segunda-feira, 31 de julho de 2023

Ecos do 15º Encontro Nacional das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (2) - Artigos de Marcelo Barros e Francisco de Aquino


 Comunidades eclesiais de base e espiritualidade libertadora

Marcelo Barros

Há apenas alguns dias, de 18 a 22 de julho, ocorreu em Rondonópolis, MT, o XV Encontro intereclesial de Comunidades eclesiais de base (CEBs). O tema foi “CEBs; Igreja em saída, na busca da vida plena para todos e todas!”  

As comunidades eclesiais de base surgiram em várias regiões do Brasil, na década de 1960, como consequência do Concílio Vaticano II. Este insistiu no caráter comunitário da fé cristã e no desafio de ligar a fé à vida concreta, como testemunho de libertação e vida para todos e todas. Ao propor um caminho de fé mais centrado no evangelho, provocou que a Igreja pudesse ser espaço de comunhão e promoção de vida para todos e todas. Não somente no plano espiritual, mas em todas as dimensões da vida. Lamentavelmente, o Cristianismo chegou ao nosso continente, ligado aos impérios conquistadores. Até quase nossos dias, a hierarquia e o clero católico pareciam mais ligados à elite do que ao povo pobre.  

Na Igreja Católica, sempre houve pequenas comunidades que se reúnem em capelas no interior e fazem parte das paróquias. As comunidades eclesiais de base são diferentes. Não se reúnem apenas para a catequese e o culto. Assumem a missão de se inserir no mundo social e político, como novo modo de ser Igreja.  Atualmente, o papa Francisco propõe o que chama de “Igreja em saída”, ou seja, um modo de viver a fé aberto aos problemas do mundo e solidário às causas do povo empobrecido. As Cebs fazem isso. 

Em 1975, alguns bispos e pastores que acompanhavam as Cebs no Brasil propuseram que se fizesse um encontro entre Igrejas (dioceses) que tinham Cebs para partilhar experiências e buscar caminhos comuns. Assim nasceu o 1º Encontro intereclesial de Cebs em Vitória, ES. Nesses dias, tivemos o XV intereclesial. Esse contou com a presença de 1.500 pessoas, entre gente de base, agentes de pastoral, religiosas/os, padres e bispos. Entre os/as participantes, havia expressivo grupo de índios e índias, de todas as regiões do país, assim como irmãos e irmãs negros, de comunidades tradicionais e remanescentes de quilombos.  

Esse encontro significou forte sinal de resistência por parte da Igreja inserida na caminhada do povo empobrecido. Foi uma festa, na qual as pessoas celebraram a alegria de que o Cristianismo da Libertação está vivo. No Brasil, há muitos grupos cristãos, decididos a viver a profecia do evangelho e o seguimento de Jesus. Mesmo com o respeito que merecem as devoções medievais e barrocas, atualmente em voga em muitas paróquias católicas; devoções  nascidas em época na qual  o povo não tinha acesso ao culto litúrgico da Igreja, as Cebs preferem os círculos bíblicos e a leitura orante da vida e da Bíblia. A mensagem final dos/das participantes do XV Encontro intereclesial de Cebs às comunidades afirma: 

“... As CEBs, qual mulher grávida, continuam gerando o novo, recriando os caminhos de libertação, sob o impulso do verbo sair, que funciona como fio condutor de toda a nossa existência. De Gênesis ao Apocalipse, a caminhada do povo de Deus se deu sob a inspiração da Divina Ruah, fomentando um permanente sair. Do ventre da mulher ao ventre da Pachamama, saímos sempre em busca da vida plena.

O AGIR nos enviou para cuidar. Cuidar para não perdermos o entusiasmo, para não banalizarmos a missão, para que as CEBs sempre tenham o coração ardendo pela Palavra e os pés firmes na caminhada do povo periférico. Cuidar dos grupos bíblicos de reflexão como sementes de novas comunidades. Cuidar da memória martirial e profética, das estruturas de comunhão e participação, do protagonismo das mulheres e das juventudes, da vida plena dos povos originários, da aliança e parceria com os movimentos populares, da força da sinodalidade que está na comunidade e dos processos de formação permanente. E em tudo, valorizar a força dos pobres nas iniciativas comunitárias e não deixar que nos roubem as comunidades!”.

https://www.youtube.com/watch?v=bURWZVHuNtU&t=1s

O programa Paz e Bem acima foi acrescentado a essa postagem em 04/08/2023

Fortalecendo as CEBs do Brasil: Desafios e cuidados na caminhada

De 18 a 22 de julho aconteceu em Rondonópolis – MT o 15º Encontro das Comunidades Eclesiais de Base do Brasil. Um verdadeiro Pentecostes.

Francisco de Aquino Júnior - Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE

Gente de todos os cantos do país e de outros países da América Latina: lideranças de comunidade, agentes de pastoral, religiosos/as, padres, bispos, membros de outras igrejas cristãs e de outras religiões, militantes de organizações e movimentos populares... Foram dias intensos de convivência fraterna, reflexão e oração sobre os desafios de nossa realidade e a missão de ser “Igreja em saída a serviço da vida plena para todos e todas”. Expressão viva de uma Igreja sinodal: povo de Deus, na diversidade de seus carismas e ministérios, em comunhão ecumênica, interreligiosa e social, a serviço do Reino de Deus no mundo.

Depois de refletir sobre os desafios da realidade (ver) à luz do Evangelho de Jesus Cristo e das primeiras comunidades cristãs (julgar/iluminar), chamamos atenção para alguns desafios e cuidados na caminhada de nossas comunidades (agir):

1. Não desanimar na caminhada

O Concílio Vaticano II e sua recepção na América Latina desencadeou um novo jeito de ser Igreja: Povo de Deus a serviço do Reino de Deus no mundo. É nesse contexto que nascem e se multiplicam comunidades eclesiais de base por todos os cantos de nosso país: fermento/sal/luz de salvação/libertação no mundo. Mas o contexto eclesial atual é muito diferente. Não por acaso, Francisco tem falado tanto contra a auto-referencialidade e o clericalismo na Igreja e tem insistido tanto numa conversão missionária (saída para as periferias) e sinodal (caminhar juntos do povo de Deus na missão). E não por acaso, ele tem encontrado tanta resistência na Igreja. Essa situação pode levar à tentação do desânimo na caminhada: perda do entusiasmo, pessimismo, azedume... uma espécie de depressão eclesial... O desafio aqui é cultivar e irradiar a alegria que vem do encontro com o Senhor e seu Evangelho, mesmo em contexto adverso e como “minorias abraâmicas”. Não esqueçamos nossa vocação de fermento, sal e luz...

2. Não desistir da comunidade

Nossa fé nos reúne e nos faz comunidade.  A fé se vive em comunidade. O Concílio Vaticano II recuperou a consciência da Igreja como povo de Deus e a Igreja da América Latina concretizou isso em comunidades eclesiais de base. Mas o fortalecimento do clericalismo nas últimas décadas, aliado à crise do comunitário e à centralidade da subjetividade, acaba tornando a comunidade secundária e até desnecessária na vivência da fé. Em geral, nossas comunidades estão reduzidas a culto, catequese e dízimo, quando não são tratadas como fonte de renda e sustentação da estrutura paroquial. O que menos conta é a vida comunitária e sua missão na sociedade. O desafio aqui é recuperar e cultivar a dimensão comunitária da fé: comunidades geográficas ou ambientais; inspiradas nas primeiras comunidades; lugar e instrumento de fraternidade; abertas a todas as pessoas, sobretudo aos pobres e marginalizados; em comunhão ecumênica, interreligiosa e social; expressão privilegiada de sinodalidade: comunhão, participação e missão.

3. Não banalizar a missão

A Igreja é por natureza missionária. Ela existe para a missão. Mas é preciso ter muito claro qual é a missão cristã. Não se pode identificar a missão com certas atividades pastorais (visitas, missões populares etc.) nem identificar os missionários com quem realiza essas atividades. A missão cristã é mesma de Jesus: “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Isso se concretiza na vivência do amor fraterno, no perdão e na reconciliação, na humildade e no serviço aos caídos à beira do cominho, aos pobres e marginalizados. A missão cristã é viver segundo e Evangelho e fermentar o mundo com a força do Evangelho. É um modo de vida. E isso diz respeito a todos os cristãos e se realiza em todos os âmbitos e espaços da vida: família, trabalho, lazer, política, redes sociais, comunidade eclesial etc. Todas as atividades que a Igreja realiza, inclusiva o que se costuma chamar “animação missionária”, devem estar à serviço da verdadeira missão cristã que viver e tornar presente e eficaz o amor de Deus pela humanidade.

4. Não deixar cair a profecia

Enquanto assembleia convocada e reunida pelo Senhor, a Igreja é portadora de sua Palavra no mundo. É chamada e envidada para anunciar, com gestos e palavras, com a própria vida, a Palavra de Deus – também nas horas difíceis e inoportunas. A profecia é a encarnação da Palavra de Deus em contextos bem concretos, particularmente em situações de oposição do projeto de Deus para a humanidade como as situações de injustiça, dominação e marginalização. Não por acaso, a profecia aparece na Escritura sempre ligada ao direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Ela tem várias dimensões: denúncia, anúncio, consolo. É exercida de modo individual ou comunitário. Realiza-se tanto no cotidiano da vida, como em situações mais dramáticas e extremas. O desafio aqui é “não deixar cair a profecia”, sobretudo em tempos de neofascismo político e religioso. Nossa reação à extrema direita, ao ódio, à mentira, às armas, à violência, é o compromisso inegociável com os pobres e marginalizados na luta por seus direitos.

5. Não perder a esperança

Os desafios que a gente enfrenta na sociedade e na Igreja muitas vezes criam em nós um sentimento de impotência e descrença na possibilidade de mudança que gera desânimo e desmobilização. Sem esperança ninguém se mobiliza para a mudança. Mas o ser humano é um ser aberto e em construção. Nunca está pronto. Nada nesse mundo é definitivo. Por isso, a esperança sempre brota. Renasce de onde menos se espera. E o fundamento e a fonte de tudo isso é o Espírito de Deus, pelo qual tudo foi criado, que age na vida das pessoas e na história humana, que renova, sempre de novo e a partir de baixo, a face da terra. Ao dito popular “a esperança é a última que morre”, recorda poética e profeticamente Pedro Casaldáliga: “se morrer, ressuscita”. Somos “povo da Páscoa”, povo da Esperança: “esperança do verbo esperançar”; esperança ativa, comprometida, militante; esperança teimosa e perseverante; esperança alimentada nos pequenos passos, no “inédito possível”; esperança processual e a caminho do Reino definitivo...

Tudo isso é muito importante para fortalecer/revitalizar/revigorar o jeito de ser Igreja das comunidades eclesiais de base e enfrentar os desafios que encontramos no dia-a-dia em nossas comunidades, no conjunto da Igreja e na sociedade: Sempre nos passos de Jesus, na força do Espírito, em companhia dos profetas e mártires da caminhada, a serviço dos pobres e marginalizados em suas lutas por direitos e no cuidado da casa comum, a caminho do Reino definitivo de Deus...

Francisco de Aquino Júnior - Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

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