domingo, 8 de setembro de 2024

A esquerda no divã - Mais excelentes análises sobre o imbróglio do assédio sexual na esplanada dos ministérios.



Para a esquerda trata-se de uma crise com inédito potencial de catástrofe

Milly Lacombe

Colunista do UOL

06/09/2024 12h27

A notícia de denúncias de cunho moral e sexual contra o ministro Silvio Almeida varreu o campo da esquerda como um tsunami. Silvio Almeida é uma unanimidade intelectual e voz que há alguns anos vem iluminando caminhos até aqui bastante sombrios. Seus livros, suas palestras e sua eloquência foram de grande ajuda para que o combate ao racismo ganhasse mais consciência e alargamento no Brasil. É, sem nenhuma dúvida, um ícone.

Educada por seu talento - e pela gentileza de outros autores e de autoras dos movimentos negros -, quando li sobre as denúncias de assédio moral minha reação foi a de pensar que pessoas negras em situação de poder são constantemente acusadas de serem raivosas, mandonas, autoritárias e que, na vasta maioria das vezes, essa é apenas uma manifestação de racismo já que, de uma pessoa negra, nossa sociedade racista espera apenas "sim, senhor" e "sim, senhora".

Mas aí chegaram informações de denúncias de assédio sexual e foi preciso puxar o debate de gênero para a mesa.

Aqui a história ganha muita complexidade: ao fator raça temos que somar o fator gênero. É a tal da inteseccionalidade sobre a qual o feminismo tanto fala. Nesse momento, fica tudo muito mais emaranhado.

Há a suposição de que pelo menos uma das denunciantes seja uma mulher negra, a ministra Anielle Franco. E, ao que consta, há denúncias de outras mulheres cujos nomes estão sendo protegidos por motivos óbvios já que a vida da mulher que denuncia é devassada depois que a denúncia se torna pública e, normalmente, é ela que vai para o banco dos réus.

Não apenas isso: é o Ministério dos Direitos Humanos envolvido em acusações que podem ter sido originadas do interior do Ministério da Igualdade Racial comandado por uma feminista. Estamos falando de núcleos fundamentais para quem é do campo da esquerda. Direitos humanos e feminismo. Em rota de colisão. Enquanto isso, a direita se regozija.

Piora quando ficamos sabendo que o governo que agora fala em celeridade está ciente das denúncias há algum tempo e pouco - ou nada - fez. Piora mas não surpreende já que a atual administração é pouco letrada em questões de gênero e reproduz o machismo e a misoginia sem muita vergonha.

É, assim, a demolição de sonhos e de crenças para muitos e muitas de nós. Para nós, feministas que temos Silvio Almeida na mais alta conta, o sentimento diante das denúncias é de devastação, de desolação, de uma profunda e imensa tristeza. É uma tragédia em seu mais profundo sentido. É a perda de um tanto de esperança. É a fronteira para um abismo que nem sabíamos que estava ali.

Mas é também o chamamento para que enfrentemos a brutal realidade batendo à porta. Dessa vez, não poderemos deixar de abri-la e, ao fazermos isso, os fantasmas entrarão. E eles são muitos e variados.

Querem deixar ainda mais complexo?

O ministério dos direitos humanos é o único ministério a se opor frontalmente à agenda da privatização dos presídios, que interessa ao setor privado e a uma sociedade que não se envergonha de ser racista. Temos 800 mil pessoas encarceradas, a vasta maioria composta por pessoas negras. A quem interessa o derretimento do único ministério que faz frente à privatização em seu momento decisivo?

Isso quer dizer que as denúncias não devem ser levadas a sério? Jamais. Isso quer dizer que precisamos ter a capacidade de enxergar a situação a partir de seus muitos ângulos e entender o momento em que denúncias - que pelo visto não são novas - foram vazadas. Entender a circunstância do vazamento não nos desobriga de investigar e punir, apenas tira de nossos olhos o véu da ingenuidade. Há interesses econômicos estrangeiros sobre muitas das pautas abarcadas pelo ministério dos direitos humanos e esse aspecto da guerra geo-política não pode nos escapar.

Nesse instante então temos a obrigação de nos indagar a respeito de mais uma camada: E os demais ministérios comandados por pessoas brancas? Seriam eles um paraíso para mulheres? Ou seria sempre mais conveniente a uma sociedade racista implodir por dentro ministérios comandados por pessoas negras? O ministro das comunicações se segura no cargo a despeito das múltiplas denúncias de malfeitos.

É, Brasil. É muito complexo, tem muitas camadas e seria prudente que encarássemos todas elas de olhos bem abertos.

Se esse caso servir para que o governo faça uma investigação profunda nas questões de gênero em seu interior então, sim, teremos ganhado alguma coisa. Mas se, nesse tempo, os presídios forem privatizados sem que um governo que se diz de esquerda tenha feito nada para impedir que o encarceramento em massa de pessoas negras seja, além de desumano, fonte de receita para empresários brancos, então teremos perdido bastante do outro lado.

Enquanto isso é a ministra da Igualdade Racial que está sendo o nome mais criticado e cobrado - pela direita e pela esquerda. Um sinal evidente de como o machismo opera livre pelo interior de todas as ideologias.

Os movimentos negros terão que lidar com toda a complexidade da questão. As feministas terão que lidar com toda a complexidade da questão. E a esquerda não poderá fechar os olhos para o debate de gênero do qual foge como a formiga do tatu dessa vez sem esquecer que existem questões de raça, como a privatização dos presídios, que são centrais.

Se as denúncias não forem provadas, perde o feminismo. Se as denúncias forem provadas, perde a luta antirracista. Se o ministério dos direitos humanos derreter, perdemos todos. Se o ministério da igualdade racial comandado por uma ativista feminista derreter, perdem as mulheres. Desde já, perdemos os que nos identificamos com pautas de inclusão, de solidariedade e de justiça social.

O que para a esquerda é um tsunami devastador, para a direita é uma onda perfeita em dia de sol em Teahupoo. Ela vai surfar como se fosse Gabriel Medina ou Tatiana Weston-Webb. E se a esquerda seguir fugindo do debate de gênero sem ser capaz de atravessá-lo com as questões de raça que envolvem interesses como a privatização dos presídios ela vai ser engolida como ainda não foi até aqui. Hora de adquirir letramento e expandir a consciência. Um momento sensível e delicado que exige nossa atenção e gentileza. Que possamos sair disso melhores e maiores.

---------------------------------//------------------------------------------

Um dia depois de Silvio Almeida ter sido esquartejado em praça pública antes das provas, milhares de pessoas foram à Paulista para cobrar a anistia a condenados com provas. Também querem, como é sabido, o impeachment de Alexandre de Moraes, ministro-relator do Supremo que conduziu os processos. Dada a temporalidade dos eventos e o "timing" do "Me Too Brasil", o massacre de Almeida serviu de esquenta para o ato convocado pela extrema-direita fascistoide. E, segundo se reporta, assim as coisas se deram nas redes. O resultado não foi lá essas coisas para a fascistada. Mas isso, em particular, é matéria para outro texto.

Ou bem a gente começa a pensar a respeito de certas práticas, ou bem se cria um novo tribunal no Brasil, composto por membros dessa ONG, que poderia ser batizado de STES: Supremo Tribunal de Execução Sumária. Há uma algaravia condenatória segundo a qual não há alternativa ao aplauso a uma cabeça no poste (a de Almeida) ou à condescendência com o assédio 

Reinaldo Azevedo

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Silvio Almeida e as acusações de assédio....Dossiê investigativo com base no noticiário. Atualizado de acordo com as novidades publicadas,


Mais repercussões:


ASSÉDIO SEXUAL E PODER DE ESTADO

Silvio Almeida, Lula, Anielle, a gota d’água para a demissão e a história da crise - por Mauro Lopes

Em velocidade alucinante, desde o fim da tarde de quinta ao início da madrugada de sábado, o governo teve que lidar com as acusações de assédio contra Silvio Almeida que se tornaram a maior crise desde o 8 de Janeiro. As chamas ameaçaram consumir politicamente a administração Lula



Sobre a demissão de Silvio Almeida
O problema não se encerra com a demissão e substituição de Silvio Almeida; nem se encerrará com a conclusão das investigações oficiais
Valter Pomar
São Paulo (SP)
8 de setembro de 2024,

A demissão do agora ex-ministro Silvio Almeida comprova que o concreto é mesmo síntese de múltiplas determinações.

No caso, entre outras tão ou mais importantes:

– a generalizada agressão contra mulheres, não importa quem sejam nem que cargo ocupem;
– o encaminhamento dado às denúncias, quando estas foram feitas reservadamente;
– a forma como a denúncia veio a público, em particular a natureza da entidade que serviu de portadora;
– o tratamento dado por Silvio Almeida, quando ainda era ministro, a diversas situações e temas;
– a diferente importância que se dá às denúncias envolvendo mulheres e homens, brancos e negros, pessoas de esquerda e de direita, ministérios “fortes” e “fracos” (a depender do rigor, ainda que por diferentes razões, uma única demissão não bastaria);
– a relação contraditória entre a presunção de inocência, o direito à privacidade e a condição essencialmente pública do cargo de ministro;
– a discussão sobre quem assumirá o ministério de direitos humanos (a depender da pessoa escolhida, certos problemas podem aumentar);
– o uso que a extrema-direita já está fazendo dos acontecimentos;
– o imenso desgaste político para a luta antirracista, para a luta das mulheres, para o PT, a esquerda e o governo;
– a dimensão digamos “pessoal” disto tudo, em primeiro lugar o sofrimento das vítimas. Sofrimento que leva, em alguns casos, à demora em denunciar certos crimes.

São tantas as dimensões envolvidas, que mais algum tempo será necessário para termos uma visão de conjunto; e mais tempo ainda será necessário antes que possamos divulgar uma versão supostamente completa e publicável.

Versão que precisa levar em devida conta a opinião dos militantes e movimentos envolvidos na luta das mulheres, negros e negras.

Mas, desde já, é possivel dizer, com base no que sabemos, tanto através de fontes públicas quanto privadas, que Lula fez bem em demitir o ministro.

Assim como fez bem a executiva nacional do Partido dos Trabalhadores em solidarizar-se com a ministra Anielle Franco e com todas as mulheres vítimas de violência.

O problema, contudo, não se encerra com a demissão e substituição do ministro; nem se encerrará com a conclusão das investigações oficiais. Entre outros motivos, devido ao que podemos chamar de “rachadura no cristal”.

O que isto significa já vimos no passado, quando denúncias de corrupção contribuíram para uma imensa crise num partido e num governo que destacavam seu compromisso com a ética na política.

No presente, fatos como os que levaram à demissão de Sílvio Almeida podem, de forma similar, contribuir para imensos problemas para uma esquerda que corretamente enfatiza a luta contra o racismo e contra o machismo.

Neste sentido, devemos evitar vários dos erros cometidos em situações similares.

Um deles foi não perceber o imenso efeito corrosivo e multiplicador de acusações que colocam em questão a coerência entre o que dizemos e o que fazemos.

Continua após o anúncio

No quesito “coerência”, da direita não se cobra quase nada.

Já da esquerda se cobra um alto nível de coerência.

E está certo que assim seja. Pois se levamos a sério o que defendemos, temos a obrigação de praticar o que predicamos.



Nenhum comentário: