Por Alexandre Medeiros - Publicado: 22 Setembro 2023
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Pouca gente se dá conta, mas no próximo dia 1º de outubro o Brasil voltará às urnas. Em um cenário que reproduz a dicotomia entre os campos progressista e conservador, os eleitores escolherão os novos conselheiros tutelares que serão responsáveis, nos próximos quatro anos, pela garantia de direitos de crianças e adolescentes de todo o país. Na eleição de 2019, o avanço das forças ultraconservadoras sobre os conselhos, sobretudo das denominações evangélicas mais retrógradas, como a Universal, ligou o sinal de alerta. Este ano, o campo progressista tem se mobilizado para levar os eleitores às urnas e reafirmar a necessidade de eleger conselheiros comprometidos com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“As eleições para os Conselhos Tutelares deste ano assumem uma relevância sem precedentes. Além de ser uma oportunidade para escolhermos representantes dedicados à defesa dos direitos das crianças e adolescentes, é também um momento de reafirmarmos nosso compromisso com a democracia, que esteve sob ameaça nos últimos anos”, argumenta a pesquisadora Miriam Krenzinger, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ. “Em um cenário onde segmentos partidários e religiosos ultraconservadores estão se apropriando de espaços institucionais de poder e promoção da cidadania, é essencial que a sociedade se mobilize. Escolher representantes alinhados com os direitos humanos e os princípios democráticos é mais do que uma pauta, é um dever cívico”.
GARANTIA DE DIREITOS
Criados na esteira da redemocratização do país pós-ditadura militar, os Conselhos Tutelares foram instalados a partir de 1990, logo depois da aprovação do ECA. Os conselheiros atendem reclamações, reivindicações e solicitações feitas pelas crianças, adolescentes, famílias, comunidades e cidadãos. Agem também de forma preventiva, atentos a qualquer sinal de violência — física, psicológica ou sexual —, abandono, negligência ou situações de risco.
Os eleitores irão às urnas para escolher 30.500 representantes em 6.100 Conselhos Tutelares. De acordo com o ECA, cada município brasileiro deve ter ao menos um Conselho Tutelar, composto por cinco conselheiros. O Estatuto prevê a proporção mínima de um conselho para cada 100 mil habitantes. Mas alguns municípios — como o Rio de Janeiro — estão longe da composição ideal.
“A cidade do Rio de Janeiro tem 19 conselhos e deveria ter, no mínimo, 63. Como cada conselho tem cinco integrantes titulares, a cidade não tem nem 100 conselheiros”, observa a professora Miriam Krenzinger. “Temos então aqui no Rio um déficit de garantia desses direitos. Isso é também reflexo da ausência ou do não cumprimento da defesa dos direitos da criança e do adolescente como uma questão central das políticas públicas”.
MOBILIZAÇÃO
Os setores progressistas têm se engajado para tentar barrar o avanço do campo ultraconservador. No Rio, foi criada uma plataforma que conecta eleitores com candidatos comprometidos com o ECA (veja link ao fim do texto) e debates e lives na internet têm alertado para a necessidade de se eleger conselheiros defensores de direitos humanos.
“A influência de valores conservadores e igrejas neopentecostais, em especial da Igreja Universal, nas eleições para o Conselho Tutelar pode ter sérias consequências. Esses grupos muitas vezes promovem uma visão moralista que pode ser prejudicial para a diversidade de identidades e realidades das crianças e jovens, especialmente aqueles que pertencem a grupos marginalizados, como LGBTQIA+, negros, indígenas ou com algum tipo de deficiência”, alerta a advogada Leticia Teles, integrante do Ocupa Tijuca, coletivo que tem se empenhado na mobilização.
O Ocupa Tijuca vai promover duas rodas de conversa na região da grande Tijuca sobre a importância dessa eleição: domingo (24), às 10h, na Praça Xavier de Brito, e sábado (30), às 10h, na Praça Afonso Pena.
Leticia Teles e o psicólogo Caíque Azael, membro do Dicionário de Favelas Marielle Franco, publicaram um texto na internet em que ressaltam a importância das eleições do dia 1º. “Essas eleições desempenham um papel crucial na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, bem como na luta contra a influência de valores conservadores e igrejas neopentecostais. Os eleitores têm o poder de escolher candidatos comprometidos com uma abordagem inclusiva e respeitosa dos direitos humanos, garantindo que nossas crianças e jovens cresçam em um ambiente que promova a igualdade, a diversidade e o respeito pelos seus direitos fundamentais”, diz o texto.
Caíque Azael chama atenção para outro aspecto peculiar desta eleição: “As eleições para o Conselho Tutelar também são uma oportunidade de fortalecer a separação entre Estado e religião. Em um Estado laico como o Brasil, é vital que as decisões relacionadas aos direitos das crianças e adolescentes não sejam influenciadas por crenças religiosas específicas, garantindo que todos os indivíduos tenham seus direitos respeitados independentemente de sua religião ou orientação espiritual”.
O psicólogo ressalta também a importância dos Conselhos em comunidades onde as violações de direitos de crianças e adolescentes são mais incisivas. “No contexto de favelas e periferias, onde atuo mais fortemente, essa discussão é central porque esses direitos são frequentemente violentados, inclusive pelo próprio Estado. Quando ocupado por pessoas comprometidas com o ECA, o Conselho Tutelar pode ter um papel fundamental na articulação em rede e na defesa de direitos. Um conselho que veja essa juventude como um sujeito de direitos e não como um inimigo a ser aniquilado”, destaca Caíque.
Coordenadora-geral do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe-RJ) e integrante do grupo Sementes do Salgueiro, Sabrina Damasceno vivencia no dia a dia essas violações. “Temos sérios problemas de alfabetização no Salgueiro, o que foi agravado pela pandemia. E muitos problemas de saúde, principalmente relacionados à falta de estrutura adequada de água e esgoto. Há vários pontos da comunidade com esgoto a céu aberto, e isso acarreta problemas, sobretudo para as crianças, com um ambiente insalubre. Precisamos de pessoas no Conselho Tutelar que nos ajudem nessas questões, que sejam parceiras da comunidade. São crianças e adolescentes expostas a situações mais vulneráveis”, diz ela.
PLURALIDADE
Procurador da República no Rio de Janeiro, Julio José Araujo Junior, destaca que o respeito à pluralidade é fundamental na ação dos conselheiros tutelares. “Nós, do Ministério Público, acompanhamos de perto a necessidade de cumprimento do ECA, do respeito à legalidade, à Constituição. Temos forte interação com os Conselhos Tutelares. Os conselheiros eleitos têm que ter preparação e atenção para respeitar a pluralidade de atores, de famílias, de modos de vida em nossa sociedade. Isso é fundamental para que a gente não vitimize sobretudo a população mais vulnerável com a prática de arbitrariedades”, pontua Julio, que é procurador regional dos Direitos do Cidadão no MP-RJ.
Muitas vezes, a prática de arbitrariedades citada pelo procurador parte de quem seria responsável por combatê-la. Na quarta-feira (20), um pastor evangélico, então assessor parlamentar da Câmara de Vereadores de Nossa Senhora do Socorro (SE), foi preso preventivamente e indiciado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável contra uma adolescente. A vítima é filha da namorada do pastor. Detalhe: o criminoso era candidato ao Conselho Tutelar da cidade.
“Precisamos eleger pessoas que não reproduzam uma lógica racista, criminalizadora, misógina. Essa pessoa eleita vai ficar quatro anos incidindo diretamente na vida de crianças e adolescentes. É um poder imenso de entrar na vida das famílias e nos territórios. Esse poder pode ser usado para promoção e defesa, numa ação preventiva, mas pode ser utilizado com uma visão punitivista”, compara a professora Miriam Krenzinger.
O voto para os Conselhos Tutelares não é obrigatório. Mas, como se vê, é um voto fundamental. Ensinam os dicionários que o verbo tutelar, em seu sentido mais sublime, significa amparar, proteger, defender.
MAIS INFORMAÇÕES
Consulta aos locais de votação (Rio de Janeiro – RJ):
Conselhos Tutelares na cidade do Rio de Janeiro:
Plataforma de candidaturas alinhadas ao ECA:
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