da produção”. 

Aos criadores, produtores e diretores, Juca pede que ouçam e vivam o Brasil profundo. Ele diz que ainda há muitas histórias e uma alegria viva que não é retratada. “Os europeus carecem um pouco de produção de felicidade. Eles precisam ter acesso a certas coisas que os povos pré-capitalistas tinham e que, pela desordem da formação do Brasil, ainda é vivo no Brasil. O corpo ainda é vivo no Brasil, fala. A alegria ainda é uma presença social forte. A celebração ainda é uma prática concreta no país. Não é só o carnaval, São João, festas de final de ano… A gente precisa transformar toda essa gente, essa qualidade, na possibilidade de sermos felizes também. Nós não podemos nos enxergar apenas como máquinas produtivas”, diz. 

Nesta entrevista, ele debate problemas como a regulação do streaming, e da importância do audiovisual brasileiro se estabelecer como uma indústria como qualquer outra, que precisa de planejamento e gestão. “[Hoje] não há valorização nem da obra de arte, nem do trabalhador, nem do roteirista, nem do técnico, nem de ninguém. Isso só se resolve com regulação”, aponta. 

Focus Brasil — O senhor ocupa hoje o cargo de assessor do BNDES, com o presidente Aloizio Mercadante. Como tem sido esse trabalho? 

Juca Ferreira — Quando eu fui contratado pelo BNDES, saiu na imprensa que eu iria cuidar da economia criativa, da cultura e da indústria cultural, mas não é verdade. Eu sou assessor do presidente do BNDES, do Aloizio Mercadante. Um assessor de presidência é uma espécie de conselheiro que também recebe algumas tarefas executivas. A primeira grande tarefa executiva que eu recebi, e que partiu de uma proposta que já era minha, foi a de organizar este seminário sobre audiovisual [ocorrido em 30 de agosto, no Rio de Janeiro), porque o setor está parado e há uma erosão séria de tudo o que nós fizemos desde 2003. 

— Exatamente essa que tem sido a queixa de muita gente do cinema, do audiovisual; a paradeira e a desconstrução de políticas públicas consolidadas. Como está vendo este cenário? 

— A pandemia, somada ao governo passado, causou um estrago enorme no setor. Desde 2003, no primeiro governo Lula, o Ministério da Cultura criou uma política para o setor, investiu – e o que se investiu não foi pouco — para construir um novo ciclo do cinema e do audiovisual. Na verdade, a atenção ao audiovisual nem existia. Começou com a gente essa iniciativa de construir políticas e orientar investimentos. Tivemos muita discussão com o próprio setor. Por exemplo, cineastas, principalmente do Rio, e alguns de São Paulo, não queriam que a gente disponibilizasse recursos para todo o Brasil com uma argumentação de que, ao se tratar de indústria, teria que concentrar os investimentos. 

E nós defendemos que a infraestrutura pode ser concentrada, mas há o lado cultural, a criatividade, a possibilidade de se ver na tela, de ter que ser disponibilizada para todo Brasil. Só pra vocês terem uma ideia da grandeza do que fizemos: quando o presidente Lula assumiu pela primeira vez, o Brasil fazia menos de dez filmes por ano. Em 2016, quando a Dilma foi afastada, nós estávamos fazendo 200 filmes por ano, saímos de 10 para 200. Não é pouca coisa, não. E filmes feitos no Ceará, Pernambuco, lá na Região Amazônica, no Centro-Oeste, ou seja, as nossas políticas foram ultra bem-sucedidas, mesmo que com erros e insuficiências nos processos de construção.

— Quais os maiores desafios que a indústria do audiovisual brasileiro enfrenta? 

— No caso dessa indústria, no Brasil, a indústria do cinema, do audiovisual, do cinema de animação e dos games, ela passa por etapas. Chegamos até o momento de estar perto de precisar uma revisão geral. Por exemplo, o critério da quantidade de filmes é bom porque cria a possibilidade da produção em todo o Brasil: treina pessoas, treina a equipe técnica, os diretores. Nós tivemos um processo de construção bastante generoso, o que potencializou e muito a qualidade do cinema brasileiro. No entanto, chega um momento em que você tem 200 filmes, mas não tem onde exibir. Isso já mostra que é preciso uma política que articule produção, distribuição e exibição. Era essa transformação que nós iríamos fazer quando veio o golpe em 2016, afastando a presidenta Dilma. De lá para cá, nós só tivemos a destruição. A pandemia praticamente inviabilizou as salas de exibição. Caímos para um número muito pequeno de espectadores, com raras exceções, como foi agora o caso da “Barbie”. 

Agora, na verdade, o prejuízo que o governo passado causou é muito maior do que o que a pandemia causou. Se por um lado a pandemia quase inviabilizou a sala de exibição, a pandemia estimulou o streaming, que é também um mercado importante para o cinema e audiovisual. A pandemia criou um contexto negativo, mas não deixou até de participar de uma dinâmica que já vinha acontecendo, na verdade, ajudou a acelerar, que é essa possibilidade do consumo do audiovisual e do cinema via streaming. Agora, Bolsonaro desestruturou todo o sistema regulatório. Até a cota de tela que vem de Getúlio Vargas foi limada, afastada, foi dispensada. Os sistemas de fomento, incentivo e financiamento também foram inviabilizados. 

— Qual a diferença do cenário que o primeiro governo Lula encontrou para agora, em 2023, duas décadas depois?

— Quando o presidente Lula foi eleito em 2022, encontramos um ambiente desolador. Agora, comparando com o ambiente de 2003, nós temos algumas condições melhores do que naquela época. Naquela época, quando o Lula foi eleito pela primeira vez em 2002 e assumiu em 2003, nós só tínhamos praticamente produção no Rio e São Paulo, uma ou outra esporádica em algum lugar do Brasil. E nós constituímos uma estrutura que ainda está viva. Está precária, com dificuldades gigantescas de sobreviver, mas tem aí uma estrutura de produção, de distribuição, de exibição que não se desfez completamente. Há empresas que se fortaleceram muito nesse período todo dos governos Lula e Dilma e, hoje, competem com distribuidoras estrangeiras. Então, nós temos uma realidade que é bastante séria, negativa, mas que tem um potencial de uma retomada, pra gente construir um novo ciclo. 

— Como reconstruir esse novo ciclo? Como deve ser? 

— A construção exige o enfrentamento de uma série de desafios. O primeiro é que todos os órgãos públicos estão precários, nessa área de cultura em geral, mas particularmente na sua relação com o cinema e audiovisual: o Ministério da Cultura, a Ancine, o BNDES… A ação predatória e de hostilidade ao cinema e ao audiovisual teve um efeito bastante devastador. A primeira grande tarefa é fazer o dever de casa. É preciso que os órgãos que se relacionam direta ou indiretamente com cinema e audiovisual façam mais do que uma faxina, façam um reordenamento interno urgente para que possam voltar a ter eficiência. Caso contrário, vão ficar enxugando gelo e fazendo marketing vazio. Todos têm que fazer isso e eu não sou a palmatória do mundo, não cabe a mim botar o dedo nas perebas. 

Eu gosto de ser parte da solução, mas é preciso analisar com sinceridade a situação em que ainda estamos. E, a partir daí, é preciso constituir imediatamente uma grande articulação de todos os setores públicos e a gente construir um plano de ação harmônico, articulado e planejado, comum. Só que ainda tem militares dentro, trabalhando no governo Lula, trabalhando para hostilizar os produtores, militares que foram pra lá para isso. Por que nós não temos autonomia para botar o dedo onde precisa ser posto e modificar a situação? É preciso urgentemente fazer um diagnóstico comum, o que foi um dos desafios na preparação deste seminário. Nós, no BNDES, nos reunimos com quase 100 pessoas do setor: produtores, distribuidores, artistas e nós. Estamos com um diagnóstico praticamente pronto de onde estão os estrangulamentos, os ativos que a gente ainda tem… 

Muita gente fala da Coreia do Sul, toma como exemplo. A Coreia do Sul saiu de índices menores do que o nosso, índices de público, de capacidade de fazer filme e hoje está bombando. Tudo foi fruto de uma política consciente e articulada em cima de um diagnóstico onde o poder público e os setores privados se mobilizaram para alavancar essa grande economia do cinema e do audiovisual. Agora, nossa experiência passada não pode ser desprezada também não. A gente sai de menos de 10 filmes para 200, criamos uma estrutura de produtores em todos os estados, todas as capitais do Brasil. O que a gente tem que fazer é, na verdade, enfrentar os gargalos, as insuficiências, os erros que já estão devidamente detectados e partir para organizar esse novo ciclo mais permanente.

— Entrevistamos recentemente a Marisa Leão [ex-presidente da Riofilme e produtora executiva de cinema], e uma coisa que ela cobra é um plano de metas. Segundo ela, não adianta distribuir fomento sem ter uma meta do que a gente quer para o audiovisual brasileiro. Como deve ser estabelecida essa meta?

— Não é só a meta. A gente tem que definir as metas e fazer um planejamento estratégico, onde estarão as metas. Eu diria que em dez anos, nós podemos chegar entre os dez maiores distribuidores e exibidores e nossos produtos poderão ocupar um espaço razoável do mercado mundial. Para isso, precisamos ter investimentos e enfrentamento dos gargalos. Como disse, na estrutura pública, tem gargalo em todos os órgãos, todos eles agravados pela pandemia e pelo governo passado. São precariedades estruturais, falta de profissionalismo, dificuldade de planejamento, falta de dados etc. Vamos ter que criar um observatório, vamos ter que fortalecer a infraestrutura. A infraestrutura existente não é suficiente para dar sustentação ao novo ciclo. Já não foi da vez passada e agora que não será mesmo. Com a ambição que estamos tendo de exportar os filmes, o audiovisual brasileiro, e criar uma política consistente de ocupação do nosso mercado para sair dos números bastante precários para, se possível, mais da metade do mercado ser ocupado pelo cinema e pelo audiovisual brasileiro. 

Para acontecer tudo isso, precisa de formação de quadros em todas as áreas técnicas e de produção artística e de estratégia para botar o nosso produto no mercado internacional. Podemos pensar em criar um mercado comum na América Latina e criar um sistema de coprodução, de intercâmbio com os BRICS [o grupo de países integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Os BRICS estão gritando para nós como uma bola quicando na porta do gol, pedindo para que a gente apresente um projeto de política cinematográfica, de audiovisual comum. Só os países que constituem os BRICS, representam mercado gigantesco. A América Latina,  outro — e aí podemos incluir os países africanos de língua portuguesa e os de língua espanhola, Portugal e Espanha… Ou seja, a gente tem aí um mercado potencial enorme e precisa organizar esse processo. Temos que pensar a longo, médio e curto prazo. 

A longo prazo, temos que investir na formação de quadros, temos que investir em uma infraestrutura, temos que criar as estratégias de ocupação do nosso mercado e de distribuição satisfatória no mercado mundial. Agora, a curto prazo, é cota de tela, regulação do streaming no Brasil e regulação das ações das grandes plataformas. E no momento, a plataformas são predatórias: se apropriam do direito autoral e do direito patrimonial, encostam a faca no pescoço das empresas brasileira, então precarizada pela ação do governo passado e tomam praticamente o direito patrimonial sem nenhuma chance de negociação e se apropriam também pela precariedade do nosso pessoal do direito autoral. É necessário regular o mercado logo, para ontem. É urgente sair dessa inércia.

— Na pandemia o streaming cresceu, mas esse é um movimento que já vinha crescendo em investidas, sem regulamentação e adequação de leis trabalhistas. Nesse meio tempo, muitos profissionais se formaram e se prepararam para entrar na indústria, como roteiristas, mas encontraram uma situação de contratos abusivos e uma relação predatória com produtoras. Como arrumar essa bagunça com o avião do setor pronto pra decolar?  

— Precisa ser saudável [a indústria do audiovisual]. Saudável para todo mundo. Proteção para os nossos autores, para nossos técnicos, para nossos empresários. Como tem no mundo todo. O mundo inteiro está regulando o streaming, regulando as operações no seu território dessas plataformas globais. Onde não tem regulação, eles [streamings estrangeiros] operam de uma forma, eu não vou dizer selvagem, porque o selvagem não tem nenhuma responsabilidade sobre isso, mas de uma maneira animalesca, eles querem devorar o que nós construímos e querem se apropriar. Os nossos artistas, produtores, roteiristas, técnicos vão trabalhar por um pagamento aviltado porque não tem condição de negociação, não tem regulação, é terra de ninguém. O Brasil virou terra de ninguém na área do cinema e do audiovisual. E sabe o que é que eles dizem? Eu ouvi de uma da dirigente mundial de uma dessas plataformas. “Quando existem leis, nós cumprimos. Quando não existe, nós avançamos”. É assim.

— Toda essa chamada “retomada descentralizada” do cinema brasileiro, apesar dos erros mencionados, estimularam muito a produção nacional. Quando o senhor foi secretário de Cultura do governo Haddad [na prefeitura de São Paulo], a questão da distribuição e da exibição dessa produção já estava posta e uma das soluções foi a criação da SPCine. Como serão enfrentadas essas questões agora, em escala nacional? Como organizar essa indústria? 

— Criamos uma empresa pública com o SPCine, que continua dando certo, porque quem nos substituiu na prefeitura deu prosseguimento ao projeto. Agora, eu estou falando das dificuldades do lado público porque hoje são principais, mas há dificuldades também do lado dos que fazem cinema no Brasil. O cinema brasileiro ainda não chegou a uma equação de leitura do que é o mercado nacional. Todo o mercado cinematográfico e do audiovisual é segmentado, tem gostos variados que apontam para filmes diversos. O cinema americano é ultra nichado. Lá, eles chegam a prever exatamente quais territórios querem ocupar e os filmes são feitos em função dessa expectativa. Eles têm mecanismos permanentes de leitura do mercado, são capazes de detectar tendências para isso. Aqui, vai ser necessário criar um observatório para que a gente possa ter essa capacidade, essa agilidade na relação com o mercado. Agora eu vou apontar um grande erro: o cara tem uma ideia, transforma em roteiro, concorre num festival, aí ganha um edital e consegue os meios para fazer o filme. Aí o filme está acabando, ele já está correndo para outro projeto, tem outro edital… Ou seja, a dimensão principal, que é a relação com o público, não aparece como um fator importante na dinâmica da produção. Não pode ser assim. Se produz para um mercado, se produz para dialogar com as necessidades, os desejos, as vontades, as tendências dos espectadores. Isso está pouco desenvolvido no Brasil, muito pouco desenvolvido. É uma arte industrial. O cinema é uma atividade industrial complexa, que envolve muitos setores e envolve grandes investimentos. Então, tem que ter um diálogo, mas não precisa submeter a estética. Você ainda pode pensar o seguinte: faremos filmes para o mercado ou filmes que contribuirão para o desenvolvimento da linguagem que, mesmo tendo um público menor ou até insignificante, vai contribuir para o avanço da atividade. O que não pode é fazer por nada, isso não pode. Essa é a lógica de erro que não é de ninguém, é uma lógica que se estabeleceu espontaneamente exatamente pela falta de mecanismos de relação com o público. Essa é a grande diferença com a Coreia, com os Estados Unidos, com a própria Argentina, que foi um país que criou mecanismos de atender demandas do público. 

— Se pensarmos na Coreia, para cada “Parasita”, por assim dizer, se produz uma baciada de dorama para adolescente. E ao país interessam ambos. E aqui, como resolve esse nó? 

— Não é difícil resolver. É o que eu disse: nós temos desafios de longo, médio e de curto prazo. Primeiro, organizar a casa de cada órgão, criar essa estrutura articuladora para definir a política de Estado. E nas nossas próprias regras de aprovação, vamos ter que prever os filmes que contribuem para linguagem, que são importantes culturalmente, e os filmes para o mercado. O ideal é que os dois critérios estejam nos mesmos filmes, mas às vezes não acontece isso. Você falou na Coreia: também se produz muita bobagem lá, mas é bobagem que o público gosta. Então, gera dinheiro, gera economia. A gente tem que ter uma visão complexa sobre isso, não banalizar o cinema e audiovisual, mas ao mesmo tempo não ignorar a necessidade de dialogar com o público e satisfazer suas demandas e necessidades. Isso já tem que estar na própria regra. E a gente tem que ter um observatório para fazer a prospecção das tendências, porque o público muda muito. O que ele quer assistir hoje, pode não querer amanhã. Então, sim, é preciso agilizar a liberação dos recursos, o tempo entre a aprovação de um projeto e a liberação do recurso. O tempo no Brasil é muito demorado, burocrático. Não é possível se construir filmes competitivos num mercado que tem concorrentes extremamente elaborados e experientes com essa agilidade de paquiderme. Não pode.

— Com sua experiência, como gestor de cultura, como está lendo o Brasil de hoje? De que histórias precisamos? 

— Vamos fazer uma pequena diferenciação. Uma coisa é o gosto do público, outra coisa é o que o Brasil precisa. Às vezes, o público ainda não sabe que precisa. Então, o cinema tem uma função pedagógica também de formação da nação, de formação, de cidadania e de valores. Esse é o lado mais cultural. O outro lado é a demanda concreta. E temos que aprender a combinar isso no nosso cinema e no nosso audiovisual. Todo produto industrial tem um nível de planejamento bastante rigoroso. Por exemplo, um fabricante de sabonete, ele quer entrar no mercado. Ele sabe que ele vai precisar fabricar um certo número de sabonetes para que em cada gôndola de um supermercado tenha um certo número para estar ali exposto. Aquele sabonete tem que ser fruto de pesquisa, que vão dizer que tem que ter certas características de cheiro, consistência; o nome e o rótulo vão ter de atender a certas fantasias e necessidades do público. E a determinação do público vai constituindo o produto de alguma maneira. Todo o processo anterior de preparação e de fabricação é em função de atingir aquele resultado. No cinema, há processos semelhantes. É preciso ter um planejamento, saber aonde se quer chegar e isso tem que dialogar com a dimensão cultural, com essa outra dimensão que é a necessidade da nação de elevação do nível cultural, de informação, de formação de valores, de fortalecimento da nossa democracia — que ainda está em perigo — de fortalecimento da sustentabilidade da nossa sociedade, de preparar a nossa população com a vida mais sustentável… Tudo isso, todos esses processos têm que estar combinados com as necessidades da demanda, senão a gente faz bons filmes que só vão passar em sala de aula, que os alunos serão obrigados a assistir. 

— O cinema brasileiro não começou ontem. Por que até hoje não se compreendeu qual é a demanda do público?  

— Tem que ter uma sinergia, uma sedução do público, tem que satisfazer certas expectativas. É nessa construção que está nosso lado mais fraco e foi o que nos diferenciou dos coreanos e de outros cinemas bem sucedidos. Nós temos que retomar o que fazíamos, aprimorar o que é esse conjunto de medidas, regulações, processos de fomento e incentivo e, por outro lado, mudar a lógica do cinema no sentido de que ela é uma arte industrial e que vai ter que ter um diálogo com o público, senão não se sustenta, se é precário o tempo inteiro. E nós temos essa  possibilidade. Ninguém duvida que o Brasil tem possibilidades de fazer grandes filmes e filmes de interesse do público. Qualquer cineasta do mundo vai citar um Glauber Rocha como uma referência. “Limite”, do Mario Peixoto [1931, Rio de Janeiro], está em qualquer lista dos 100 maiores filmes feitos no mundo. A gente já tem uma estrada, já tem um trabalho feito. É preciso retomar essa grandeza. Eu ouvi um exibidor dizer o seguinte — ele disse exatamente isso que eu vou dizer: “Eu ganho mais dinheiro com o cinema americano, mas eu sou um velho militante do cinema brasileiro. Às vezes, eu quero passar um filme brasileiro, mas não tem um na praça para satisfazer a necessidade do mercado naquele momento”. Ou seja, não basta a cota de tela. Cota de tela garante um mínimo, mas o cinema tem que ter um conjunto de produções que sejam capazes de atender várias expectativas de um mercado consumidor segmentado. Já está meio óbvio isso e acho que essa vai ser uma grande mexida nesse novo ciclo. 

— Como convencer o setor privado de que investir em cultura, no audiovisual, não e “gastar dinheiro” ou uma ação de promoção de marca? 

— O cinema brasileiro já é superavitário em relação ao investimento do poder público. Além de gerar emprego, tem toda uma conotação de mobilização de vários setores pela complexidade da produção. Agora, não podemos falar só de cinema. Tem o cinema de animação e os games. Os games brasileiros estão entrando no mercado mundial sem a gente perceber, apesar de toda precariedade, tecnológica. Então a gente tem que falar dos três e só até a segunda página a gente pode falar em termos comuns. Em seguida, é preciso diferenciação de pessoas, de estratégias distintas, de compreensão desses mercados e modos de produção distintos. A gente já tem mais de oito meses de governo e ainda estamos quase sem inaugurar uma política do terceiro governo Lula. Isso foi dando uma sensação de urgência, uma ansiedade, uma necessidade. E nós construímos algo sinérgico com esse seminário. Os órgãos públicos estão dispostos a contribuir para a construção desse novo ciclo, todos os setores do cinema e do audiovisual se interessaram. Nós temos catalogado uma quantidade enorme de desafios. A questão de aprofundar mais a regionalização e a capacidade de produzir em todo o Brasil. Os gargalos de mercado: a questão da exibição, por exemplo. É preciso recuperar as salas de exibição. Vários países na pós-pandemia já estão conseguindo avançar nos índices de público nas salas de exibição. O Brasil até agora não fez grandes coisas nessa área, então tem um conjunto de problemas graves e urgentes que não couberam no seminário. 

— Durante a pandemia, por conta da paradeira da produção, o mercado de formação de profissionais do audiovisual foi grande, mas os pequenos produtores e criadores iniciantes não conseguem botar as coisas para fora. Esse seminário do BNDES discutiu esse problema? 

— Só de leve, de passagem, mas esse é um tema importante. Quando você pensa essa economia, como ela é uma economia cultural, você tem que pensar no ecossistema como um todo. Política de formação de circulação, circuitos de exibição alternativos. Na Europa, por exemplo, tem um circuito universitário que passa também por centros culturais que é economicamente poderosíssimo. Já pensou criar capacidade de exibição em todas as universidades e nas faculdades, nos centros culturais? Talvez você chegue rapidamente a um mercado exibidor maior do que esse comercial que nós temos. Tudo isso foi e está sendo  equacionado. Agora, você tem que ir no núcleo duro do problema para abarcar todo o universo, senão você se perde, fica numa ação dispersiva, sem capacidade de mudar a qualidade do problema. Eu acho que a gente está tendo consciência dessa vez da radicalidade que nós temos que ter com um planejamento que tenha um caráter estratégico de longo prazo e, ao mesmo tempo, em frente às questões comezinhas, imediatas, como é a regulação do streaming, voltar aos editais e a reorganizar o Conselho Nacional do Cinema e do Audiovisual.

— Um grande desafio e uma urgência é o empoderamento da classe trabalhadora do setor. Nos Estados Unidos ocorre a maior greve de roteiristas unidos a atores em 50 anos. No Brasil, entidades representativas de classes do setor têm brigado em Brasília por regulação e por direitos autorais. Como avalia essa briga? 

— Quando a gente fala em regular a presença das plataformas do streaming é para garantir a proteção dos trabalhadores, dos diretores, dos roteiristas, dos técnicos, dos distribuidores, dos que trabalham nessas empresas cinematográficas e do audiovisual. O mercado desregulado tende à uberização e à precarização. Repito: a gente virou terra de ninguém total. E não há valorização nem da obra de arte, nem do trabalhador, nem do roteirista, nem do técnico, nem de ninguém. Isso só se resolve com regulação. 

— Como é que você está vendo o clima político em geral e esse começo do “Lula três”?

— Eu acho que o governo está bem. Lula é um gigante, que vai virar o principal líder do Sul Global e um dos maiores líderes da conjuntura mundial. E isso falando de paz, falando com sinceridade de que a responsabilidade da guerra da Ucrânia é da OTAN, que tenta cercar por míssil a Rússia; e é da Rússia, que quebrou um paradigma e invadiu o território. É preciso que se reponha uma certa racionalidade para que a gente possa restabelecer o ambiente de paz. A paz lá da Ucrânia é importante porque está sendo construído um clima de Guerra Fria no mundo, o que não interessa a ninguém e é uma tentativa de parar o processo de hegemonização da economia mundial por parte da China. Isso é muito perigoso — quando o complexo industrial militar determina as políticas do Ocidente. E Lula também é um defensor da justiça social. Abraçou a defesa da Amazônia, o que vai se ampliar para paradigmas de valores e indicadores de sustentabilidade no projeto de desenvolvimento do país. O Brasil está voltando a ser um personagem importante no cenário internacional. Estamos bem na economia, com todas as dificuldades do mundo, porque houve uma demolição gigantesca. Mas vai acontecer a reindustrialização e a política brasileira é medíocre mesmo. O ambiente é bastante poluído. Apesar de tudo isso, estamos recuperando o caminho da democracia e o caminho do desenvolvimento. O padrão de vida da população está melhorando aos pouquinhos. Agora, é preciso incluir a cultura. A cultura precisa estar no núcleo central do projeto de desenvolvimento do país. 

A extrema direita está perdendo força no Brasil, mas tem uma base cultural reacionária, conservadora e misógina. E a forma de contornar isso, não tem outra, é a cultura, meu irmão. Cultura na escola, na formação de valores. Eu estive uma vez com a ministra da Educação da Alemanha, e perguntei: “Como é que vocês formam essa consciência ambiental e de sustentabilidade aqui na Alemanha, ao ponto de abrirem mão de um certo conforto para adotar padrões energéticos saudáveis?” Ela disse: “A educação na Alemanha tem três objetivos. A primeira é formar novas gerações para o mercado de trabalho e a segunda é criar uma sociedade tolerante. A base cultural da Alemanha não é propensa à convivência com o diferente. Então, é preciso que a educação reconheça a Alemanha como uma sociedade plural e ajude a consolidar essa relação para não gerar distorções sociais. E o terceiro grande objetivo é a sustentabilidade. Estamos formando novas gerações que têm introjetado na consciência a importância de comportamento responsável com a natureza e com o planeta”. Eu achei genial isso, mas na saída eu tive uma ideia: faltou um componente que é equipar os indivíduos e a sociedade das novas gerações para que tenham acesso a uma possibilidade de felicidade, de realização plena de uma subjetividade complexa.  •


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