E se fosse possivel um recital de canções e poesias para fazer uma despedida do poeta Amaral Cavalcante, que nos deixou na madrugada fria deste 07 de julho de 2020?
Seria essa uma das canções, aqui com luxuosa interpretação de jovens artistas e presença não menos luxuosa da poesia recitada por um jovem poeta..
Vivas ao Poeta!
Saudades pra sempre meu amigo!
“Eu sempre lhe quis bem”, sussurei ao ouvido dele. “Eu sei”, disse-me de volta. Beijei-lhe os cabelos brancos e quase morri ao perceber que o baton havia deixado a marca dos meus lábios. Tentei esfregar, tirar. Nada. Sussurrei de novo: Poeta, tatuei seus cabelos com meu baton vermelho e agora não sai. Tentei de novo. Nada. Ele disse: “deixe aí, eu autografando e carregando sua boca na cabeça”. Saí de fininho, piscando-lhe um olho e só então vi. O poeta estava numa cadeira de rodas.
Nos conhecíamos desde a adolescência, na Academia dos Jovens Escritores de Carmelita Fontes. Ele chegou depois, calado, observando, como um peixe fora daquela água para ele desconhecida. Mas era muito bonito, Carmela lhe dirigia aqueles olhares que eu conhecia bem, de satisfação diante de inteligência jovem maior; e eu também, depois que ele passou no teste escrevendo ali mesmo o poema da prova - fiquei encantada. Tão encantada que ficava inventando meios de me aproximar. Não conseguia. Ele era fechado à moda sertaneja, e não dava muita vez para menina do GA. Principalmente, a queridinha de Carmelita.
Um sábado, estava eu soprando bolinha de sabão na porta da casa da rua São Cristóvão, quando ele passou com uns amigos estranhos. Esmerei-me em soprar bolinhas grandes e voadoras, querendo chamar a atenção dele. Só mereci um “Ôi, você mora aqui, né?” Eu, desconfiada: “É...”
Tempos depois, fui com Mário Jorge para o concurso de poesia que ele levou num Poema da Aparição declamado por Wilma Porto, uma verdadeira aparição em branco, num momento inesquecível. Mário Jorge, triste por não participar, pois havia acabado de sair de uma clínica para desintoxicar, tomou minha mão e juntos vivemos aquele momento em um quase transe.
O tempo passou, fui e voltei e fui mais e voltei mais, até voltar. Frequentávamos os mesmos lugares, encontrávamos as mesmas pessoas, sempre tínhamos o que conversar. Chamava-o sempre de Poeta e sentia nisso um grande prazer - era uma reverência.
Quando voltei, senti-me honrada com o convite para escrever para o Folha da Praia e aceitei feliz. Às vezes, quando levava a coluna, ajudava na capa, nas coisas que faltavam. Até horóscopo fiz. Substituí Zara Zangada por Tara Contente.
E nossos caminhos continuaram se cruzando. Às vezes com dificuldades, com choques, mas sempre com admiração e aquele amor que eu nutria desde os tempos da Academia de Carmelita.
Ficamos um tempo estranhados, até que um dia, no Teimonde, eu tinha acabado de cantar o Super Homem de Gil, acompanhada por Pantera. Ele ficou no gargarejo, embevecido. Depois, chegou-se e disse: “Por que ficar assim longe se a gente gosta tanto do que o outro faz?” Não me dei por rogada. Joguei-me no pescoço do Poeta, enchi-o de beijos e disse: “Por que mesmo, logo eu, que te amo tanto?”. Celebramos com vinho e muita conversa e risadas tresloucadas.
Em alguns momentos, trocamos conversas pequenas e profundas, dizendo tudo com pouquíssimas palavras. Ele me mostrou que tinha gratidão pelo espaço que eu dei a Erê, levando-o para o TV Mulher. E mencionou o brinco de safira que dei ao bailarino. Erê era um príncipe e merecia uma joia de verdade, argumentei. Amaral amava Erê.
Fiz algumas coisas para a revista Cumbuca, mas foi a última matéria, sobre o Jardim Botânico de Marcel Nauer, com muitas fotos, que o encantou: “Ficou muito além do que eu esperava. Ficou lindo”, disse-me e dedicou 10 páginas da revista à minha matéria.
Ha alguns anos, quando Marcelo Ribeiro lançava um livro, nos encontramos e fiquei tão feliz em ver o Poeta que saltei-lhe no colo, onde fiquei um tempo. Um dia aí, ele publicou essa foto no Facebook, tenho que encontrar.
Saber que Amaral Cavalcante morreu, deixou-me muda. Atônita. Ah, ele foi encontrar Cleomar, Proust, os escritores todos no céu. E daí? Ele foi. Ele foi! Não tem mais o Poeta do instante amarelo, o cronista ímpar, a poesia pecadora de beleza afiada, o lirismo sem vergonha, o homem elegante, o orgulho sofisticado e o olho arguto e desconfiado. Não tem mais o homem lindo, a língua solta e o humor de inteligência maior.
Está fazendo festa no céu? Eu queria ele aqui, chegando devagar em um lugar e rapidamente tornando-se o dono absoluto, com todos à sua volta, bebendo com ele e bebendo ele.
É triste perder amigos. É triste perder alguém que você admira e ama.
Estou imensamente triste por saber que não vou mais encontrar o Poeta por aí, que não vou poder convida-lo para um vinho com guloseimas na minha casa, e ainda, com toda reverência, perguntar: “Poeta, quem você gostaria que eu convidasse”? Porque é assim que eu trato os príncipes.
E Amaral Cavalcante não foi só um grande poeta, cronista, jornalista. Amaral Cavalcante era um príncipe.
Minha alma está de luto.
Sim, é verdade, Poeta. A vida lhe quis bem. Eu lhe quero bem.
Clara Angélica Porto
Acordo com a notícia: morreu Amaral Cavalcante. Inegável o susto e o sentimento. É como se houvesse recebido um corte na minha própria formação e construção cultural, é saber que calou-se uma das mais brilhantes vozes da cena sergipana, o poeta, o jornalista, o cronista, o editor.
Ícone e referência de uma geração brilhante, a mesma geração do poeta Mário Jorge, da multifacetada Ilma Fontes, do grande compositor Alcides Melo, do artista plástico Joubert Moraes, do músico Marcos Chulé, da atriz Uilma Rodrigues, do cronista João de Barros, o Barrinhos, da bailarina Lu Spinelli, do cinéfilo Djaldino Mota Moreno, da jornalista Clara Angelica Porto, do poeta Hunaldinho Alencar, da historiadora Terezinha Oliva, do jurista Clóvis Barbosa...
Havia nessa geração o desejo de criar e o fez como qualquer outra geração do planeta, antenada, atualizada, talentosa, duma época em que a comunicação jornalística para além dos limites da cidade se fazia pelo fax e se esperava chegar a tarde para receber os jornais do Sul do país ou à noite quando as ondas médias do rádio possibilitavam uma melhor audição dos programas internacionais e com ele, o rádio, saber o que se passava no mundo em tempo real. A televisão estava só começando, mera repetidora com jornais somente no plano local.
No fim dos anos 60 "Vôos Mitos Coloridos" que na cacofonia formava "vômitos coloridos" disse muito daquela geração, uma antes da minha mas que pude beber e alcançar, como um privilegiado, tudo que aquela geração legou.
Amaral era então o poeta, o jornalista que ousou o mais significativo jornal alternativo de Sergipe, o Folha da Praia, uma mistura meio pasquim com tecidos iconoclastas fazendo uma inovação e abrindo oportunidades à escrita fácil sem as exigências do jornalismo engessado, onde até havia a crônica social em forma docemente irônica. Amaral foi a síntese disso tudo.
Como na música de Belchior, Amaral veio do interior (Simão Dias) "sem parentes importantes" e trazendo na cabeça muito mais que uma canção do rádio e compreendendo que nem tudo era divino e maravilhoso. Morou em pensões, trabalhou como vendedor na livraria alternativa da Galeria Álvaro Santos, sobreviveu. Mas logo sua inteligência fulgurante fez dele uma referência: era o poeta. Mas o poeta que publicou de poesias somente um livro, depois de ter sido o primeiro vencedor do Concurso de Poesia Falada do Nordeste com o magnânimo poema "Romance da Aparição".
Irriquieto, no início dos anos 80 escrevia uma coluna diferenciada no Jornal da Cidade chamada "Pique Geral" multifacetada, centrada nos costumes e fazeres daquela geração e que inspirou outras colunas como a minha "Artefatos" (Jornal de Sergipe) e a "Resenha" de Jorge Lins (Gazeta de Sergipe) a que juntos em doce ironia, cognominávamos de "colunistas não alinhados" numa referência ao bloco dos países não alinhados da época da guerra fria.
No surgimento das redes sociais Amaral fez do Facebook sua maior trincheira. Ali com sua pena fina, com o deboche elegante, o uso inteligente do chiste, um estilo próprio e o domínio incomum da palavra, nos brindou com as mais deliciosas crônicas do cotidiano sergipano, trazendo reminiscências sobretudo dos efusivos anos 80, ou mesclando com sua contundente poesia. Das crônicas veio "A vida me quer bem: crônicas da vida sergipana” o segundo e último livro dele, o seu canto do cisne, que teve a cuidadosa supervisão de edição de Mário Britto e lançado ano passado.
Também foi o editor da "Cumbuca" a revista cultural da Editora Diário Oficial, única no gênero,uma válvula de escape para o registro da sergipanidade e da cultura sergipana.
Com a mesma engenhosidade com que escrevia suas crônicas Amaral resumiu sua geração:
“Somos uma geração etílica, nós convivemos nos bares, frente a frente na mesa de bar batendo papo, conversando, discutindo a vida e aprendendo, hoje ficamos mais a frente do computador”. Aliás sou da geração que sequencia a de Amaral e que, portanto, quando me dei conta já estava na mesma contemporaneidade.
Amaral merece uma biografia que, ao ter sua vida contada, contar-se-ia a história de uma das mais brilhantes gerações do fazer artístico inovador de Sergipe.
Nos últimos dois anos o poeta esteve em uma cadeira de rodas e recebendo com bom humor as sessões semanais de diálise e vivia sob os cuidados de Samuel, seu anjo da Guarda a quem chamava de filho.
Com sua morte na madrugada desta terça feira (07/07) se vai um importante pedaço da nossa cultura. Se vai Amaral Cavalcante em um instante tão triste do mundo, um instante de dor e advertência à humanidade pós Covid, um "instante amarelo" que é o título do seu único e marcante livro de poesia.
Vai levando poesias, um baú de recordações e toda a sua grandeza.
Vá com Deus poeta!
Luiz Eduardo Oliva
(*) na foto um dos meus últimos encontros com o poeta, numa animada conversa juntamente com Clóvis Barbosa. Amaral já estava em cadeira de rodas
Amaral Cavalcante se foi. Mas é um que "se" fica!
Amaral Cavalcante: *11.07.1947+07.07.2020
Um beat. Um poeta. Um iconoclasta. Um lúdico. Um lírico. Um memorialista. Um passional. Um jornalista. Um arregimentador de desiguais e de diferentes. Um boêmio. Um que marcou.
Em diversas categorias de definições bem se encaixava o velho Antonio Amaral Cavalcante, que na madrugada deste dia 7 de julho juntou uma bota noutra com o bico pra cima e bateu às portas de São Pedro.
Amaral Cavalcante lutou bravamente, entre uns e vinhos, contra um diabetes indelicado, um câncer de próstata, mas não quis prosa com a Covid-19 que Jair Bolsonaro batizara de uma gripinha.
Amaral Cavalcante morreu nesta madrugada na Urgência do Hospital do Ipes e vai ser cremado na Caueira ainda durante esta terça-feira numa solenidade nada solene: só ele com seu fogo final. No atestado de óbito está contida a inscrição da Covid.
Antonio Amaral Cavalcante nasceu no dia 11 de julho de 1946 em Simão Dias - estava, portanto, a quatro dias de emplacar 74 anos. Foi avexado, e partiu sem arredondar a conta.
Impossível pensar a cena da memória, da cultura beat e do jornalismo sergipano sem que se puxe uma cadeira cativa e fornida para Amaral Cavalcante. Nos anos 70 e 80 ele deu dois tiros certeiros nos agitos culturais do lugar.
Com um, funda o irreverente Folha da Praia, que foi laboratório jornalístico e da contracultura de muitos malucos sergipanos e aqui aportados. A Folha da Praia foi, em versão serigyzada, um Pasquim. Um monumento ao jornalismo destabacado, lírico, chutador de paus de barraca. Contestador.
Era um inferninho contra botas e quepes de milicos e adesistas da nada branda ditadura militar, hoje irresponsavelmente tão evocada com suspiros de saudade por alguns insanos. A Folha fez história e garantiu a existência e os vinhos de Amaral.
Ainda na mesma década, Amaral Cavalcante causou com "Instante Amarelo", seu único livro de poemas publicado em vida - bom livro, por sinal. Ele era, ao modo arrebentador, signatário da poesia marginal dos 70, que tinha uma visão dos beats bem ativada.
Há em "Instante Amarelo" ecos de Cacaso, Leducha, Leminisk e de muitos dos seus contemporâneos, como Mário Jorge Menezes e Ilma Fontes, que reverberam a poesia dos 70 com dignidade na terra dos cajueiros e papagaios.
Neste milênio, convidado por mim a ser um cronista do falecido Cinform, Amaral Cavalcante surpreendeu com um jorro portentoso de escritos na esfera memorialista.
Destilou textos fantásticos, onde a linha do afeto memoralístico deu o ritmo, o compasso e a formação do livro "A vida me quer bem", uma reunião do melhor desta fase, que ele lançou dia 7 de novembro do ano passado.
Sim, a vida quis bem a Amaral Cavalcante e ele, inegavelmente, quis bem a ela. Uma pena que ambos tenham levantado o crachá do adeus assim tão cedomente. Tão precocemente.
E, ainda mais, em tempo de pandemia de Covid-19, que nos veda de afagar os cabelos ou beijar a testa dos que partem.
Mas incomode-se não, Amaral velho de guerra, e se sinta afagado. Que a terra - ou melhor -, o fogo lhe seja leve.
Jozailto Lima
A vida lhe quis bem
Triste é o dia quando a página de Cultura dos periódicos assume a função de obituário. Remedia-se, assim, em alguns poucos parágrafos, o talento muitas vezes negligenciado em vida, como a proclamar, redundante: Inês é morta.
Eu, de minha parte, resisto sempre ao sentimento fácil dos necrotérios. Se um sambista passa dessa para melhor, por exemplo, celebro o morro e o samba. Sem uma lágrima de mentira. Sem a dor tomada aos seus próprios. Sei feliz, a vida que se aproveita em um verso.
Deus me livre de prestar homenagens tardias. Desse pecado, quero as mãos limpas. Se Amaral Cavalcante foi encontrar Cleomar Brandi lá nas alturas, entre os anjos de pele negra que eles achavam tão bonitos, deixou, antes de partir, algumas das páginas mais preciosas da crônica Serigy. Não há o que lamentar, portanto. Muito ao contrário. A vida lhe quis bem.
Eu choro mesmo por quem fica. Luciano Correia, que me deu a notícia logo cedo, aos prantos. Antonio Passos, com quem assaltei a adega do poeta, numa dessas ocasiões quando o sol surpreende os bêbados virado em um desmancha prazeres, pisando em ovos. Choro por mim mesmo, no meio do mar sem farol na costa, mais solitário do que nunca.
Vai-se o poeta, sem qualquer espécie de rito. E eu só consigo pensar na frase atribuída a Cazuza, no filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho. Devastado pela doença que lhe roubaria a alegria escandalosa da juventude, em seus últimos dias de vida, ele constata, como quem oferece alento: “Morrer não dói"
Rian Santos
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