quinta-feira, 6 de julho de 2023

ZÉ EXCELSO! Por Chico Alencar, Tom Zé, Frei Betto, Lula e mais.........

Chico Alencar

José Celso Martinez Corrêa é impar, singular, brilhante. Excelente, extraordinário, excelso. Presente! Eu o conheci nas suas peças, quando ele se misturava à plateia, no grande ágape final – uma “orgia” teatral, um “paraíso” terrenal e breve.

Para o Zé, o teatro era a eternidade corporal aqui e agora. Oficina da divina criação, contra toda forma de opressão. “Andorra”, “Pequenos burgueses”, “Roda Viva”, “O Rei da Vela”, “Mistérios gozosos”, “Os sertões”, “Galileu Galilei”, “Na selva das cidades”...

Zé Celso sempre dizia "não adianta resistir. O importante é reexistir". E assim ele se foi, de repente, absurdamente, para se reinventar em outra existência. Destruído pelo fogo que mata mas que, diria ele, também aquece, acrisola: das cinzas à ressurreição.

Zé dormia, relaxado. Imagino esse “incendiário” generoso sonhando (ou melhor, tendo pesadelo) com fogo lambendo no seu quarto, no repouso do guerreiro. Zé se sentindo na porta do inferno de Dante. E, ao ler o aviso “Vós, que aqui entrais, abandonai toda esperança”, reagindo, rebelde: “Essa vocês nunca vão me tirar, porra!”

Zé Excelso, para sempre!

Foto: divulgação

Foto: Michel Filho / Agência O Globo 

Tom Zé 

Jesus e seus ajudantes mais próximos tinham providenciado um piso de relva bem macia no pórtico da entrada do paraíso. Guizos em cordão florido, coroas douradas, música solene.

Com semblante preocupado, disse aos ajudantes: "Providenciem a bandeira a meio pau".

Quando ouviram falar em bandeira a meio pau... Aí os anjos ficaram realmente espantados.

"Mas, Senhor, é o Zé Celso que está vindo aí. Aquele diretor de teatro maldito que vivia blasfemando a torto e a direito!!!"

Jesus respondeu, com voz lenta de tanta impaciência: "Com perdão da palavra, seu ignorante. Vocês não sabem que ele trabalhou por mim o tempo todo de sua santa vida?"


Presidente Lula
O Brasil se despede hoje de um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, um dos seus mais criativos artistas. José Celso Martinez Correa, ou Zé Celso, como sempre foi chamado carinhosamente, foi por toda a sua vida um artista que buscou a inovação e a renovação do teatro.
Corajoso, sempre defendeu a democracia e a criatividade, muitas vezes enfrentando a censura. Transformou o Teatro Oficina em São Paulo em um espaço vivo de formação de novos artistas. Deixa um imenso legado na dramaturgia brasileira e na cultura nacional. Meus sentimentos aos seus familiares, alunos e admiradores. A trajetória de José Celso Martinez marcou a história das artes no Brasil e não será esquecida.

Frei Betto: Zé Celso e Oficina não puderam frear a ditadura só com a arte

Diretor jamais duvidou do poder subversivo de suas peças, mas, após 'O Rei da Vela', preferi me unir à resistência direta.   Fui assistente de direção de Zé Celso, morto nesta quinta-feira (6), durante a primeira montagem de "O Rei da Vela", peça de Oswald de Andrade. Em 1966, vim para o convento dos frades dominicanos em Perdizes, em São Paulo, para onde convergiam vários grupos e partidos de esquerda, todos clandestinos.

Uns iam para esconder militantes procurados pela repressão, outros para guardar documentos e muitos para ouvir os sermões antiditadura proferidos pelos frades nas missas. Ali cruzei com Plínio Marcos e Flávio Império, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, o psicanalista e jornalista Roberto Freire e Carlos Marighella, entre outros.  
  
Entre nossos amigos, Carlito Maia, publicitário. Sua irmã, Dulce Maia, produtora cultural, me propôs um "bico" no Teatro Oficina. Zé Celso procurava quem desse subsídios ao elenco de "O Rei da Vela" a respeito da conjuntura do Brasil na década de 1930. A proposta me interessou.

Uma noite, Dulce me levou à casa de Zé Celso. Foram duas horas de papo sobre a revolução burguesa no Brasil na década de 1930. Impressionou-me a genialidade de Zé Celso, sua inteligência transbordando pelos gestos largos e precisos, impregnado de criatividade, numa altivez dionisíaca.  

Estava entregue às obras de Oswald de Andrade com paixão incontida. Em seu apartamento na Bela Vista, amontoavam-se livros sobre o início da industrialização no país, discos de antigas marchas carnavalescas, exemplares raros da revista O Cruzeiro, na qual o diretor do Oficina buscava detalhes de ambientação para o espetáculo.

De teatro eu pouco entendia, mas aprendi com "O Rei da Vela" que a falência da aristocracia rural brasileira fora marcada pelo processo de industrialização apoiado, sobretudo, no capital estrangeiro.

Fiz intensa pesquisa para a ambientação da peça que marcou as origens do tropicalismo na cultura brasileira, quando o país se deslocava dos coronéis da lavoura para os capitães da indústria, e proferi pequenas palestras para o elenco. Ousado, Zé Celso me convidou para ser seu assistente de direção. Ainda que semianalfabeto em matéria de teatro, aceitei. O que selou nossa amizade por toda a vida.                                                                                                   

Naquela conjuntura, o teatro parecia atingir —e esgotar— seus recursos contestatórios com "O Rei da Vela". A repressão e a censura apagaram a chama da última vela. Restou-nos o sonho de um teatro capaz de propor uma ação concreta e eficaz.

Mas a loucura de Zé Celso não chegava ao ponto de subverter os próprios limites da arte, encher o Oficina de bananas de dinamite e reduzir o espetáculo a um único e definitivo gesto: acionar, no palco, o detonador.

Todos sabíamos que, no teatro, o último ato é o mais importante e o único no qual os espectadores são, além da peça, os verdadeiros atores —o momento da saída, quando o reencontro com a realidade, lá fora, dá-se na visão crítica proporcionada pela arte.

Ora, as palavras nem sempre são suficientes. No teatro, elas ressoam bem, mas não atingem o alvo. Fica sempre algo a ser dito, justamente aquilo que o teatro é, por si, incapaz de dizer. Senti isso ao montar o espetáculo de Oswald de Andrade. Ali, deu-se um grito, perturbador, mas para mim insuficiente. O grito se perdeu sem eco no barulho exterior. Deixei o Oficina após um ano e abracei a resistência direta à ditadura.

Zé Celso, entretanto, jamais duvidou do poder subversivo da arte. Não abdicou de sua trincheira, não cedeu às pressões publicitárias e às propostas de altos salários na TV. Viveu, enfim, em coerência inquebrantável, entregue a fazer todo o seu talento irromper no palco em espetáculos que, para sempre, marcam os melhores momentos da história do teatro brasileiro.

O REI DA VELA

O Rei da Vela (1967)de Oswald de Andrade, direção de José Celso Martinez Corrêa, com assistência de direção de Frei Betto e, no elenco, Dina Sfat, Etty Fraser, Othon Bastos, Renato Borghi e outros.

Estreou em setembro de 1967, no Teatro Oficina da Rua Jaceguai, em São Paulo. Espetáculo emblemático do movimento tropicalista, dedicado a Glauber Rocha, satiriza a ópera, os filmes da Atlântida e a comédia de costumes, com base num texto de Oswald de Andrade datado de 1933. A peça problematizava a relação palco-plateia, fazendo com que o público participasse ativamente na criação cênica. O Rei da Vela foi exibido na Europa e posteriormente filmado.   https://memoriasdaditadura.org.br/pecas/o-rei-da-vela/

Texto da peça O REI DA VELA - https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4135364/mod_resource/content/1/TEXTO%20DA%20PE%C3%87A%20O%20REI%20DA%20VELA%20DE%20OSWALD%20DE%20ANDRADE.pdf


Arte de Lígia Barin

Provocações | José Celso Martinez Corrêa | 2002

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