Víctor Jara, um gigante da música que a selvageria de Pinochet não conseguiu calar
Em vida, deu voz à luta dos mais pobres; sua morte escancarou a brutalidade da ditadura de direita no Chile.
A reportagem é de Rodrigo Durão, publicada por Brasil de Fato, 06-09-2023. Em 30 de agosto último, um general chileno aposentado se suicidou quando a polícia bateu à sua porta para buscá-lo para cumprir sentença de prisão pela morte de Víctor Jara, ocorrida em setembro de 1973, dias após o golpe de 11 de setembro que mergulhou o país em uma sangrenta ditadura por 17 anos.
O suicida de 86 anos foi o único, dentre outros seis militares condenados pelo caso, que escapou de começar a cumprir a pena de 25 anos em regime fechado. As condenações dos outros, com idades entre 72 e 83 anos, foram um passo importante para o Chile fazer as pazes com os horrores da ditadura Pinochet (1973-1990). Mas o caso ainda não foi fechado. Ativistas buscam a extradição do ex-tenente Pedro Barrientos, que mora nos EUA, onde conseguiu cidadania.
Ele é considerado o responsável mais direto pelo assassinato do cantor, e a decisão de manda-lo de volta ao Chile para responder pelas acusações estão, atualmente, nas mãos de um juiz do estado da Flórida.
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O assassinato do Chile
O historiador Eric Hobsbawm escreveu uma análise nove dias após o golpe militar orquestrado pela direita em conluio com os EUA que matou o presidente socialista Salvador Allende. Com uma clareza cristalina escrita no calor do momento, ele detalha como o golpe se consumou e o governo da Unidade Popular (UP) sucumbiu.
https://jacobin.com.br/2023/09/o-assassinato-do-chile/
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Allende e o mosaico chileno, 50 anos depois
O novelo de feridas e fantasmas de 1973. A conspiração militar, passo a passo – e as digitais dos EUA. Os perigos às democracias que temem confrontar o passado. E a voz de Victor Jara, sob a barbárie: “o silêncio e o grito são as metas deste canto”.
Publicado 11/09/2023 em: https://outraspalavras.net/
Por Pedro Cardoso, na Revista Buala
Tenta-se entender que Chile é este que hoje esperneia – perna esquerda, perna direita, perna esquerda, perna direita – ante meio século de trauma e negação. 50 anos depois do assalto das tropas de Pinochet ao Palácio de la Moneda, em Santiago, a 11 de setembro de 1973, e o corte brutal do sonho socialista de Salvador Allende. Um democrata que concretizou, então, melhor que ninguém, o sonho progressista de uma nação.
Estas são cenas avulsas de uma revolução, golpe, morte, de um conflito. Com fantasmas que nunca partiram. E outros monstros que ainda caminham por aí, no tumultuoso país cor de cobre.
I. Espectro
Pode um espectro sobreviver 50 anos? Pode uma consciência adormecer, covarde, tanto tempo? Um disparo no último dia 29 de agosto explodiu um “sim, pode”. Nessa terça-feira, a justiça chilena condenou sete ex-militares de Pinochet por envolvimento no sequestro, tortura e assassinato de duas figuras ícones do regime de Allende: o cantautor Victor Jara e o advogado Littré Quiroga. Isso 50 anos depois. Ambos foram assassinados entre 15 ou 16 de setembro de 1973 (as versões variam) no Estádio Chile, em Santiago.
Nesse tal 29 de agosto de há duas semanas, as autoridades chilenas bateram, então, à porta de Hernán Carlos Chacón Soto, um dos acusados. Com uma pena de 25 anos de prisão sobre os ombros, o antigo brigadeiro do Exército chileno, 86 anos, abriu. Ao perceber o que acontecia, pediu um momento para tomar um medicamento e entrou em casa. Descobriram-no, já morto. Os fantasmas do Estádio Chile romperam em pranto.
II. Viva o Chile!
“Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no vosso destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo, onde a traição procura prevalecer. Continuai a saber que, muito mais cedo do que tarde, voltareis a abrir as grandes avenidas por onde passa o homem livre para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!”
Despedida do Presidente Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, a partir do Palacio de la Moneda, aos microfones da Radio Magallanes. Poucos minutos depois, ante o avanço das tropas de Pinochet no recinto, suicidou-se.
III. Espectro II, o perplexo
O suicídio de Hernán Carlos Chacón Soto, o ex-militar que a Justiça demorou 50 anos em condenar é, talvez, o melhor exemplo do novelo de feridas e fantasmas em que o país se emaranha cada vez mais. O Chile está fraturado na gestão da memória e do legado de Salvador Allende e Pinochet. A oportunidade para refletir sobre a história de todos esvai-se em negação, revisionismo e ódio reacendido.
Em maio passado, uma sondagem da CERC MORI, “Chile à sombra de Pinochet – A Opinião Pública sobre a ‘Era Pinochet’ 1973 – 2023”, indicava que 36% dos chilenos, mais de 20% do que em 2013, consideram que houve uma razão para um golpe de Estado no Chile. “33 anos após a retomada da democracia e 50 anos após o golpe militar, o Chile vive um ressurgimento de Pinochet no meio da mais importante crise social, política e econômica desde o retorno à democracia”, concluiu a instituição, alertando ainda para o “baixo conhecimento da ditadura”, sobretudo entre “os mais jovens com menos de 35 anos”.
A todos os níveis, o desconcerto é absoluto. Apesar da importância da data, os partidos nunca chegaram a consenso sobre como assinalar ao certo estes 50 anos. No mês passado, o impensável aconteceu em pleno Congresso, com uma declaração parlamentar anacrônica e enviesada da direita e da ultradireita a defender que Salvador Allende violou, sim, a ordem institucional.
O presidente Gabriel Boric, de esquerda, e eleito em 2021 (também a braços com uma Constituição herdada da ditadura cuja revisão está encravada num processo constituinte sem fim à vista), já avisou que não pactuará com “revisionismos”. Prega um pouco no deserto. Nem o Plano de Busca de Desaparecidos da ditadura chilena que apresentou, o primeiro liderado pelo Estado ao fim de tantas décadas, conseguiu reuniu consenso.
“Acho que a sociedade chilena está desorientada, não temos um norte claro. Qual o projeto de país? Quais são as normas básicas que nos congregam? (…). Estamos num remoinho com correntes diversas que deixaram a cidadania perplexa”. Análise à BBC, do chileno Hugo Rojas, doutor em Sociologia pela Universidade de Oxford e professor de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.
IV. A História, entonces
1970. Pela primeira vez na História, e numa época convulsa de guerras polares, um presidente marxista era eleito popularmente para liderar um país. Salvador Allende chegava à presidência do Chile. O espanto varreu o mundo. A esquerda revitalizou-se. Os Estados Unidos, paranoicos com um “tsunami comunista”, e com o fim do monopólio nas gigantes minas de cobre chilenas, tremeram.
Os anos que se seguiram trouxeram mudanças profundas. Apoiado pela população e odiado pelos oligarcas, Allende implementou uma reforma agrária, nacionalizou o cobre (o tal que estava antes nas mãos dos EUA), melhorou os direitos dos camponeses e trabalhadores. Propôs-se a tirar da miséria milhões de chilenos.
Dois anos durou este caminhar no fio da navalha da ordem mundial. Como admitiria anos mais tarde Henry Kissinger, os Estados Unidos de Nixon tudo fizeram para minar a economia chilena e derrubar o sistema. A estratégia resultou. Em pouco tempo, a superinflação asfixiou o país e o desabastecimento alimentou um crescente mercado negro. A desestabilização estava em marcha e os passos seguintes não tardaram a surtir efeito. O Democracia Cristã, maior partido da oposição desses tempos, cerrou fileiras. Grupos de ultradireita entraram em cena, financiados, treinados e dirigidos pelos artífices da infame Operação Condor com que os EUA sangraram a América Latina progressista nos anos 1970. Atentados terroristas a infraestruturas sucediam-se, imparáveis.
Em meados de 1973, a tensão política e militar estava a ponto de estalar. Ante a instabilidade e os maus resultados da economia, que afetavam diretamente as classes mais pobres que tentava proteger, em 11 de setembro de 1973, Allende preparava-se para apresentar um plebiscito para que os chilenos decidissem se permaneceria ou não no poder. Antes de poder fazê-lo, militares golpistas liderados por Augusto Pinochet (à frente do comando militar apenas há um par de semanas, depois de um golpe palaciano), bombardearam o Palácio de la Moneda, a sede do governo em Santiago do Chile, onde estava o presidente, desatando o caos. Com os soldados no seu encalço, Allende suicidou-se.
O resto já se sabe. O novo regime pôs de imediato em marcha uma brutal máquina de repressão, e um sistema de políticas econômicas neoliberais, tão selvagens como a brutalidade que se estendeu por 17 anos, até 1990, quando a ditadura acabou, finalmente. Os números demonstram a dimensão conhecida da tragédia. Segundo a Comissão da Verdade e Reconciliação do Chile, 28 mil e 429 pessoas foram vítimas de tortura durante a ditadura no país. Mais de 3 mil e 200 foram assassinadas ou desaparecidas.
Pinochet morreu em 2006, no Chile. Tentaram apanhá-lo, são bem conhecidos os esforços de Baltazar Garzón para o julgar por genocídio, crimes de lesa humanidade e terrorismo. Sete vezes lhe retiraram a imunidade judicial. 300 processos pendiam sobre sua cabeça. Apesar de tudo, nunca foi julgado.
V. Desclassificar documentos
“A deputada estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez disse, no Chile, que é imperativo que os Estados Unidos desclassifiquem documentos que possam lançar luz sobre seu envolvimento no golpe de Estado de 1973.”
AFP, 17 de agosto de 2023
VI. Manifestações no Chile reivindicam Pinochet
“Várias centenas de pessoas manifestaram-se este sábado em frente ao palácio presidencial de La Moneda, na capital do Chile, para reivindicar a figura do ditador Augusto Pinochet, dois dias antes do 50º aniversário do golpe militar que mudou o destino da nação sul-americana.
Com faixas em espanhol e inglês onde se lia ‘50 anos depois, o Chile contra o comunismo, de novo’, e com bandeiras nacionais e muita iconografia alusiva a Pinochet em forma de pinturas, fotos, bandeiras ou bustos, os manifestantes – entre 200 e 300, segundo estimativas da imprensa – elogiaram a figura do ditador, que continua a dividir o país.
‘Eu amo o meu país, amo o Chile’, dizia uma faixa empunhada por uma mulher, com a figura de Pinochet vestida com traje militar. Uma bandeira mostrava também as caras de vários generais golpistas proeminentes.”
VII. El conde: sátira feroz sobre Pinochet de Pablo Larraín para a Netflix e versão vampiresca e latina de Succession
Ver-ouvir trailer do filme "El Conde", aqui: https://www.youtube.com/watch?
No filme El Conde, “o chileno Pablo Larraín oferece uma sátira feroz sobre a longa sombra de Pinochet, que se estende como um espectro através da realidade chilena atual. O filme estreia-se na plataforma Netflix a 15 de setembro, é candidato ao Leão de Ouro do 80º Festival de Veneza.”
“O Pinochet que constrói Larraín não é um fantasma, mas um vampiro (interpretado por Jaime Vadell) que vegeta num rancho no sul do Chile depois de simular a sua morte. Transformado num velho indolente e desencantado, o ditador vive com a sua esposa, a pérfida Lucía Hiriart (Gloria Münchmeyer), e um empregado (Alfredo Castro) que o conde vampirizou depois de exercer como torturador durante o período da ditadura. Pinochet sente-se traído pelo seu país, que o considera um ladrão corrupto e ganancioso, e depois de viver 250 anos anseia encontrar a morte. No entanto, o seu desejo colide com os interesses dos seus cinco filhos, que tentam saquear a fortuna do pai, e com a misteriosa aparição de uma jovem freira contratada para exorcizar o ditador.”
“Para além do exercício da fabulação histórica, ‘El Conde’ dispara com raiva contra o legado de Pinochet, que sobrevive fortemente num Chile que, após a eclosão social de 2019, parece agora à mercê da ascensão de uma ultradireita liderada por José Antonio Kast, herdeiro do ditador. Larraín sabe bem o que significará para o público chileno contemplar a imagem icónica do vampiro Pinochet cruzando os céus da atual Santiago do Chile e passeando pelo Palácio de la Moneda. E o diretor de ‘Neruda’ também acerta ao afirmar que, além de seus crimes contra a humanidade, a cruzada de Pinochet soube transformar o país num ninho de ‘heróis da ganância’”.
Leia mais em Manu Añez, “Fotograma”
VIII. Victor Jara, sempre
Victor Jara foi fuzilado poucos dias depois do golpe militar (DR)Voltamos a Jara, mais além do seu carrasco suicida.
Victor Jara é “o trovador do governo socialista de Allende”. Campesino de família pobre, depois da morte da sua mãe, viajou para Santiago do Chile, onde ganhou fama como diretor de teatro. A música veio depois. Influenciado pelo folclore chileno, descobriu o seu mundo como compositor e intérprete.
Militante comunista e artista profundamente comprometido com o movimento social e político do Chile daqueles anos, durante o governo de Allende criou autênticos hinos que cantavam essencialmente a vida dos mais pobres. Era extremamente popular.
O golpe de 11 de Setembro de 1973 apanhou-o na Universidade Técnica do Estado (UTE), onde era professor. Ombro a ombro com 600 acadêmicos, estudantes e funcionários, resistiu aos golpistas, até que os militares bombardearam a torre da reitoria. Foram imediatamente presos.
Em 2009, o corpo de Victor Jara foi exumado de onde fora enterrado às pressas depois do fuzilamento, em 1973, e enterrado com todas as honras. O jornal El Pais condensou na reportagem “A morte lenta de Victor Jara” os últimos instantes do cantautor no Estádio Chile, em Santiago, pelos olhos do amigo de cárcere e hoje advogado, Boris Navia.
“Cansados e com as mãos apertadas na nuca, os 600 acadêmicos, estudantes e funcionários da UTE, feitos prisioneiros pelos militares golpistas, entravam no Estádio Chile, um pequeno recinto desportivo perto do palácio de La Moneda. Um oficial de óculos escuros, rosto pintado, metralhadora, granadas penduradas ao peito, pistola e faca no cinto, observava de cima de um muro os prisioneiros, que tinham permanecido na universidade para defender o governo do presidente socialista Salvador Allende. Era 12 de setembro de 1973, um dia após o golpe militar.
De repente, ao ver um prisioneiro de cabelos encaracolados, o oficial gritou, com uma voz histérica:
– Aquele filho da puta, trá-lo aqui!”
– Aquele, aquele! – gritou para um soldado, que empurrou violentamente o prisioneiro assinalado.
– Não o trate como uma mulher, caramba! – berrou, insatisfeito. Ao ouvir a ordem, o soldado deu uma coronhada no prisioneiro, que caiu a seus pés.
–Então tu és o Victor Jara, o cantor marxista, filho da puta de comunista, cantor de merda pura! – gritou o oficial.
“O polícia batia e batia [em Jara]. Uma e outra vez. No corpo, na cabeça, dava pontapés furiosos. Quase lhe explodiu um olho. Nunca vou esquecer o som daquela bota nas costelas. O Victor sorria. Sempre sorria, tinha um rosto sorridente e isso decompunha ainda mais os soldados. De repente, um deles tirou uma pistola. Pensei que o ia matar. Continuou a bater-lhe com o cano da arma. Partiu-lhe a cabeça, o rosto do Victor estava coberto de sangue que descia pela testa.”
“Os presos ficaram atordoados ao olhar para a cena. Quando o oficial, conhecido como ‘El Príncipe’ (…) se cansou de bater, ordenou aos soldados que colocassem Jara num corredor e o matassem se ele se mexesse.”
“[Jara] está caído no chão. Um estudante peruano que é confundido com um cubano tem a orelha cortada com uma faca. A um professor de estudos sociais que trazia testes corrigidos dos seus alunos pedem-lhe as duas melhores notas. Entrega-as e obrigam-no a comer as folhas. Ameaçam cortá-los com ‘serras de Hitler’, metralhadoras de grande calibre cujas balas cortam corpos. Um trabalhador grita: ‘Viva Allende!’ e atira-se das bancadas, sangrando até à morte. O complexo tem capacidade para 2 mil pessoas, mas está superlotado com mais de 5 mil prisioneiros.”
“El Príncipe tem visitas de funcionários e quer expor Jara. Um oficial da Força Aérea tira um cigarro e pergunta a Jara se fuma. Ele nega com a cabeça. ‘Agora vais fumar’, avisa, atirando-lhe o cigarro. ‘Toma!’, grita. Jara estende o braço, a tremer, e pega no cigarro. ‘Vamos ver se vais tocar guitarra agora, seu comunista de merda!’, grita o oficial, pisando as mãos de Jara.
Quando chegaram mais prisioneiros e os soldados foram buscá-los, Victor ficou sem custódia. Entre vários, arrastámo-lo para onde estávamos e começámos a limpar-lhe as feridas. Estava sem comida ou água há quase dois dias. Um detido recebeu de um soldado um ovo cru. Deram-lho. Com um fósforo, ele fura o ovo nas duas extremidades e bebe-o. Disse-nos que foi assim que aprendeu a comer ovos na sua terra”.
“De repente, dois soldados agarram-no e arrastam-no (…) Começa uma surra mais brutal que as anteriores. Outros prisioneiros ainda verão Jara vivo algumas horas depois. Um polícia, José Paredes, confessou, 36 anos depois, que jogaram roleta russa para ver quem lhe disparava.”
“Ao anoitecer de sábado, 15 de setembro, os prisioneiros são transferidos do Estádio do Chile para o maior local desportivo do país, o Estádio Nacional. ‘Quando saímos, vimos um espetáculo dantesco. Havia entre 30 e 40 cadáveres empilhados (…) Todos estavam crivados de balas e tinham uma aparência fantasmagórica, cobertos com pó branco, porque nas proximidades havia sacos de cal para fazer reparações. O pó cobria-lhes os rostos e secava o sangue. Reconheci o Victor, em primeiro lugar, e depois o advogado e diretor dos presídios, Littré Quiroga”.
“Naquela noite, soldados despejam seis desses corpos, Jara entre eles, ao lado do Cemitério Metropolitano, no acesso sul de Santiago. Um vizinho reconhece o cantor e compositor e pede para o irem buscar. Quando o corpo chega à morgue, um funcionário deste serviço, que era comunista, também reconhece Jara e avisa a sua esposa, Joan, para sepultá-lo antes que fosse enterrado numa vala comum.
O corpo do cantor e compositor estava ao lado do de centenas de vítimas na morgue, no final de uma fila de jovens. Apenas três pessoas acompanham Joan no funeral semiclandestino que se realizou no Cemitério Geral de Santiago, onde foi sepultado num nicho humilde, aos 41 anos.”
“A primeira autópsia, em 1973, revelou 44 tiros. A nova, em 2009, confirma que morreu de múltiplos impactos.”
IX. O último poema
Instantes antes de ser arrastado pelos soldados e de ser fuzilado, Jara escreveu os últimos versos num caderno arranjado clandestinamente. Quando foi levado pelos militares, atirou o caderno para Boris Navia, que o conseguiu passar para fora da prisão.
Ver-ouvir: "Somos cinco mil" - Victor Jara con Inteligencia Artificial. Em: https://www.youtube.com/watch?
As folhas mergulharam na clandestinidade, saindo à luz um ano depois em duas versões. Ao longo dos anos, foi musicado por múltiplos artistas, como Isabel Parra em “Somos cinco mil”, e inspirou artistas plásticos e de cinema. Tornou-se símbolo de resistência à ditadura, tal qual como todas as canções de Jara. Há dias, uma versão de Inteligência Artificial calculou como Jara a teria composto e cantado, o clip circula pelas redes.
A horas de ser brutalmente assassinado, o poema originalmente conhecido por “Estádio Chile”, o lugar onde o executaram e que leva agora o seu nome, “Estádio Victor Jara”.
Estádio Chile
Somos cinco mil
Somos cinco mil aqui.
Nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos em total
Nas cidades e em todo o país?
Somos aqui dez mil mãos
Que semeiam e fazem andar as fábricas
Quanta humanidade
Com fome, frio, pânico, dor,
Pressão moral, terror e loucura!
Seis dos nossos perderam-se
No espaço das estrelas.
Um morto, outro espancado como jamais pensei
Que se poderia agredir um ser humano.
Os outros quatro quiseram tirar-se todos os temores,
Um saltando ao vazio,
Outro batendo com a cabeça contra o muro,
Mas todos com o olhar fixo da morte.
Que terror causa o rosto do fascismo!
Levam a cabo os seus planos com precisão astuta
Sem importar-lhes nada.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe
Um número que não avança.
Que lentamente quererá a morte.
Mas de repente me bate a consciência
E vejo esta maré sem latido
E vejo o pulso das máquinas
E os militares mostrando o seu rosto de matrona
Cheio de doçura.
E o México, Cuba, e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos que não produzem
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do Companheiro Presidente
Golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará o nosso punho novamente.
Canto, que mal me sais
Quando tenho que cantar terror.
Terror como o que vivo, como o que morro, terror.
De ver-me entre tantos e tantos momentos do infinito
Em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.
O que nunca vi, o que senti e o que sinto
Fará brotar o momento…
Da vitória de Salvador Allende ao golpe: uma cronologia
(Publicado em La Diaria | Tradução: Rôney Rodrigues)
1970
» Richard Nixon: “Se há uma maneira de destituir Allende, é melhor fazê-lo.”
» Entre 5 e 20 de outubro, a CIA contactou comandantes militares e agentes policiais no Chile em 21 ocasiões.
» O conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Henry Kissinger, atribuiu o golpe fracassado à “incompetência dos militares chilenos”.
4 de novembro – Allende sucede Eduardo Frei (DC) como presidente
A UP define avançar em direção ao socialismo respeitando as instituições vigentes.
» Após a posse de Allende, a Comissão 40 do Senado dos Estados Unidos aprovou um total de mais de sete milhões de dólares em apoio secreto a grupos de oposição no Chile.
» Chile estabelece relações diplomáticas com Cuba.
1971
» PIB aumenta (8,3%), o desemprego cai.
» Mobilizações populares em todo o país (movimento de expropriação iniciado por camponeses que antecipam a reforma agrária, ocupação de fábricas têxteis no sul, entre outras ações).
» Os Estados Unidos adotam medidas para sufocar a economia chilena.
» A dívida externa ultrapassa os 3 bilhões de dólares.
1972
» Pouco depois do golpe de Estado, a ITT recebeu 125 milhões de dólares de Pinochet como compensação, bem como 30 milhões de dólares da administração Nixon.
Por sua vez, comandos do Patria y Libertad patrulhavam as ruas e atacavam comerciantes e motoristas de caminhões ou ônibus que não apoiavam a greve. A ofensiva da direita e dos proprietários provocou reação dos trabalhadores. Os trabalhadores assumiram o controle das fábricas e retomaram a produção. Em muitos bairros populares, os trabalhadores eram diretamente responsáveis pela circulação e distribuição dos alimentos. Para os blocos habitacionais foram eleitos representantes encarregados de organizar a distribuição de alimentos. Surgiram cartões de racionamento e as chamadas “cestas populares de mercadorias”.
6 de novembro – Fim da greve dos transportes
1973
28 de março – Os militares deixam o governo
» A CUT pede ocupação de fábricas. As lutas duram três horas. Allende pede poderes extraordinários ao Parlamento, que são negados.
» Prats recomenda que Allende nomeie Pinochet para sucedê-lo no cargo, visto que ele tinha um longo histórico de serviço como soldado profissional e era considerado apolítico.
» O presidente Richard Nixon é informado das ações de terça-feira, 11, apoiando explicitamente a ação militar.
» No dia 9, no refeitório do comandante-em-chefe do Exército, no quinto andar do Ministério da Defesa, Augusto Pinochet é nomeado chefe dos golpistas do Exército.
10 de setembro – Allende convoca um referendo
11 de setembro – Golpe de Estado militar
Nas primeiras horas do dia, a Marinha assumiu o controle da cidade de Valparaíso, onde foram realizados os preparativos para o golpe no dia anterior.
8h20 Salvador Allende fala ao país com a esperança de que o levante se limite à Marinha e a Valparaíso.
8h40 A primeira proclamação do golpe é transmitida do quinto andar do Ministério da Defesa.
9h30. Os golpistas ofereceram um avião para Salvador Allende e sua família deixarem o país, mas receberam a seguinte resposta: o presidente não desiste! Começa o ataque terrestre ao Palácio La Moneda (sede da Presidência).
10h. Através da rede de rádio, os golpistas lançam o ultimato: “Se não houver rendição, La Moneda será bombardeado às 11 da manhã”.
10h30. Salvador Allende transmite sua última mensagem pela rádio Magalhães.
11h. Tropas militares atacam frontalmente o Palácio La Moneda.
11h52 Começa o bombardeio aéreo da sede do governo, provocando um incêndio e acompanhado de ataques de balas e bombas de gás lacrimogêneo. Em 16 minutos, os aviões lançaram 18 bombas sobre o prédio.
12h10 A infantaria ataca o palácio presidencial com artilharia e armas pesadas.
13h30. O presidente Salvador Allende aceita a rendição. Todos tiveram que sair sem armas, caminhando e com bandeira branca.
13h40 Depois de exclamar “Allende não desiste, merda!”, o presidente suicida-se com a metralhadora presenteada por Fidel Castro.
14h00 As tropas de ocupação entram no palácio.
22:00. A televisão transmite as primeiras imagens da recém-assumida Junta Militar. Diante das câmeras, Augusto Pinochet toma posse como presidente. Lê-se o Decreto-Lei 1, com o qual é implementado o estado de sítio.
23h30. A Universidade Técnica Estadual permanece cercada por soldados desde a tarde. Centenas de estudantes estão com professores e funcionários num único recinto; são suspeitos de resistirem ao novo regime e, sem o saberem, em estado de prisão coletiva.
Quatro dias depois, morrerá o funcionário mais famoso da universidade e uma das primeiras vítimas da repressão militar: Víctor Jara.
» Nas semanas após o golpe, foram abertos centros de detenção locais em todo o país (Vila Grimaldi e Colonia Dignidad).
» A repressão foi sistemática contra líderes, membros e apoiadores e partidos e sindicatos de esquerda que participaram ou apoiaram o governo de Unidade Popular.
» A UP não está preparada para enfrentar o golpe, apenas alguns cordões (bairros populares) lutam até o fim.
» A oposição ao novo regime é esmagada.
Imagine que um dia você descobrisse que seus pais não são os seus pais, o seu nome não é o seu nome e a história que lhe contaram a sua vida toda é fundada numa mentira? Mas, muito mais que isso, descobrisse que aqueles que você chama de pai, de mãe estiveram envolvidos no assassinato ou desaparecimento de seus pais biológicos?
Em 2019, o jornalista Eduardo Reina publicou o livro Cativeiro sem Fim: as histórias de bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil.
Assista a entrevista dada por ele ao Geração 68 sobre essas terríveis histórias.
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Lembrar para que nunca mais ocorra!
https://youtu.be/_G99Hq16Wxk?si=jb6TFt3M9rUBLhsp
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INTI ILLIMANI - EL PAÍS QUE SOÑAMOS
https://www.youtube.com/watch?v=vBuAbQ20ONY
"El país que soñamos" es un registro audiovisual realizado en los sitios de memoria del Estadio Nacional a propósito de la conmemoración de los 50 años del Golpe de Estado. Un esfuerzo de preservación de nuestra memoria histórica en oposición al negacionismo tan en boga en estos días.
Cuatro canciones que intentan reflejar el espíritu luminoso de los mil días del gobierno popular y el horror de los años de oscuridad que les sucedieron. Grabado a fines de agosto del 2023, es también el intento de cubrir en parte la deuda que sentimos con la memoria de Salvador Allende, con Víctor Jara y con todos aquellos que cayeron en la construcción de este sueño que sigue aún vigente en las esperanzas de nuestro pueblo.
El viaje que hizo la BBC a Chile después del golpe contra Allende | BBC Mundo
Pocos meses luego del golpe de Estado con el que Augusto Pinochet derrocó al gobierno de Salvador Allende en Chile, un equipo del programa Panorama de la BBC viajó al país para registrar la situación del país.
Este valioso material histórico tomado del archivo de la BBC refleja la realidad chilena en los inicios de la dictadura militar, que luego se extendería 17 años, dejando más de 40.000 víctimas, entre ellas, 3.000 muertos y desaparecidos.
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