quinta-feira, 16 de julho de 2020

Lei Aldir Blanc: Carta às gestoras e gestores estaduais e municipais de Cultura, por Célio Turino


Me dirijo diretamente a vocês na condição de alguém que trabalha há mais de quarenta anos como gestor público de cultura ou na condição de pensador, escritor e semeador de ideias, seja no Brasil ou no exterior.

Lei Aldir Blanc

Carta às gestoras e gestores estaduais e municipais de Cultura

por Célio Turino

A lei Aldir Blanc de Emergência Cultural está acontecendo. Ela é fato, sua semente já aparece sobre o solo e em breve irá florir. Para surpresa de muitos, ela foi aprovada praticamente por unanimidade no Congresso, rapidamente sancionada pelo executivo federal, e agora leva o número 14.017/2020. Os recursos também estão alocados, R$ 3.000.000.000,00 a serem transferidos para estados, distrito federal e municípios, conforme Medida Provisória n. 990, de 9/7/2020. Agora é executar. Mas antes de executar, cabe regulamentar, definindo parâmetros e diretrizes a partir do espírito generoso com que a lei foi pensada e semeada. O desafio está em regulamentar sem descaracterizar o sentido da lei.
Subjacente à lei Aldir Blanc há muita filosofia, teoria, conhecimento sobre a história das políticas públicas de cultura, conceitos precisos, método. Também muita mobilização a partir dos territórios, de agentes culturais comprometidos. Foram quatro meses de trabalho árduo e em processo de consenso progressivo. Por isso tomo a liberdade de me dirigir às gestoras e gestoras de cultura deste nosso vasto país, das grandes metrópoles aos rincões mais afastados, sobretudo àqueles em municípios que talvez nem contem com órgão gestor de cultura (são mais de dois mil), sequer um funcionário com experiência prévia na função. Independente desta condição, a partir de agora todos terão a nobre responsabilidade de fazer com que os recursos para as artes e a cultura cheguem exatamente onde devem chegar.
Me dirijo diretamente a vocês na condição de alguém que trabalha há mais de quarenta anos como gestor público de cultura ou na condição de pensador, escritor e semeador de ideias, seja no Brasil ou no exterior. Em 1990, quando eu tinha 29 anos, assumi o cargo de secretário municipal de cultura em Campinas; àquela época, se estivesse recebendo uma carta de alguém com mais experiência, ficaria feliz em poder aproveitar de uma troca de conhecimento, ao mesmo tempo despretensiosa, com afeto, mas também com técnica e filosofia. Colocando-me neste lugar, tomo a liberdade em apresentar algumas sugestões que ajudem na boa execução de uma lei que chega tão de repente e que é tão premente e urgente. Pensem nesta carta como se tivesse sido redigida por um jardineiro paciente e persistente, nada além disso e, se considerarem que o conteúdo vale a pena, aproveitem.  
Os desafios apresentados pela lei Aldir Blanc são muitos.
O primeiro e mais óbvio: fazer com que os recursos cheguem aos corações que sentem, às cabeças que pensam e às mãos que executam as artes e as culturas do Brasil. Esta é uma lei generosa, por isso destinada a todas e todos que contribuem para a jardinagem delicada da alma brasileira, não à toa, leva o nome de um dos nossos grandes poetas, Aldir Blanc. Uma lei para artistas e também para técnicos, para os que sobem aos palcos e para aqueles que dão sustentação ao palco. Uma lei para as bordadeiras e ceramistas, e as cantoras de todos os cantos, e os pintores de todas as cores, das nossas raízes às nossas invenções, das artes de rua, dos malabaristas e equilibristas, o povo do circo, das cirandas, das rodas, da folia de reis à cultura gospel, do rap ao repente, e o cururu, dos povos indígenas aos jovens artistas do teatro, da dança, dos festivais, dos quilombos, dos ribeirinhos e caiçaras. Essa lei foi pensada para chegar a todas as pessoas e lugares. Ópera e música erudita tem lugar na lei, assim como o sertanejo, a MPB, as fusões. Ela é premente para músicos que tiveram que vender o violão para sustentarem suas famílias. Vender o instrumento musical para um músico, ainda mais quando o único que ele dispõe é como se ele tivesse que decepar uma parte do próprio corpo para dar de comer aos filhos; nos últimos meses conheci vários que fizeram isso. Esta é uma lei de emergência porque não há tempo a perder, “quem tem fome tem pressa”, como dizia Betinho, da Ação da Cidadania, o “irmão do Henfil”, outra fonte inspiradora na tessitura de nossa lei generosa. Vamos aplica-la com generosidade, sem preconceitos estéticos ou discriminação partidária. A lei é para todos.
A universalidade da lei está expressa na redação do artigo segundo, sobretudo nos dois primeiros itens:
  1. Renda Básica de R$ 600,00 aos trabalhadores da cultura que ficaram sem renda;
  2. Subsídio à manutenção de espaços artísticos e culturais independentes.
Cumprindo os requisitos, o acesso é garantido. Tanto para Renda Básica como para Espaços Culturais, que podem ser Pontos de Cultura, Teatros independentes, escolas de arte, academias de dança, feiras de artesanato, espaços de rua regularmente ocupados pelas artes, ou pequenas empresas culturais, escolas de samba com atividade cultural permanente, centros de tradição regional, como os CTGs, o São João, saraus em periferias, centros culturais em quilombos, aldeias indígenas, os Circos. O leque é amplo, por isso a responsabilidade em definir conceitos claros e precisos é ainda maior. Atentem-se na redação, pois cada governo estadual, distrital ou municipal terá que fazer sua regulamentação própria.
Busquem conhecer a lei em seus conceitos, troquem experiência entre municípios, procurem uniformizar redação com os governos estaduais. O desafio está em evitar sombreamento e duplicidade entre estados e municípios. Adianto que não será possível a um ente federado se concentrar em apenas um item da lei, seja Renda, Espaços ou Editais e Aquisição de Ativos culturais. Mesmo que uma regulamentação pretenda distribuir atribuições entre estados e municípios, isso não será possível, afinal, uma regulamentação ou decreto não pode sobrepor-se à norma da lei. Nem que a União assim regulamentasse (por exemplo, definindo que é atribuição dos estados dar conta do item I ‘’Renda” e dos Municípios o item II “Espaços”, ou que Renda e Espaços fossem atribuição dos estados, cabendo aos municípios os Editais). Isso não seria possível, sendo facilmente derrubado pela Justiça, bastando ação de um único cidadão alegando que a regulamentação descumpre a lei. Recebendo o repasse do recurso, cada ente federado deverá dar conta do conjunto das atribuições previstas na lei. Por outro lado, não é possível a um beneficiado o recebimento em duplicidade em um mesmo item; em itens diferentes não há problema, e que recebe Renda também pode participar da gestão de um Estaco, ou concorrer a um Edital. O que não pode acontecer é receber cumulativamente pelo município e pelo estado, ao mesmo tempo e no mesmo item, o que é óbvio. Como fazer então?
Antes, cabe explicar as razões de as mesmas atribuições estarem definidas a todos os entes federados. Somos uma federação e há independência e autonomia dos entes federados, por isso os recursos foram distribuídos por igual, 50% para estados e distrito federal e 50% para municípios. Houvesse separação de atribuições, município ou estado poderiam enfrentar sobrecarga na financeira em uma determinada área, enquanto outro ente teria sobra de recursos, o que não seria justo, nem com o ente federado nem com os potenciais beneficiados. Também não seria possível, em lei federal e de forma prévia, saber de antemão a exata dimensão de pessoas e espaços a serem contempladas. Se o Brasil contasse com um consistente e confiável cadastro de informações culturais, isso seria possível, ocorre que nos últimos anos todo o esforço na formação de cadastros foi sendo desmontado; há o cadastro nacional dos Pontos de Cultura, que é o mais próximo do real, mas e quanto à escolas de arte, circos, teatros independentes…? Por isso a única solução foi distribuir a responsabilidade por igual. 
No entanto, é necessária uma ação articulada entre estados e municípios. Um bom caminho, como sugestão, e que é possível regulamentar a partir da lei, seria a criação de Fundos Emergenciais para os dois primeiros itens, e cada ente faria seu respectivo depósito; mesmo assim, um município poderia optar por outro caminho, preservando sua autonomia na execução. Daí, a melhor solução é uma ação negociada, integrada, mas cada qual com sua função, permitindo que os municípios possam realizar uma busca ativa, até mesmo uma repescagem naqueles casos mais isolados, artesãs vivendo em sítios distantes, que provavelmente nem sabem da existência de uma lei que foi pensada para beneficia-las. Por isso, sejam generosos e proativos, há muito trabalho pela frente!   
, o quanto antes, um processo para cadastramento de pessoas e espaços candidatos ao recebimento dos recursos. E definam um prazo, porque só assim terão condições de identificar o universo de beneficiados. Claro que com o compromisso da ampla divulgação e acesso ao cadastramento. O cadastro de pessoas e espaços tem que ser a prioridade número um.
Em relação às pessoas o valor já está pré-definido, R$ 600,00, bastando multiplicar esse valor pela quantidade de pessoas que preencheram os requisitos e pela quantidade de meses. Lembrando que aquelas pessoas que já recebem o auxílio emergencial por conta da Covid19 não poderão acumular, nem aqueles com emprego, ou aposentados, ou que tiveram renda superior aos limites estabelecidos na lei.
Para Espaços, exatamente por não haver uma dimensão exata de quantidade, a lei definiu um valor variável, entre R$ 3.000,00 a R$ 10.000,00. A lei dá margem, inclusive, para o estabelecimento de categorias de valor. Espaços de pequeno porte, com menores despesas de manutenção, poderiam receber R$ 3.000,00, os de médio porte, R$ 6.000,00 e os de porte maior, R$ 10.000,00. Desde que o conceito tenha sido definido previamente, sem margem para subjetividade ou preferências, isso é possível; por exemplo: circo de lona, que tem maiores despesas que aqueles de pequeno porte, que prescindem da lona para as atividade; ou capacidade de público para Teatro Independente; ou espaços com multiatividades, corpos artísticos estáveis. Desde que os critérios sejam objetivos, pode-se lançar mão dessa alternativa. Há também a contrapartida a ser oferecida no pós-pandemia, preferencialmente para Escola Pública. Outra exigência muito importante, a demonstração e comprovação da realização regular e pública das atividades, interrompidas por conta da pandemia, ou seja, um Espaço “apenas no papel”, inativo há muito tempo, não poderá acessar os recursos; por outro lado, Espaços sem CNPJ, mas com efetiva comprovação de atividade regular e relevante para a respectiva comunidade, terão direito ao recurso. Leiam atentamente a lei e perceberão que ela foi escrita exatamente para evitar acesso indevido, como para assegurar o justo uso dos recursos, uma vez que o fundamental é a comprovação do que efetivamente se faz pelo bem comum e não o “papel”, ou as relações que se tem.
O terceiro item é destinado para as atividades da cultura que não se enquadram nas categorias Renda Básica ou Espaços, mas que também necessitam de apoio e fomento. Para este item a lei definiu um piso, que é de 20% do total dos recursos transferidos, podendo ser maior, caso os dois primeiros itens não alcancem 80%. Ele está subdividido em duas categorias:
  1. a) Aquisição de Ativos Culturais. Produções teatrais que foram interrompidas abruptamente por conta da pandemia, shows, exposições, festivais, são processos produtivos da cultura que envolvem o trabalho de muita gente, não somente artistas (em grandes produções musicais estão envolvidos centenas de trabalhadores). Para este campo a lei prevê Aquisição antecipada de bens e serviços culturais, na forma de compra antecipada de ingressos, compra de livros via livrarias, ativando a cadeia produtiva do livro, de editoras ao autor.
  2. b) Editais de Fomento. A chamada é mais livre e há um processo de escolha. Por isso cabe algumas considerações/sugestões. Tentem ir além de apresentações por lives ou sacadas, vale incluir edital para ciclos de pensamento e reflexão, processos criativos, obras a serem escritas, coreografias. Vamos aproveitar para ir além do imediato, vamos criar, pensar o mundo pós-pandemia. E não esqueçam dos poetas, muito importante a poesia. Outra sugestão, não é necessário ter um edital único, pode-se fazer a distinção entre artistas seniores e com carreira longa, profissionais, iniciantes. Há espaço para todos. 
Outro aspecto importante, uma vez que o item III é por escolha seletiva, não universal, como nos anteriores, é a composição das comissões julgadoras, que sejam capacitadas, justas, democráticas. E que o acesso ao edital, posteriormente aos recursos e prestação de contas, seja desburocratizado, preferencialmente na forma de premiação. 
Enfim, há muito trabalho e muitas questões a serem resolvidas nas próximas semanas. Para segurança dos próprios gestores, aconselho que sejam resolvidas em conjunto com a sociedade civil, via Conselhos de Cultura, quando já em funcionamento, e concomitante, via comitês específicos para a aplicação da lei. Tenham fé, quem apostar na boa relação com a sociedade vai ficar feliz com o resultado. Também a transparência dos dados, acesso às informações. Para isso estão sendo oferecidas várias capacitações, via cursos pela internet, acompanhem. Em breve teremos um Observatório da Emergência Cultural, específico para acompanhar a aplicação da lei; aproveito essa carta, inclusive, para solicitar o apoio de todas e todos, categorizando informações e as fornecendo de forma precisa. Ajudem no fortalecimento desses meios, assim como difundam o canal Emergência Cultural no YouTube.
São muitas as inovações que estão emergindo com a lei Aldir Blanc. Para além do campo específico das políticas culturais estamos construindo uma nova cultura política. Nossa lei é generosa, fruto de um compromisso com o Brasil profundo, de baixo, criativo, foi tecida e executada a muitas mãos. Houve muito trabalho para chegarmos até aqui, muita gente envolvida, centenas de webseminários, lives, grupos em redes sociais. Uma lei que nasce das novas ferramentas nesses tempos de distanciamento social, demonstrando que, se fisicamente precisamos estar apartados, socialmente, mais que nunca, é preciso estar junto. Milhares de pessoas expuseram suas ideias, reflexões. Houve um trabalho intenso de sistematização, a concepção teórica (sim, teoria é muito necessária para jardinar uma boa lei), a busca precisa nos conceitos, o método, a estratégia de mobilização.
Houve muito afinco, muita dedicação. Honrem esse esforço. Na impossibilidade de nomear todos envolvidos, já que a carta está extensa, expresso meu mais profundo respeito e reverência ao fino bordado que a relatora, deputada Jandira Feghali, realizou a partir dos vários projetos de lei, cuja partida teve como primeira signatária a deputada Benedita da Silva e, junto a ela, dezenas de deputadas e deputados, dos mais diversos partidos, assinando cinco outros projetos sobre o mesmo tema, cada qual com uma contribuição. Nosso êxito só foi possível porque houve bom diálogo via o Congresso Nacional, construindo uma escuta atenta e ativa em processo de consenso progressivo. Foi esse processo que permitiu que a lei Aldir Blanc chegasse onde chegou. Só o processo de construção e aprovação da lei já é um legado para o Brasil, ainda mais em uma sociedade tão cindida e artificialmente marcada pelas manipulações de desinformação, do ódio e do medo. Nossa lei tem coragem, tem afeto, tem amor, tem a força que vai fazer emergir um Brasil como ainda nunca se viu. Há braços, corações e mentes. Para o momento é o que eu tenho a dizer.

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