sexta-feira, 5 de abril de 2024

O SILÊNCIO DA CNBB SOBRE OS 60 ANOS DO GOLPE DE 1964. NOTA - Romero Venâncio (UFS)

A reportagem é de Eduardo Campos Lima sobre: "Episcopado brasileiro ignora 60 anos do golpe militar", publicada por Crux/IHU, nesse abril de 2024, passou despercebida ou quase. Uma pena. Mas merece reflexão. O autor começa com uma histórica lembrança:

"Há dez anos, no 50º aniversário do golpe, a CNBB divulgou um comunicado no qual dizia às gerações pós-ditadura que deveriam permanecer ativas na defesa do Estado de Direito e reafirmava o compromisso da Igreja com a defesa de democracia participativa e justiça social para todos”.


Aconteceu algo com o episcopado brasileiro depois desses dez anos passados?  com certeza. Mudou muito a "cara" do episcopado brasileiro nos últimos anos e ficou cada vez mais distante os ecos de bispos profetas, corajosos e inspiradores. Neste ano de 2024, nada no site da CNBB ou nas redes digitais da entidade. Um silêncio tumular sobre o tema. A CNBB tem história no tema "Golpe de 1964 e sua herança". Recobremos um pouco da memória. 

Em 1964 a Igreja Católica apoiou o golpe. Rondava nos setores médios brasileiros o velho anticomunismo, que foi crescendo ainda mais com o governo João Goulart. As greves, o crescimento do movimento operário organizado em várias capitais do Brasil, as ligas camponesas, o movimento estudantil e o destaque para alguns intelectuais oriundos das esquerdas preocupava a grande ala conservadora da Igreja e os movimentos reacionários de classe média. Embalada por estes discursos contra o comunismo, a "ameaça" de Cuba, os movimentos de guerrilha que cresciam na América Latina, levaram a Igreja Católica a tomar posições bem conservadoras.

Ainda em 1964, mais precisamente no dia 29 de maio de 1964, a Igreja através de um grupo de bispos da CNBB, tornava público um histórico documento "Declaração sobre os acontecimentos de abril e maio de 1964". Os prelados católicos assumiram uma posição de apoio aberto e categórico ao golpe de 1964:  "atendendo a geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as forças armadas acudiram a tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra (...)" (declaração de Bispos da CNBB na Revista Paz e Terra, 1968: 160).

As mudanças em relação a ditadura na Igreja Católica no Brasil, vieram  a partir de 1969. Depois do AI-5 e o total fechamento do regime ditatorial, a Igreja foi atingida e em cheio. Desde 1964, quando chegou em Recife, Dom Helder Câmara estava na qualidade de importante liderança da Igreja em sua ala progressista. Crítico dos desdobramentos do golpe e de como crescia o regime para uma ditadura, Dom Helder foi um dos primeiros a mudar sua posição sobre os militares. Desde 1967, vinha falando sobre a tortura nos porões da ditadura e estava "manchando" a imagem do Brasil e dos militares nos países onde era convidado e fazia discursos. O incômodo dos militares com Dom Helder e sua influência dentro da Igreja era notório e público, inclusive alguns generais buscavam outros bispos para reclamar. Tudo isso está bem documentado no livro "Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura" do brasilianista dos EUA Kenneth Serbin. Esse é um livro fundamental para entender as relações entre os bispos e os militares do poder no Brasil pós-64. Básico em nossa pesquisa e farto em fontes e prudente nas análises, o livro tornou-se uma referência para os pesquisadores na área.

A prisão e tortura sobre a Madre Maurina Borges em Ribeirão Preto, o assassinato do pe. Henrique no Recife e a prisão e tortura que sofreram um grupo de frades dominicanos fez a Igreja mudar radicalmente. A partir desses fatos, a Igreja Católica mudou de posição sobre a ditadura e assumiu um lugar de combate. A CNBB e Dom Helder Câmara junto com Dom Paulo Arns da Arquidiocese de São Paulo assumiram a liderança nesse combate. Documentos, análises de conjuntura, Campanhas da Fraternidade, comissões de justiça e paz na defesa dos direitos humanos passaram a ser a linha da Igreja nos anos 70.

Um legado importante para pensarmos hoje, 2024, os 60 anos do golpe de 1964. Fundamental a memória dos acontecimentos, dos personagens, das lutas, das torturas covardes, da luta pela democracia, dos exílios, das mortes e dos corpos ainda desaparecidos. 

E onde anda a CNBB em dias atuais? Silenciando diante da sua história, de seu legado e diante dos 60 anos do golpe e da ditadura. Nem a histórica posição da entidade os bispos querem recuperar. Lamentável. Mas para não ser injusto com alguns bispos ainda na linhagem profética, lembro aqui Dom Vicente Ferreira que em suas redes pessoais lembrou a data e divulgou o livro "Brasil, nunca mais" acompanhado de um texto. Merece destaque. Sei que temos mais alguns bispos que têm compromisso com causa dos pobres e oprimidos neste país e jamais defenderiam golpe ou ditadura alguma. Sei e afirmo a dignidade de um Dom Joaquim Mol. Sabemos disso. Mas o incômodo silêncio num contexto de avanço de uma extrema direita (inclusive dentro da Igreja), nos deixa triste e até envergonhados de nossos pastores. Nossos bispos sabem da frase evangélica:

"Se calarem a voz do profeta

as pedras falarâo.."

... e arrematava o poeta Carlos Drummond:

"Não sou pedra

logo, me revolto..."

Em tempo!

Episcopado brasileiro ignora 60 anos do golpe militar.

A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de evitar promover atos oficiais no 60º aniversário do golpe militar de 1964 que levou a uma ditadura de 21 anos está aparentemente sendo seguida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). 

A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 03-04-2024. 

Em meio às tensões entre seu governo e as Forças Armadas – que têm apoiado principalmente o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua tentativa de golpe em janeiro de 2023  Lula disse a seus ministros no início de março para não organizarem nenhuma cerimônia (o que teria um tom crítico inconfundível) para marcar o aniversário. 

Em fevereiro, Lula afirmou em entrevista que prefere não “remoer” as consequências do golpe de 1964, algo que “pertence ao passado”. 

A Igreja Católica, que foi um ator fundamental na resistência ao regime, tem tradicionalmente relembrado os aniversários do golpe, enfatizando a importância da democracia e do respeito aos valores humanos.

Há dez anos, no 50º aniversário do golpe, a CNBB divulgou um comunicado no qual dizia “às gerações pós-ditadura que deveriam permanecer ativas na defesa do Estado de Direito” e reafirmava “o compromisso da Igreja com a defesa de democracia participativa e justiça social para todos”. 

Este ano, porém, o site da CNBB não mencionou a data. Nenhuma postagem nas redes sociais nos perfis do episcopado fez referência ao 60º aniversário do golpe, o que representa uma ruptura notável com uma tradição mantida ao longo das últimas décadas. 

As Forças Armadas assumiram o controle do Brasil entre 31 de março e 1º de abril de 1964 em meio a uma grande instabilidade política, destituindo o presidente João Goulart. Embora os militares tenham prometido convocar novas eleições em breve, isso nunca aconteceu. O Partido Comunista foi declarado ilegal pela junta, que também assumiu o controle indireto de muitos sindicatos e movimentos sociais. 

Ao longo dos anos, o regime assumiu um carácter cada vez mais violento e intensificou a perseguição a membros da oposição. Em 1968, os militares decretaram um conjunto de atos que suspenderam muitos direitos constitucionais, inaugurando anos de autoritarismo feroz.  

Existem numerosos casos de violações dos direitos humanos, incluindo milhares de detenções ilegais e casos de tortura. Um relatório oficial informou que pelo menos 434 pessoas foram mortas por agentes do Estado ou desapareceram nesse período, mas estudos apontam que outras centenas deveriam ser incluídas nessa lista, especialmente entre camponeses e ativistas indígenas mortos pelo regime. 

Embora muitos na Igreja tenham apoiado o golpe de 1964 e os grupos católicos não só tenham apoiado a cruzada do regime contra a esquerda, mas também tenham participado nela, a certa altura a maior parte da Igreja assumiu um papel na frente de resistência. 

Muitos padres, freiras e leigos católicos estiveram envolvidos em organizações políticas e movimentos contra a ditadura, e alguns deles foram presos, torturados ou mortos. 

Desde que o regime se tornou mais flexível, no fim da década de 1970 e início da década de 1980, a Igreja sempre promoveu eventos para assinalar os aniversários do golpe e para relembrar as histórias de membros do clero que desempenharam papéis centrais na luta contra as violações dos direitos humanos. É o caso do cardeal Paulo Evaristo Arns, que foi arcebispo de São Paulo durante os piores anos da ditadura e liderou a produção clandestina de um extenso relatório sobre tortura entre 1979-1985. 

O Pe. Manoel Godoy, professor de Teologia e defensor dos direitos humanos, afirma que tais datas devem ser sempre lembradas e discutidas, visto que o Brasil esteve sob o jugo militar em diversas ocasiões desde o século XIX e nunca conseguiu acertar as contas com a sua própria história. 

“Claro que dá para entender a postura de Lula em relação a isso. Mas não precisamos concordar com ele”, disse ao Crux. Analistas dizem que Lula não quer aumentar as tensões com as Forças Armadas num cenário já complexo. 

Bolsonaro, capitão reformado do Exército, contratou milhares de membros das Forças Armadas para trabalhar no seu governo (2019-2022) e nomeou generais e outros oficiais para desempenharem funções centrais durante o seu mandato. 

Depois de perder as eleições para Lula em 2022, ele teria discutido com líderes militares a possibilidade de dar um golpe de Estado, de acordo com um inquérito em andamento. Parte dos comandantes concordou em apoiá-lo, mas outros recusaram a ideia. Em 2023, uma semana após a posse de Lula, milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram prédios do governo em Brasília, em uma suposta tentativa de forçar a tomada do poder pelos militares. Os eventos de 8 de janeiro foram bastante semelhantes ao motim de 6 de janeiro no Capitólio dos EUA. 

A investigação vem mostrando que as Forças Armadas tiveram grande participação na tentativa de golpe de Bolsonaro. Oficiais de alta patente podem acabar presos. Os militares celebraram muitas vezes o golpe de 1964 como uma das suas conquistas importantes na história do Brasil, que levou ao que chamam de “revolução” e protegeu o país do perigo do comunismo. 

“O comunismo tem sido usado no Brasil em diversas ocasiões como desculpa para manobras políticas”, disse Godoy. Ele disse achar que Lula está errado por não querer recordar os 60 anos do golpe, porque “os brasileiros não podem ignorar a atuação dos militares em sua história”. 

“A ditadura durou 21 anos e foi terrível para a nação. Os militares estabeleceram para si vários privilégios que continuam a existir”, disse ele. A Igreja não deveria apoiar tais privilégios, acrescentou Godoy. Na sua opinião, não há razão para haver um ordinariato militar, por exemplo, “dado que não existe um ordinariato de 'trabalhadores' nem um 'ordinariato feminino'”. 

“A Igreja brasileira está de volta à sacristia. Antes ela era combativa, mas agora muitos pregam que só deveria cuidar das almas. Ignorar o aniversário do golpe é natural nesse contexto”, disse ele. 

Segundo Antonio Funari, que chefia a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a Igreja tende a ter uma postura moderada devido a preocupações institucionais, “mas curiosamente o maior líder progressista do mundo hoje faz parte da Igreja, o Papa Francisco”. 

“Na nossa opinião, temos que continuar a progredir, caso contrário as coisas podem voltar a retroceder. Deixar de 'remoer o passado' é arriscado”, disse ele ao Crux

Como líder de estudantes católicos na década de 1960, Funari foi detido logo após o golpe de 1964 por participar de um projeto de alfabetização inspirado em Paulo Freire em sua cidade. Em 1965, foi preso novamente, depois que a associação estudantil de São Paulo, que ele coordenava, organizou suas eleições. 

“O bispo de Santo André, na região metropolitana de São Paulo, veio nos ver na prisão e me perguntou como poderia me ajudar. Eu disse a ele que precisava fornecer um endereço local aos policiais”, disse Funari. Ele foi criado em uma cidade do interior e veio à capital para as eleições, algo que não pôde contar aos agentes do regime. “O bispo deu então uma declaração que dizia que eu morava numa paróquia local”, lembrou. 

Funari seria detido em outras duas ocasiões por atuar como advogado de presos políticos. “Felizmente, nunca fui torturado. Como advogado, minhas atividades eram de conhecimento público”, acrescentou. 

Em 1983, Funari já era um conhecido defensor dos direitos humanos e começou a trabalhar com a Comissão de Justiça e Paz. Ao longo dos anos, acompanhou centenas de casos de presos políticos e outras vítimas do regime

“Sempre defendemos que o Brasil deveria ter implantado um instrumento de justiça de transição para lidar adequadamente com o legado da ditadura. Ainda apoiamos essa ideia”, disse ele. 

Em janeiro, como parte desse esforço, a Comissão de Justiça e Paz enviou a Lula uma carta exigindo a recriação da comissão que investiga casos de pessoas mortas ou desaparecidas pelo regime naqueles anos. 

“Acho que cada vez mais pessoas estão conscientes da necessidade de protestar e exigir justiça quando se trata da ditadura. Promovemos uma marcha no dia 31 de março e foi a maior em anos. Havia muitos católicos ali”, disse Funari.

Leia mais

Nenhum comentário: