Rosana Pinheiro-Machado
21 de Julho de 2020, 1h03
rosana-siteIlustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil
ENQUANTO VOCÊ LÊ esta coluna, parte da rede bolsonarista de WhatsApp recebe aproximadamente 5 mil mensagens nos quase 2 mil grupos de apoio ao ex-capitão.
“A extrema direita ganha por W.O.”, quando há vitória de um time sem adversário. Assim Pedro*, expert em tecnologia e política, define a atual disputa ideológica entre direita e esquerda nas redes sociais. Ele segue sua explicação: “é como se fosse uma guerra aberta, na qual a direita vem com drone e bombardeio, e a esquerda joga um fogo de artifício para o alto para tentar demonstrar reação, sem exatamente entender que está numa guerra”.
Pedro se vale de muitas figuras de linguagem para explicar e dar sentido ao horror da caixa de pandora que tem em mãos. O último monitoramento realizado por sua equipe analisou 2.513 grupos de WhatsApp bolsonaristas, 93.886 usuários e mais de 5 milhões de mensagens conspiracionistas sobre o coronavírus compartilhadas desde fevereiro.
Eu acessei o software, sem preparo psicológico prévio, e fiquei enojada e atônita por alguns dias. Para pesquisadores que trabalham com big data e extrema direita, é normal lidar com uma quantidade imensa de dados desse tipo. Mas não é o meu caso. A sensação de ver a máquina do ódio funcionando a todo a vapor, segundo a segundo, me fez entender um pouco o que Pedro queria dizer com uma guerra sem adversário.
Pedro tem um vasto e respeitado currículo profissional na área de política e tecnologia, mas prefere manter sua identidade protegida para seguir nos bastidores sua luta contra a desinformação. Abrindo a caixa de pandora diariamente, ao mesmo tempo em que tenta dialogar com as principais lideranças do campo da esquerda no Brasil, o pesquisador tem uma visão bastante árida da fragilidade tecnológica do campo progressista. Para ele, as esquerdas têm uma dupla defasagem na disputa política-tecnológica.
Primeiro, uma parte da esquerda ainda não entendeu – e talvez não esteja disposta a entender – que a grande mudança de paradigma político no século 21 foi impulsionada pela tecnologia. Segundo, esse estado de inanição apenas reflete algo de fundo, que é uma falta de projeto e orientação para o futuro.
É claro que existem movimentos, mídias, ativistas, influenciadores digitais e parlamentares que se preocupam com o tema e têm grande impacto nas redes. Não se trata de ignorar o trabalho daqueles que, há alguns anos, estão tentando mudar esse quadro. O ponto é meramente reconhecer que esses esforços não chegam perto de compor estrategicamente um ecossistema de atores que se movem, mais ou menos de forma coordenada, num processo de disputa política propriamente dito.
Pedro relata situações em que desenvolveu projetos digitais para partidos e lideranças de esquerda. Sua frustração é, campanha após campanha, ver que o trabalho é muitas vezes interrompido após as eleições: “Não dá para parar. Esse é um projeto contínuo”.
Acreditar que basta ganhar a eleição de 2022 para mudar o quadro catastrófico em que nos metemos faz parte do autoengano generalizado e sintomático que acomete a esquerda tradicional há quase uma década.
Surgem manifestações coxinhas, a gente dá risada. Bolsonaro se coloca como candidato, a gente diz que ele não terá tempo de televisão e que o sistema político irá se regenerar em torno da polarização PT versus PSDB. Bolsonaro cresce nas pesquisas, é porque Lula está preso – sim, evidentemente, mas podemos pensar que não foi só isso? Bolsonaro ganha as eleições é porque levou a facada – sim, esse foi um elemento desestabilizador, mas podemos pensar que não foi só isso?
Não se trata de ignorar os muitos golpes que a esquerda e o PT, em particular, sofreram. Mas é preciso também entender que a extrema direita vem se articulando nas mídias desde a virada do milênio. E essa articulação tem sido feito com propósito, tentativa de coordenação de diferentes vertentes e sistematicamente espalhando paranoia e pânico moral contra inimigos forjados.
Quando não entendemos que a vitória de Bolsonaro faz parte de um projeto muito maior, só nos resta esperar as pesquisas de aprovação do governo a cada semana e ficar agarrados naquelas que indicam alguma queda da base dos 30% do que seria o núcleo-duro bolsonarista. Resta-nos torcer para que o governo se autodestrua. Basta eleger alguns parlamentares e tentar não perder em 2022. Resta-nos acreditar que tudo o que aconteceu no Brasil foi fruto das fake news bolsonaristas produzidas no “gabinete do ódio”. Acreditamos que, ao prender seus agentes estratégicos, o núcleo-duro bolsonarista seria desestruturado.
Essa é uma visão limitada de como se articula a rede bolsonarista política e tecnologicamente. Pedro dá o exemplo da prisão de Sara Winter, que não tinha nenhuma menção no ecossistema de extrema direita. Após sua detenção, houve uma explosão de seu nome na rede, em uma onda de viralização de linguagem religiosa que pedia por orações por ela em mais de 1.031 grupos cheios de emojis de amém e linguagem de guerra espiritual.
A verdade é que pouco adianta regular as mídias e prender criminosos extremistas sem apresentar um projeto político e tecnológico alternativo a médio e longo prazo.
“Infelizmente, a rede de distribuição de informação do ecossistema é muito maior do que a operação da Polícia Federal foi capaz de identificar”, diz um relatório realizado pela equipe de Pedro, demonstrando que, para além dos grupos militantes declarados, essa rede atua também por clusters presentes em grupos de venda, pornografia e caminhoneiros.
Pedro sempre bate na tecla que a incompreensão de como funciona o ecossistema traz resultados negativos para a esquerda enquanto um campo de oposição. “Muitas pessoas pensam que basta acabar com o gabinete do ódio como se a rede bolsonarista fosse meramente uma estrutura de poder e financiamento vertical. A grande incompreensão é não entender que essa rede atua com suas próprias mídias e é muito mais autônoma, horizontal, autofinanciada do que se imagina”.
O gabinete do ódio – que precisa, sim, ser desestruturado – é, portanto, consequência (e não apenas a causa) de um alinhamento de forças de articulistas e influenciadores outrora pulverizados. Acabar com esse ponto de organização não necessariamente mina os 18 mil outros domínios de divulgação política mapeados por Pedro.
É evidente que esse ângulo de olhar a realidade traz uma profunda angústia e uma sensação de impotência. A primeira coisa que nos perguntamos é como sair dessa. É possível que os ratos voltem para os esgotos depois de as comportas terem sido abertas? É possível regenerar um sistema putrefato que funciona livremente?
Em primeiro lugar, penso que é importante não perder de vista que nem tudo é vitória por W.O. do lado de lá. O professor especialista Fábio Malini, pioneiro no estudo de big data e política das redes no Brasil, comentou comigo recentemente que não podemos esquecer que o poder bolsonarista, atualmente, advém de uma máquina de propaganda governista, o que, a meu ver, enfraquece a espontaneidade e autenticidade do ecossistema.
Malini também destaca o fato que ideias progressistas estão ganhando espaço nas redes e no mercado editorial, citando Felipe Neto e Djamila Ribeiro, por exemplo, e que mais atenção pública tem sido dada ao trabalho de parlamentares de esquerda. O professor também mostra que as hashtags #antifa #antirracismo e #auxilioemergencial são exemplos de disputas narrativas que o campo progressista venceu nas redes.
Ambos os pesquisadores concordam que o anticientificismo de Bolsonaro é um ponto fraco. Quando a gente fala de esperança nas redes, ela vem da renovada atuação de cientistas pautando debates nacionais, os quais não apenas defendem o conhecimento técnico, mas também a democracia.
Buscando uma luz no fim do túnel, questionei Pedro se havia um ponto de abalo nesse ecossistema. Ele me disse que as mensagens de pessoas infectadas por coronavírus são um ponto importante de desestabilização. Começaram a circular mensagens de pessoas chorando, relatando sofrimento e morte, dizendo que não era uma “gripezinha”. Malini entende que isso afeta a classe médica e também os demais grupos apoiadores, produzindo um efeito negativo que não é instantâneo, mas tem “influência de longo prazo”.
Nada disso, contudo, impacta imediatamente a caixa de pandora bolsonarista, especialmente via WhatsApp. É por isso que, no curto e no médio prazo, é tão importante investigar e regular as mídias. Não se trata de uma salvação, mas um passo importante para impor limites no avanço da extrema direita, que até agora andou sem freios.
Quando conversei com o historiador Federico Finchelstein para minha última coluna, perguntei como e quando acabam regimes fascistas baseados em mentiras. Ele me respondeu que, olhando para o passado, o esgotamento se dá da maneira mais trágica: quando as pessoas começam a morrer. Essa é uma resposta que faz todo o sentido e encontra eco na própria política de morte bolsonarista, que agora atinge seus próprios apoiadores.
A experiência da extrema direita aponta para a formação de uma rede em que as pessoas se sentem incluídas no processo político.
Mas, em termos de ação política, essa não é uma resposta aceitável para o campo de oposição, que não pode esperar – e não tem esperado – que as pessoas morram.
A verdade é que pouco adianta regular as mídias e prender criminosos extremistas sem apresentar um projeto político e tecnológico alternativo a médio e longo prazo. A luta comunicacional contra a extrema direita é inglória e assimétrica porque os fascistas atuam por mentiras que tocam no âmago no medo – e o medo é um sentimento que mobiliza os indivíduos visceralmente. Mas é possível entrar nessa batalha de forma honesta mudando o modus operandi.
Por pelo menos quatro décadas, os gurus da extrema direita estudaram as táticas políticas da esquerda. Agora, está na hora de a esquerda fazer o movimento contrário, não para copiar os métodos sujos, mas para entender seu funcionamento.
A experiência da extrema direita aponta para a formação de uma rede em que as pessoas se sentem incluídas no processo político, se sentem atores ativos e não passivos no ecossistema bolsonarista. Isso já estava claro nas minhas pesquisas e de Lúcia Scalco com jovens no Morro da Cruz, realizadas em Porto Alegre em 2017. Os simpatizantes repassavam mensagens e criavam conteúdos voluntariamente no YouTube para espalhar em outras redes.
Há muito pouco disso no campo da esquerda tradicional, que usa o WhatsApp ainda de forma vertical, cadastrando números de telefone para passar informação de políticos e partidos unilateralmente. Também se disseminou a promoção de intermináveis lives, bastante explicativas do mundo e muito pouco participativas – e não raramente com a caixa de comentários do Instagram fechada. Por uma hora, o político x fala com o líder do movimento y – e há quem acredite que isso é disputa de redes. Esse é um modelo que está fadado ao fracasso.
A esquerda precisa já se ocupar das redes de forma mais propositiva, horizontal e articulada para formar um ecossistema inclusivo, que não fique permanentemente caçando a carteirinha de seus membros.
O campo tradicional da esquerda precisa se abrir, fomentar alianças amplas, ampliar as linhas de debate, formar novas lideranças e oferecer esperança, utopia e projeto no lugar do medo.
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@_pinheira
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