sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

A confissão de um padre encarcerado

 Pe. Anderson Gomes

Do site da Arquidiocese de Aracaju 

Recordo da primeira experiência no cárcere. Foi nebulosa. Entrar num mundo que desconhecemos nos deixa amedrontados. Tanto pelos medos interiores, tanto pelos preconceitos exteriores. Quando ainda seminarista, fui chamado a fazer a experiência na Pastoral Carcerária, porém, cheio de interrogações.

A vida é assim: interrogações e exclamações. Não cabe a quem serve julgar ou arrogar a sua vaidade para olhar pra quem cometeu um delito, de cima para baixo. O fato é que trabalhar em presídio é complexo. No mundo, nem tudo é um mar de rosas. E, dentro de uma unidade prisional, você pode entrar e pode não sair, mesmo quando sua intenção é servir.

O psicológico de quem está recluso revira e a revolta chega. Há ali um mundo em convulsão. O óbvio se torna guerra de si contra si e contra todos.

Depois de anos, voltei a celebrar com os encarcerados. Agora sou menos romântico. Quando apanhamos na vida a gente olha no olho do criminoso, olhando além do seu crime, sendo capaz de ser firme e sendo capaz de restaurar a vida daquele ou daquela com um olhar de profundo amor, mas de necessária rebeldia. Não podemos nos envolver emocionalmente com quem está atrás das grades. Há, sim, o dever de servir com boas obras, de escutar, de mediar, de incluir socialmente dentro dos ditames da lei. Isso, vamos aprendendo.

Pois bem. Ontem, no meu Natal encarcerado, senti leveza. Nem todo mundo suporta a prisão, mesmo que seja por uma horinha.

Fomos bem acolhidos pelos policiais penais e pelos internos. Diga-se. Nem todo delinquente e nem tudo nele é mal em si. Se aperto o gatilho do mal em mim ou no outro o jogo pode se virar e, de padre que fala bonito posso me tornar réu. Então, tomo cuidado com o julgamento alheio. Ele pode ser sem volta. Falei da experiência do Cardeal Van Thuan para esses irmãos e irmãs. Senti atenção.

Pregação não é coisa de intelecto, é entrar no mundo do outro. Como as freiras que queriam pregar para as prostitutas na Itália e não sabia nada da vida delas. Elas precisaram entrar na noite da prostituição para falar ao coração e resgatar aquelas meninas. Pela via do Amor.

E algo me inquietou nesses tempos de 'catolicismo' retórico, obtuso e doentio... Um jovem lá estava e me procurou relatando sua vida, seus dilemas, suas revoltas. Ele, de consagrado de uma comunidade de vida, se tornou um interno do dia para noite. Parei e ouvi, sabendo do distanciamento interior para servir bem e não cair no romantismo do sagrado que deturpa o Sagrado e fere a fé. Ele me dizia: olhe padre, aqui somos gratos pelos resquícios de pastoral carcerária que ainda existem. Somos gratos e muito. Porém, sentimos falta de um verdadeiro apostolado. E citou nomes de duas denominações religiosas, e falou da sua presença diária orante e serviçal. Pensei comigo, fazendo a minha mea culpa: Onde chegamos? Onde estamos? Para onde estamos indo? Perguntas de quem ama, e ama o suficiente. Nunca o bastante. Pensei comigo: estamos na recessão da fé, nos tornamos, de modo geral, os vendilhões do templo. Distantes de Jesus e querendo morte de tudo e todos. E esquecemos do essencial: servir e amar.

A igreja e os pregadores paralelos ganham muito dinheiro com suas plataformas digitais, dividindo o coração do povo simples,escandalizando os pequeninos. Homens e mulheres que se revestem belamente, com raras excessões, têm retórica aguçada mas são violentas e promovem a divisão e ódio. São os demônios, não "da garoa", mas do incenso pagão, das vestes pagãs, dos likes anti-Evangelho. Que vivem na trincheira da morte, pregam a ideia de que o Papa Francisco é um herege e seu ensinamento não é fiel à Tradição. Aqui está um nó belicoso montado por grupos paganizados que, via mídia social, entra no bolso e na mente do povo. E destroça o tecido eclesial e fraterno.

É uma travessia na noite que o catolicismo romano passa nesse início de século XXI. Fico observando os delírios psicóticos e esquizofrênicos de muitos. E, se a gente não se cuidar, essas pessoas nos levam para a concepção doentia que elas têm de si e  transferem para o culto e para a vida eclesial uma neurose que atrofia nosso ser, nossos afetos e nossas relações. O primeiro passo da doença que a "fé" pode levar é a não concepção sadia da humanidade. Tudo, para quem é desintegrado, humana e afetivamente, vai desembocar na sexualidade humana, dom e ferida bela. Poeira enamorada.

A sexualidade humana é uma caixa de descobertas. Contemplar José e Maria, e o Menino no Natal, é transcender a concepção primitiva que temos da virilidade e genitalidade humana.

Precisamos nos reconciliar com o Amor! Quem não cuida não se trabalha para a aventura da presença e da companhia, vai gritar até cair na sua prisão interior.

Divaguei e volto ao meu cárcere de liberdade para dizer que, em algum momento, erramos não o Alvo mas o meio, os caminhos, os processos, a metologia catequética da nossa evangelização. Os teólogos eruditos condenam os teólogos da libertação. E assim por diante. Ou integramos a ferida aberta do outro que pulsa em nós ou seremos, de modo intermitente, infelizes e pregadores de frustrações mal resolvidas.

A propósito, divido a missão com um senhor que lê os grandes nomes da teologia da libertação. E vi, depois de algum tempo, que eu era um "delinquente religioso". Era audaz demais para debater temas da vida com quem já caminhou mais do que eu.

Precisamos voltar à origem do Cristianismo que é Jesus, amando e servindo os nossos irmãos e irmãs no concreto e no real. Aqui, na paróquia, tenho dito que a evasão é grande, pouco se adora, pouco se serve, pouco se ama e não tem problema. Pouco se medita a Palavra de Deus. Ele é Amor. Precisamos encontrar uns cinco pães e dois peixes e ir até os cárceres da vida e aprender a cantar ´Aleluia´, ´Noite Feliz´, ´Hoje a Noite é Bela´, e tantas músicas tecidas pelas vozes dos delinquentes que cantam, adoram, esperam e anunciam para o mundo "livre" que é Natal. Belém é aqui, aqui dentro de mim. O Menino está nascendo mesmo que eu tenha sido um infrator. Seja qual for a nossa ótica de vida. Sempre temos a aprender. E julgar é sinal de profundo vazio. Humano, existencial e espiritual.

Quem brinda só na sua Ceia não sente o frio do estábulo. É preciso descer aos infernos do nosso cárcere para ser redimido pelo Natal de Cristo. É Natal dentro e fora da cadeia. É Natal. E minhas algemas e correntes estão caindo por terra. É Natal, haja o que houver. Dorme Menino e cuida de todos nós. Os encarcerados e os livres. Todos Seus filhos e Filhas. Estive preso (Mt 25,36) e busco a Sua Liberdade...vosso, Pe. Anderson Gomes (pároco da paróquia São Pedro Pescador).

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Muito iluminado o Pe Anderson Gomes,  bem em sintonia com o pontificado de Francisco na linha da igreja em saída ao encontro das periferias existenciais e geográficas, o que exige o abandono interior de um pensamento religioso retrógado e negativo com relação a humanidade, a sua própria humanidade.

Zezito de Oliveira






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