Em livro recém-publicado, vaticanista Iacopo Scaramuzzi mostra como a religião católica fundamenta e orienta a direita global
Lucas Ferraz
27 de Julho de 2020, 1h02
DE ROMA A WASHINGTON, de Moscou a Paris, de Budapeste a Brasília, a geografia política e religiosa da extrema direita que ascendeu nos últimos anos contém um particular denominador comum: a instrumentalização do cristianismo como estratégia política.
O sacro tornou-se um meio para marcar território, distinguir inimigos e – quem sabe – erradicar a diversidade, seja ela representada por gays, muçulmanos, imigrantes ou qualquer outra “modernidade” que ameace a tríade “Deus, pátria e família”.
Do ex-capitão do Exército defensor da tortura e de milicianos ao ex-araponga Vladimir Putin, o todo-poderoso da Rússia que também abraçou a Igreja Ortodoxa de seu país, da jovem Marion Marechal-Le Pen na França, integrante da terceira geração de uma família ultraconservadora que está numa cruzada contra os muçulmanos, aos espanhóis do Vox, a extrema direita global desfruta dos símbolos e supostos valores do cristianismo.
Trata-se de um caso de marketing político (particularmente bem-sucedido em alguns ambientes) que encontrou ressonância também em pensadores, instituições, cardeais e bispos no interior da Igreja Católica insatisfeitos com o pontificado do papa Francisco. O argentino acabou se transformando num inimigo comum para todos eles, sejam políticos ou religiosos.
A eleição de Donald Trump em 2016, com o entusiasmado apoio que o republicano recebeu – e ainda recebe – de católicos tradicionalistas e demais grupos conservadores, serviu como ponto de partida para a consolidação do que muitos estudiosos classificam de “nacional-catolicismo”.
O fenômeno opera atualmente numa rede global e é um dos pilares de projetos como o de Viktor Orbán e sua democracia cristã iliberal na Hungria, do recém-reeleito Andrzej Duda e sua tradição sacra na Polônia, de Matteo Salvini, que tentou se tornar homem forte do governo da Itália brandindo rosários e falando em nome de Maria, além de ter pavimentado a vitória de Jair Bolsonaro e seu “Deus acima de todos”.
“Eles dizem defender o cristianismo, mas o transformam, infelizmente, em uma ideologia petrificada, num esqueleto, num monumento aos caídos”, escreve o vaticanista Iacopo Scaramuzzi, autor de um pequeno mas informativo livro recém-publicado na Itália em que destrincha como o cristianismo virou uma peça importante na radicalização política da extrema direita.
Intitulada “Dio? In fondo a destra – Perché i populismi sfruttano il cristianesimo” (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), a obra estampa na capa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin. Jornalista da agência italiana Askanews, Scaramuzzi acompanha o cotidiano do Vaticano em Roma desde 2006.
No meio da tempestade que agita o mundo, o cristianismo é explorado como uma “estrutura sólida”, um “outro país protegido”, lugar de paz e prosperidade para a “família tradicional” – a dos que os brasileiros conhecem como “homens de bem”. Não importa se, na prática, a política implementada seja notadamente marcada pela ausência de valores cristãos.
Como escreve Scaramuzzi, a exploração visa louvar um passado supostamente glorioso, além de ter um forte apelo a todos aqueles perdidos com as crises econômica, política, cultural, da globalização etc. A estratégia é mais ou menos simples e fácil de ser compreendida pelo eleitorado. O objetivo também é pueril: criar um sentido comum e respeitabilidade, conta o autor.
No capítulo dedicado ao Brasil, o título dado por Scaramuzzi é um sucinto resumo do país de Bolsonaro: “Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais”. Ele ressalta que o presidente brasileiro (católico) tem vários referentes religiosos, além dos pastores evangélicos, entre eles católicos tradicionalistas como o youtuber Bernardo Küster, e que frequentemente faz uso político do cristianismo quando transmite ao eleitorado a necessidade de um sacrifício, “quase um martírio”, para se afastar do mal.
Isso vale para defender reformas econômicas de cunho neoliberal, para falar da facada que quase o matou na campanha eleitoral ou ainda sobre a necessidade de promover uma guerra cultural contra os valores considerados de “esquerda” para proteger a família.
A formação de um “povo puro” a partir da instrumentalização do cristianismo, mostra o autor, encontra ferrenha oposição no atual chefe do Vaticano, que já declarou que mensagens revestidas de ódio e certas políticas como as que preveem muros contra imigrantes nada têm de cristãs. O desencontro entre essas correntes tem sido uma das marcas do papado de Jorge Mario Bergoglio. “Não é surpresa que existe um pedaço da igreja que se reconhece mais em Salvini do que no papa Francisco”, me disse Scaramuzzi num bar do centro de Roma.
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