segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

SOBRE A IGREJA. UMA NOTA ATUAL E UMA QUASE-MEMÓRIA

Romero Venâncio (UFS)

https://www.youtube.com/watch?v=-kzyjsoUHU8

Tenho pensado nos últimos anos e a partir dos estudos que faço sobre a direita católica nas redes digitais, na situação de alguns poucos bispos sérios, comprometidos com o Evangelho, com os pobres e com uma teologia moderna e em diálogo com o mundo sem amarras dogmáticas... A seguinte questão me vem: a diocese desse(s) bispo(s) tem um bom grupo de seminaristas numa idade boa de formação, estudo e compromisso pastoral... Que seminário vão estudar esses jovens? O Brasil católico vive hoje uma grande crise de/nos seminários. Uma parte considerável dos teólogos/teólogas com formação avançada têm pouco espaços nesses seminários e são obrigados a migrar para as universidades ou outros ramos profissionais. Os seminários estão se tornando cada vez mais um lugar de devocionalismos, decoreba do código de direito canônico (sem estudo sério), proibição de leituras em teologia moderna e contemporânea, uma histórica da Igreja toda falsificada e sem base e uma filosofia que nunca é filosofia (não passa de doutrinação tomista). Hoje é mais comum um seminarista ficar grande parte do tempo ouvindo os sermões mistificadores do pe. Paulo Ricardo do que ler um bom livro de teologia atual. Os padres formadores veem desta formação. Vira um círculo vicioso. Filosofia fraca, teologia pobre, devocionalismo tolo, despreparo para o mundo moderno e seus reais desafios... O que temos após essa gororoba deformadora? um padre tolo, buscador de vida fútil, frequentador de academias, pedófilo em potencial e completamente abobado em termos teológicos. Um típico vigário de direita. Queremos que Igreja com esta "formação"? Não queria está na condição de um bispo sério nesta hora. O problema é que grande parte do episcopado brasileiro nem tá ligando muito para isto. Quer ter padre de qualquer maneira. Missas a torto e a direita. Paciência.

Sempre que escrevo estas coisas me salta à memória uma quase-memória de meus tempos de Instituto de Teologia do Recife. Aprendi sociologia com pe. Humberto Plumenn, Psicologia com Sonia Sarmento, teologia fundamental com Ivone Gebara, Introdução à Bíblica com Janes Jordan, Antigo testamento com Sebastião Armando Gameleira, Patrística com Jose Comblin, Vaticano II com pe. Luís Antonio de Oliveira, Antropologia filosófica com Giuseppe Staccone, Filosofia da Educação com pe. Ivan Teófilo, Cristologia com Cláudio Sartori, Liturgia com Pe. Reginaldo Veloso, Ecumenismo com bispo Paulo Ayres, Filosofia com pr. Isaias, educação popular com Domingos Corcione, missiologia com pe. Paulo Suess... Retiros com Dom Valfredo Tepe e frei Aloísio Fragoso... E tantos e tantos teólogos/teólogas que passavam pelo Recife lançando livro, fazendo palestras e abrindo novos debates.. Além da pastoral nas periferias recifenses e área metropolitana.

Alguma coisa de muito grave aconteceu dentro (e fora) da Igreja para perdermos esse fio condutor formativo e chegarmos a esses padres/bispos completamente deformados e sem horizonte pastoral algum. Estamos imersos em espiritualismos alienantes, em uma visão de Igreja sem historicidade e acumulando preconceitos diariamente através de redes digitais. Não devemos nos surpreender quando vemos um religioso liderando uma queima de livros sobre o Concílio Vaticano II numa rede social pública em pleno Século XXI. É grave!, mas não deveríamos ficar supressos. Ou "da árvore se conhece o fruto". De onde menos se espera, é que não virá nada. O Papa Francisco sabe bem do que se passa em "sua" Igreja.

https://www.youtube.com/watch?v=yZjtFCBvvss


"Voltar a idade  média queimando livros, para depois queimar pessoas literalmente, embora já antecipam isso por meio de  performances transloucadas como essa, em forma de cosplay de auto de fé da inquisição. " ZdO

Abaixo, Bento XVI foi quem deu mais corda, para além do seu antecessor João Paulo II.

Papa anula excomunhão de bispos ultraconservadores de Lefebvre


E para lembrar uma canção que trouxe essa questão da confusão ou mistura de mentalidades, medieval e moderna, mesmo romântica. A lembrar o reforço a isso por parte da midia - "na moda da nova idade média", "na midia da novidade média" -  como afirma o autor da canção.. E com justa razão...
No contexto dessa discussão aqui no blog,  uma mídia católica financiada pelo capital de grandes empresários, privados de qualquer compromisso com o verdadeiro evangelho.  O Evangelho que o Concilio Vaticano II tenta retirar das mãos dos interesses  e da mentalidade  imperialista  e opressora que começa a se tornar hegemônica no seio da igreja, a  partir da aliança com Constantino no séc. III da era cristã.



A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PAPADO. UMA LEMBRANÇA
Lembro que nos piores momentos de ataques que sofreu a Teologia da Libertação e seus teólogos e teólogas NOS ANOS 80 E 90, nunca se pensou nas CEB`s ou pastorais sociais em coisas como "sedevacantismo" ou criar outra igreja ou mesmo romper com o Papa e com o magistério da Igreja. Não será possível encontrar em nenhum escrito de nenhum grande teólogo/teóloga da libertação a ideia de deslegitimar o papado de João Paulo II, mesmo que tivessem muitas criticas ao Papa e seu anticomunismo equivocado. O Papa esteve no Brasil duas vezes e sempre foi bem recebido mesmo diante das divergência teológicas e pastorais que eram públicas. A resposta do teólogo jesuíta Juan Luís Segundo ao cardeal Ratzinger no seu livro "Teologia da Libertação: uma advertência à Igreja" é o ponto mais alto da divergência. Não me lembro de nenhum católico de esquerda ateando fogo em livro do cardeal Ratzinger ou em alguma Encíclica de João Paulo II. Nunca vi registro algum disto.
Fica evidente que a extrema direita católica nas redes digitais não suporta a diferença ou a pluralidade dentro e fora da Igreja. O nível de "integrismo" dessa gente é tamanha, que são capazes de matar em nome de uma fé dogmática e estranha aos Evangelhos. Sempre que vejo alguém tocando fogo em livros, penso que é uma questão tempo tocar fogo em pessoas. Não tenho mais dúvidas, depois de estudar durante 04 anos a atuação de uma extrema direita católica no Brasil nas redes digitais e em algumas dioceses e pastorais, afirmo categoricamente: essa direita católica precisa ter limites institucionais e democráticos na Igreja. Caso contrário, caminhamos a passos largos para uma divisão incontornável. Parecem adolescentes fazendo birra e batendo o pé. Se comportam de maneira infantilizada. Citando documentos papais obscuros e anacrônicos, fazem leitura virulenta do mundo moderno e atacam sistematicamente e constantemente o Concílio Vaticano II e o Papa Francisco e sempre à base de clichês e bobagens. Em teologia, essa direita católica é tão profunda quando um pires. Não acrescentam nada à teologia contemporânea. Fundamentalismo religioso não é resposta ao mundo atual, mas a sua negação pura e simples. Marcel Lefebvre (o guru dessa gente) sempre esteve errado todo o tempo na sua implicância contra o Concílio Vaticano II e na defesa da "missa tridentina". A volta ao missal de Pio V não ajudará a Igreja em nada nos dias atuais. Em nada. O problema do catolicismo romano atual não é litúrgico, mas de legitimação de sua missão numa linguagem contemporânea. Precisamos voltar a ler com atenção o livro do Juan Luís Segundo: "O dogma que liberta". Síntese fundamental dos impasses do catolicismo contemporâneo. 
Romero Venâncio (UFS)

O CENTRO DOM BOSCO E O PROJETO CATÓLICO DE RESTAURAÇÃO CONSERVADORA. 
Acabei de ler o ensaio do saudoso historiador mineiro Francisco Iglésias sobre o pensamento reacionário católico brasileiro no livro: "História e ideologia" (editora perspectiva, 1981). O texto do Iglésias tem o sugestivo titulo: "Estudo sobre o pensamento reacionário. Jackson de Figueiredo". Mais de 40 páginas sobre a formação e o desenvolvimento de um pensamento reacionário e inteligente do sergipano J. de Figueiredo que esteve a serviço da Igreja Católica até sua trágica morte. Iglésias vai nas origens do pensamento reacionário católico desde a França no Século XIX na esteira de Pio IX e demonstra sua influência na Igreja do Brasil através da liderança do enérgico cardeal Leme. 
A referência a Jackson de Figueiredo não foi gratuita. Mas uma escolha objetiva e direta DE um personagem marcante no conservadorismo católico brasileiro. Este senhor ofereceu régua e compasso para um pensamento conservador presente e futuro e chegou até hoje. Figueiredo escrevia bem e muito. Mas sempre foi além da escrita. Ser católico no mundo moderno é lutar contra o mundo moderno. E não se luta sem "armas", ou seja, estruturas. É preciso montar estruturas para a batalha (das ideias, inclusive). O grande feito do reacionário sergipano: criar o Centro Dom Vital. O nome do centro e sua estrutura não foram pensadas aleatoriamente. Foi caso pensado e bem pensado. 
O Centro Dom Vital foi (é, ainda) uma associação de leigos católicos fundada no Rio de Janeiro em 1922 pelo advogado e jornalista sergipano Jackson de Figueiredo e com total apoio do então cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme, com o objetivo de congregar a intelectualidade católica brasileira num pensamento conservador para enfrentar as ideias modernistas. Anticomunista de primeira e crítico das ideias liberais, o Centro buscava uma "terceira via" (que nunca existiu) que seria uma espécie de "integrismo católico" em modelo francês. Ao longo de sua história, o CDV teve entre seus membros intelectuais, figuras como Alceu Amoroso Lima (que muda no decorrer da história. Vai do conservadorismo à esquerda no fim da vida), Gustavo Corção, Sobral Pinto, Tarcísio Padilha, Luiz Paulo Horta, Carlos Frederico Calvet e Ricardo Cravo Albin.
O CDV procurou aproximações com o Integralismo e seu mentor, Plínio Salgado... Sempre no combate ao comunismo e na defesa de um catolicismo romanizado e tridentino na linha do Concílio Vaticano I. Partia do pressuposto de que a "alma do brasileiro/brasileira" é conservadora por natureza. Só que era preciso "formar essa "alma conservadora" da média dos católicos brasileiros. Partiam de uma ideia importante e produtiva: formar quadros intelectuais católicos para agir no mundo. Ou seja, tornar o Brasil mais católico ainda. Ampliar o domínio político e cultural (essa palavra é chave nos anos 20 e 30 dentro e fora da Igreja). Homens em sua maioria e algumas mulheres, intelectuais brancos, bem nascidos e enfiados na classe média carioca e conscientes de sua classe e de sua religião. Uma coisa não vinha sem a outra. Para um cardeal politiqueiro como Sebastião Leme, era uma mão na roda ter essa gente do seu lado e subservientes. 
Aqui entra o Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro. Sentem-se herdeiros direito do Centro Dom Vital e tem como objetivo recuperar na atualidade o espírito e o projeto do CDV de 1922. Só que sem apoio do atual Cardeal do Rio de Janeiro e de boa pare do clero católico carioca. Toda a direção do CDB (Centro Dom Bosco) é composta de leigos assumidamente reacionários. A presença constante nas redes digitais é uma marca deles. Equipamentos de primeira linha em termos digitais. Som, câmaras, versatilidade nas plataformas digitais e apelo cada vez mais virulento. 
Nascido em 17 de setembro de 2016, o CDB se define assim: "somos uma família que reza, estuda e defende a fé. Homens e mulheres na condição de leigos católicos que, unidos, buscam levar uma vida a serviço da Santa Igreja. Estudamos a doutrina bimilenar a fim de resgatar o que foi perdido por causa do modernismo e das diversas infiltrações na estrutura eclesiástica." (página pública deles). Mais explicito, impossível. Semelhante e na linha do Centro Dom Vital, não têm apenas o objetivo de estudar e organizar missas tridentinas. Vão bem além. Têm um projeto profissional de formação.
Assumem abertamente o combate canino ao Concílio Vaticano II e suas consequências na Igreja do Brasil. Ancorados no espírito de Dom Marcel Lefebvre, recuperam cotidianamente a linhagem tradicionalista. Do Concílio de Trento ao Concílio Vaticano I, traduzem textos de Papas tradicionalistas, recuperam textos anacrônicos de padres e leigos e dão uma série de cursos com esse material traduzido. Impressionante trabalho para um laicato católico. O perfil deles é quase o mesmo do antigo CDB: maioria de homens, com algumas poucas mulheres na linha de frente, jovens e brancos em sua maioria. De classe média, para variar. Divulgam uma selo editorial. Criaram uma editora com livros luxuosos, capas cuidadosamente preparadas e de conteúdo reacionário no campo católico.
Por fim, estão desenvolvendo um projeto de tentar articular todos os grupos possíveis de Católicos conservadores do Brasil e América Latina. Para isto, criaram o evento: "Liga Cristo Rei". Evento anual que congrega uma série de grupos reacionários de católicos que estão nas redes digitais. Estão avançando cada vez mais. Com rigor intelectual de direita, com disciplina e com agitação e propaganda (que chamam de "apostolado"), têm crescido dentro e fora do catolicismo romano no Brasil.
Venho pesquisando a extrema direita católica brasileira nas redes digitais e em algumas dioceses desde 2018. Demarco o inicio da pesquisa em 2013 por conta das "jornadas de junho" que fez aparecer uma direita virulenta e organizada e por conta da eleição do Papa Francisco na liderança do catolicismo romano. Na esquerda brasileira e na esquerda católica acontece um fenômeno comum: a esquerda só estuda a esquerda. são raros os estudos sobre as direitas vindo de pesquisadores de esquerda. Resolvi muda um pouco esta estatística.
Uma descoberta curiosa: simplesmente, impressionante o crescimento deste conservadorismo entre os jovens. Quem pensa que essa nova leva de reacionarismo católico é de pessoas com mais de 60 anos de idade e pré-conciliares, está redondamente enganado. São jovens que procuram sedentamente este tipo de "espiritualidade". Há uma onda conservadora em meios juvenis no Brasil e no mundo. A luta e o sonho deles: a "restauração da tradição". Tema de um outro texto.
Romero Venâncio (UFS)

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