No tempo tecnofúnebre das “cidades inteligentes”, flerte com a frugalidade criativa. Imagine, num mesmo território, trabalho digno, consumo local, ruas vivas e democracia real. Estas possibilidades já existem. Que políticas poderão reuni-las num outro projeto de país?
OUTRASPALAVRAS - ALÉM DA MERCADORIA por Adriana Brandão - Publicado 04/04/2024 às 18:55
Quadro de Aliza NisenbaumIsso é sobre o imperativo de se imaginar um Novo.
Uma escuta do chamado ao retorno da produção de utopias.
Uma alternativa ao nosso atual modelo civilizatório.
Algo que faça a junção entre aprendizados milenares e as novas tecnologias.
Uma proposta que recupera a nossa sagrada dimensão de seres gregários, na contramão de um tempo de imposição do individualismo.
A dor que mobiliza esse exercício de imaginação vem do inchaço das periferias dos grandes centros urbanos e dos deslocamentos acelerados pelas mudanças climáticas e guerras. É uma tentativa de criar novos territórios que possam acolher os que não encontram condições de permanecer onde estão. Nem de longe uma imposição, mas uma alternativa.
É uma construção com escala de política pública, uma aproximação inédita entre os campos do desenvolvimento regional e urbano e da economia popular e solidária. Finalmente, é um projeto que quer trazer os benefícios da revolução digital para todas, todos e todes.
Aí vai, então, esse conto-utopia. Nada de tão original em sua essência, já que a maioria das tecnologias sociais apresentadas existem de fato e já foram validadas. Novo, talvez, seja ousar juntá-las no território. É, na verdade, um desafio de gestão pública.
Por um projeto popular e solidário de cidade inteligente
Imagine um vilarejo com 5 mil habitantes situado em uma região com belos cenários naturais, água abundante e terra fértil. Imagine que há uma rodovia – com asfalto de boa qualidade – ligando esse lugar a uma cidade de médio porte localizada a 120 km de distância, onde você encontra serviços especializados e comércio diversificado, ambos de boa qualidade.
Nesse vilarejo, o desenho das casas prima por conforto térmico, ventilação e iluminação naturais, o que é assegurado pelo aproveitamento da luz solar e das correntes de ar, além do uso de materiais de construção adequados ao clima local. Prioriza-se o uso daquilo que é abundante por ali como terra, pedra, madeira e bambu. Entre as casas não há muros, apenas lindos arranjos de plantas e delicados caminhos, garantindo privacidade e mantendo a sensação de coletividade. Há por volta de 1.500 casas no total, espalhadas por uma área de 250 alqueires mineiros de terra. O vilarejo tem núcleos de casas por perfis de moradores, os mais silenciosos, os mais festeiros, os que precisam de acompanhamento, o que facilita a prestação de serviços e diminui os atritos da convivência.
Conviver é entendido como algo sagrado, aquilo que sustenta toda a vida do lugar. Convivência no seu sentido plural, entre humanos, outros animais e plantas. Todos ali se dedicam à arte da boa convivência, praticando solidariedade e gentileza nas pequenas coisas do dia a dia. Há vários espaços de convivência espalhados pelo local, de praças arborizadas a pequenos comércios, como restaurantes, bares, padarias e cafés. Também há muitas áreas voltadas à prática de esportes e às brincadeiras das crianças. Isso faz com que as pessoas passem muito mais tempo ao ar livre e se encontrem.
No vilarejo, os conflitos são compreendidos como parte do processo de crescimento pessoal e comunitário. Há várias ações de mediação que buscam facilitar a construção de consensos entre os envolvidos, e a prática de uma comunicação não-violenta é ativamente estimulada.
Come-se, em grande parte, aquilo que é plantado lá. Tudo orgânico e fresco, sendo que muitos alimentos produzidos localmente são beneficiados ali. O vilarejo tem uma imensa área cultivada, além de criações que se preocupam com o bem-estar animal. Possui laticínio, vinícola e apiário. Todas as residências e todo o comércio local do ramo de alimentação utilizam o que é produzido ali.
A água é coletada da chuva e armazenada em cisternas, sendo reaproveitada através de bacias de evapotranspiração e círculos de bananeiras. Jardins de chuva e as bacias de retenção, por sua vez, asseguram uma drenagem sustentável. O vilarejo também faz a compostagem e a biodigestão dos resíduos sólidos orgânicos, transformando-os em fonte de energia e em recursos para a produção de alimentos.
A energia do vilarejo é, em grande medida, assegurada por placas solares e biodigestão. Todas as residências têm seu sistema de energia solar, também presente nos espaços comunitários e nos empreendimentos econômicos. Há vários pequenos negócios ali. Além do que já foi citado no campo da alimentação há marcenarias, tapeçarias, oficinas de artesanato, salões de beleza, academias, confecções de roupas, calçados, bolsas e um sem número de empreendimentos de outros segmentos. Todos priorizam o atendimento dos moradores do vilarejo, onde toda demanda gera uma nova oportunidade de trabalho, sendo as trocas econômicas facilitadas pelo uso de uma moeda local digital.
Há um banco municipal que atende ao conjunto dos moradores e é responsável pelas finanças do território, incluindo as operações de crédito. O crédito ofertado pelo banco tem como lastro uma poupança formada com o dinheiro dos moradores, e é disponibilizado tanto para pessoas físicas quanto jurídicas. Destaca-se aqui a reduzida taxa de juros, garantida pelas relações de solidariedade da comunidade, o que vem assegurando uma inadimplência quase nula.
A saúde tem lugar de destaque para os moradores. O vilarejo conhece as condições de vida de cada um de seus habitantes, atuando fortemente em ações de promoção da saúde e na prevenção e controle de doenças. Ações de educação em saúde são permanentes, voltadas principalmente para a prática de atividade física, alimentação adequada, equilíbrio emocional e sono de qualidade. Uma unidade local de saúde realiza consultas e exames de baixa e média complexidades, sendo também responsável pelo encaminhamento e acompanhamento dos pacientes graves. Casos urgentes são imediatamente transportados para um hospital de alta complexidade localizado a 100 km de distância, havendo um helicóptero de propriedade do vilarejo para o translado. Muitos moradores trabalham com práticas integrativas de saúde e a grande maioria dos habitantes já as incorporou em suas rotinas de autocuidado. A fitoterapia tem predominância como medicação, e há um projeto em curso para a criação de um laboratório local.
A educação também mobiliza a todos. Há uma preocupação em conciliar os conteúdos estabelecidos pelos parâmetros curriculares nacionais com o aprendizado da democracia e da solidariedade. Os estudantes são estimulados desde cedo a participar da vida coletiva, e é na escola que os moradores aprendem a participar dos processos de tomada de decisão sobre o vilarejo. Também é estimulado o aprendizado dos afazeres locais, o que é bem recebido pelos estudantes, uma vez que todo trabalho desenvolvido no vilarejo é visto como digno de respeito, e essa percepção de valor se reflete em remunerações justas para todos.
O vilarejo oferece educação local até o ensino médio. Uma parte dos estudantes dá sequência aos estudos de nível superior através do ensino à distância, outros vão cursar presencialmente uma faculdade fora de lá, custeados pelo poder público local. Como contrapartida, todos retornam por um período para devolver à comunidade o conhecimento adquirido, contribuindo para a continuidade do desenvolvimento do território. A escola também trabalha com a educação de jovens e adultos, incluindo alfabetização digital e ações voltadas ao estímulo da participação social. Também é lá que são ofertados cursos técnicos direcionados aos trabalhos de interesse do vilarejo.
Há peculiaridades interessantes na dimensão da mobilidade. Há beleza e segurança nos caminhos para a circulação dos pedestres, além de ciclovias por todo o território, sendo que a maioria dos moradores faz uso de bicicleta. As pessoas com alguma dificuldade de caminhar ou com peso para carregar são transportadas por motoristas em pequenos veículos, algo parecidos com os tuc-tucs indianos, ali movidos à energia elétrica. Os carros têm circulação reduzida e praticamente não há veículos particulares. Eles são de propriedade do território e garantem o translado dos moradores, direcionado principalmente à cidade da região que conta com serviços e comércio especializados, além de rodoviária interestadual e aeroporto, tudo a 120 km de distância.
Vale destacar também o serviço de entrega de mercadorias que atende a todo tipo de pedidos, do pão produzido ali a uma geladeira comprada pela internet. Todos os dias o vilarejo recebe encomendas que chegam de caminhão, sendo separadas e entregues na casa dos moradores por um serviço local.
Cultura e arte também são dimensões consideradas centrais pela comunidade. O vilarejo tem seu ponto de cultura. O lugar funciona como escola de teatro e dança, além de abrigar um cineclube, uma rádio e um jornal eletrônico comunitários. A criação de expressões culturais que aprofundem a identidade local é muito valorizada, assim como processos de mudança cultural envolvendo questões consideradas vitais pelos moradores. Provavelmente, a mais importante delas é que os moradores acreditam que um território próspero é mais importante do que indivíduos prósperos. Quem enriquece é o conjunto dos moradores, reforçando um sentimento de pertença e proteção social. Isso, por sua vez, reforça as relações de compromisso entre todos, num círculo virtuoso que impulsiona o desenvolvimento socioeconômico local.
Outra genial mudança cultural realizada pela comunidade foi a monetização do trabalho reprodutivo, o que significa dizer que pessoas que cuidam de outras pessoas passam a receber uma justa remuneração pelo seu trabalho. Cuidar da casa e da família, das crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, tudo isso é entendido como um trabalho de fundamental relevância para o território, participando das trocas econômicas locais. E isso é feito de forma comunitária, o que diminui a sobrecarga dos cuidadores, mulheres e homens.
Importante citar que o vilarejo oferece uma renda básica para todos, calculada de acordo com os custos de vida do vilarejo, o que inclui acesso à moradia, alimentação, água, energia, saneamento, saúde, educação, proteção social, comunicação, transporte e lazer. Como contrapartida, todos os moradores oferecem algum trabalho à comunidade.
Todo trabalho que seja considerado pela comunidade como de interesse do território entra no jogo das trocas econômicas locais. A maioria dos bens e serviços consumidos localmente são produzidos pelos próprios moradores, o que gera um grande número de postos de trabalho e assegura o equilíbrio do ciclo de produção e consumo. Nesta dimensão da gestão do território também há forte incorporação de tecnologia digital, um tipo de cooperativismo de plataforma elevado à escala territorial.
Ao final do ano o vilarejo faz a contabilidade geral de todo o território, define o que será reservado para investimentos na continuidade do desenvolvimento local e, ao final, faz uma repartição das sobras entre todos os moradores, o que garante a possibilidade de realização dos projetos individuais.
A gestão do território é outro elemento chave nessa experiência. Há um claro compromisso com uma gestão participativa, baseada em dados abertos e de propriedade do conjunto dos moradores. Há uma equipe técnica altamente qualificada, formada por moradores locais, que apoia a comunidade no processo de gestão do território. E a cerejinha do bolo, a tecnologia digital. O vilarejo fez uma ousada aposta na importância de se apropriar dos recursos trazidos pela era digital, priorizando ações voltadas à inclusão do conjunto de seus habitantes nesse novo universo.
Com um smartphone em mãos os moradores têm acesso a toda informação sobre o que acontece no território, o que assegura um acompanhamento permanente das decisões e fluxos financeiros. Temas importantes para a comunidade local são discutidos em assembleias e depois votados digitalmente através de plebiscitos online.
Outro aspecto muito relevante diz respeito à comercialização dos imóveis, operada pelo poder público local. Isso garante que novos moradores estejam cientes e de acordo com os propósitos da comunidade, expressos em seu estatuto e regimento interno. Esse mecanismo também assegura à comunidade o controle sobre os preços locais, evitando processos de gentrificação.
Enfim, a pergunta que não quer calar: seria possível encontrar um vilarejo como esse aqui no Brasil? Do ponto de vista técnico podemos dizer que sim. Há uma série de tecnologias sociais já consolidadas que, juntas, poderiam ajudar a construir esse lugar. Economia popular e solidária, bioconstrução, agroecologia, manejo sustentável da água, energias renováveis, saneamento ecológico, práticas integrativas de saúde, proteção social comunitária, pontos de cultura e tantas outras, que se caracterizam por serem soluções simples, de fácil replicabilidade e baratas.
E o que poderia ajudar a juntar tanta coisa? Juntar tudo isso fica fácil se, como ponto de partida, os moradores do território escolherem o associativismo e o cooperativismo solidários como bases de toda a organização socioeconômica do território. Uma série de cooperativas atuando de forma articulada, com foco na resposta às necessidades de vida dos moradores. Sai a ideia do lucro privado e entra a do bem-estar coletivo. Onde todos são sócios muda o modelo de gestão, em associações e cooperativas as decisões são tomadas em assembleias, onde cada cabeça tem direito a um voto.
Esse exercício de imaginação busca dar contornos ao desenho de um território capaz de assegurar justiça social e sustentabilidade ambiental ao conjunto dos seus moradores, pensando especialmente naqueles que vivem da sua força de trabalho e que não encontram lugar no mercado formal ou informal. É também um lugar pensado para aqueles que, podendo escolher como viver, gostariam de experimentar uma vida mais simples, solidária e saudável, felizes por participar da construção desse outro mundo possível.
É uma tentativa de dar materialidade às nossas escolhas políticas, buscando um caminho para assegurar a todos o direito à cidade. É pensar numa versão à esquerda da cidade inteligente. É apostar em soluções disruptivas, capazes de responder às múltiplas crises do nosso tempo.
Adriana Brandão
Psicóloga, Especialista em Saúde Pública e Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social. É Analista Técnica de Políticas Sociais da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária/Ministério do Trabalho e Emprego. E-mail: adriana.m.brandao@gmail.com
Marisa Monte - Vilarejo
Esse texto acima nos lembra a apresentação do tema Permacultura na última Jornada Ecologia e Espiritualidade(2017) , uma apresentação rápida, e que mesmo assim demonstrando o quanto precisamos reformular o nosso modo de organizar os nossos encontros/cursos de formação das bases progressistas católicas, ecumênicas e laicas, os quais precisam articular teoria e prática de forma muito mais potente e eficaz do como é feito em muitas situações.
Esse texto em última instância representa a materialização do sonho de Francisco expresso na Encíclica Fratelli Tutti. Por outro lado, muitas iniciativas espalhadas no Brasil e mundo afora como as ecovilas ou ecoaldeias já conseguem avançar na perspectiva apontadas no texto. A caravana arco-íris por la paz, também nos ajudou a compreender que outro mundo possível, ou outros mundos possíveis, podem e devem começar a serem construídos aqui e agora. Ou aprimorados, haja visto o que já temos, como assentamentos do MST, conjunto habitacionais ligados ao MTST, por exemplo.
Zezito de Oliveira
P.S.: O campo cultural tem iniciativas interessantes neste campo, além dos Pontos de Cultura citados no texto, fui apresentado por este dias a uma iniciativa realizada em Portugal, por um companheiro ligado a Ação Cultural que morou alguns anos neste país e que teve contato com o Chapitô, conforme pode ser conferido abaixo:
https://www.instagram.com/reel/C5Qzm3JMkmq/?igsh=MXE4cHlqcXA2dnZ2
Quanto ao Brasil no campo cultural de forma semelhante, e também mais centrada no aspecto estético-cultural, tivemos a importante iniciativa da Aldeia de Arcozelo liderada pelo saudoso Paschoal Carlos Magno.
Aldeia de Arcozelo
ALDEIA DE ARCOZELO UM SONHO E UMA ESPERANÇA
E mais.....
Eu vim de piri piri - Paulo Diniz
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