Para a esquerda trata-se de uma crise com inédito potencial de catástrofe
Milly Lacombe
Colunista do UOL
06/09/2024 12h27
A notícia de denúncias de cunho moral e sexual contra o ministro Silvio Almeida varreu o campo da esquerda como um tsunami. Silvio Almeida é uma unanimidade intelectual e voz que há alguns anos vem iluminando caminhos até aqui bastante sombrios. Seus livros, suas palestras e sua eloquência foram de grande ajuda para que o combate ao racismo ganhasse mais consciência e alargamento no Brasil. É, sem nenhuma dúvida, um ícone.
Educada por seu talento - e pela gentileza de outros autores e de autoras dos movimentos negros -, quando li sobre as denúncias de assédio moral minha reação foi a de pensar que pessoas negras em situação de poder são constantemente acusadas de serem raivosas, mandonas, autoritárias e que, na vasta maioria das vezes, essa é apenas uma manifestação de racismo já que, de uma pessoa negra, nossa sociedade racista espera apenas "sim, senhor" e "sim, senhora".
Mas aí chegaram informações de denúncias de assédio sexual e foi preciso puxar o debate de gênero para a mesa.
Aqui a história ganha muita complexidade: ao fator raça temos que somar o fator gênero. É a tal da inteseccionalidade sobre a qual o feminismo tanto fala. Nesse momento, fica tudo muito mais emaranhado.
Há a suposição de que pelo menos uma das denunciantes seja uma mulher negra, a ministra Anielle Franco. E, ao que consta, há denúncias de outras mulheres cujos nomes estão sendo protegidos por motivos óbvios já que a vida da mulher que denuncia é devassada depois que a denúncia se torna pública e, normalmente, é ela que vai para o banco dos réus.
Não apenas isso: é o Ministério dos Direitos Humanos envolvido em acusações que podem ter sido originadas do interior do Ministério da Igualdade Racial comandado por uma feminista. Estamos falando de núcleos fundamentais para quem é do campo da esquerda. Direitos humanos e feminismo. Em rota de colisão. Enquanto isso, a direita se regozija.
Piora quando ficamos sabendo que o governo que agora fala em celeridade está ciente das denúncias há algum tempo e pouco - ou nada - fez. Piora mas não surpreende já que a atual administração é pouco letrada em questões de gênero e reproduz o machismo e a misoginia sem muita vergonha.
É, assim, a demolição de sonhos e de crenças para muitos e muitas de nós. Para nós, feministas que temos Silvio Almeida na mais alta conta, o sentimento diante das denúncias é de devastação, de desolação, de uma profunda e imensa tristeza. É uma tragédia em seu mais profundo sentido. É a perda de um tanto de esperança. É a fronteira para um abismo que nem sabíamos que estava ali.
Mas é também o chamamento para que enfrentemos a brutal realidade batendo à porta. Dessa vez, não poderemos deixar de abri-la e, ao fazermos isso, os fantasmas entrarão. E eles são muitos e variados.
Querem deixar ainda mais complexo?
O ministério dos direitos humanos é o único ministério a se opor frontalmente à agenda da privatização dos presídios, que interessa ao setor privado e a uma sociedade que não se envergonha de ser racista. Temos 800 mil pessoas encarceradas, a vasta maioria composta por pessoas negras. A quem interessa o derretimento do único ministério que faz frente à privatização em seu momento decisivo?
Isso quer dizer que as denúncias não devem ser levadas a sério? Jamais. Isso quer dizer que precisamos ter a capacidade de enxergar a situação a partir de seus muitos ângulos e entender o momento em que denúncias - que pelo visto não são novas - foram vazadas. Entender a circunstância do vazamento não nos desobriga de investigar e punir, apenas tira de nossos olhos o véu da ingenuidade. Há interesses econômicos estrangeiros sobre muitas das pautas abarcadas pelo ministério dos direitos humanos e esse aspecto da guerra geo-política não pode nos escapar.
Nesse instante então temos a obrigação de nos indagar a respeito de mais uma camada: E os demais ministérios comandados por pessoas brancas? Seriam eles um paraíso para mulheres? Ou seria sempre mais conveniente a uma sociedade racista implodir por dentro ministérios comandados por pessoas negras? O ministro das comunicações se segura no cargo a despeito das múltiplas denúncias de malfeitos.
É, Brasil. É muito complexo, tem muitas camadas e seria prudente que encarássemos todas elas de olhos bem abertos.
Se esse caso servir para que o governo faça uma investigação profunda nas questões de gênero em seu interior então, sim, teremos ganhado alguma coisa. Mas se, nesse tempo, os presídios forem privatizados sem que um governo que se diz de esquerda tenha feito nada para impedir que o encarceramento em massa de pessoas negras seja, além de desumano, fonte de receita para empresários brancos, então teremos perdido bastante do outro lado.
Enquanto isso é a ministra da Igualdade Racial que está sendo o nome mais criticado e cobrado - pela direita e pela esquerda. Um sinal evidente de como o machismo opera livre pelo interior de todas as ideologias.
Os movimentos negros terão que lidar com toda a complexidade da questão. As feministas terão que lidar com toda a complexidade da questão. E a esquerda não poderá fechar os olhos para o debate de gênero do qual foge como a formiga do tatu dessa vez sem esquecer que existem questões de raça, como a privatização dos presídios, que são centrais.
Se as denúncias não forem provadas, perde o feminismo. Se as denúncias forem provadas, perde a luta antirracista. Se o ministério dos direitos humanos derreter, perdemos todos. Se o ministério da igualdade racial comandado por uma ativista feminista derreter, perdem as mulheres. Desde já, perdemos os que nos identificamos com pautas de inclusão, de solidariedade e de justiça social.
O que para a esquerda é um tsunami devastador, para a direita é uma onda perfeita em dia de sol em Teahupoo. Ela vai surfar como se fosse Gabriel Medina ou Tatiana Weston-Webb. E se a esquerda seguir fugindo do debate de gênero sem ser capaz de atravessá-lo com as questões de raça que envolvem interesses como a privatização dos presídios ela vai ser engolida como ainda não foi até aqui. Hora de adquirir letramento e expandir a consciência. Um momento sensível e delicado que exige nossa atenção e gentileza. Que possamos sair disso melhores e maiores.
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Um dia depois de Silvio Almeida ter sido esquartejado em praça pública antes das provas, milhares de pessoas foram à Paulista para cobrar a anistia a condenados com provas. Também querem, como é sabido, o impeachment de Alexandre de Moraes, ministro-relator do Supremo que conduziu os processos. Dada a temporalidade dos eventos e o "timing" do "Me Too Brasil", o massacre de Almeida serviu de esquenta para o ato convocado pela extrema-direita fascistoide. E, segundo se reporta, assim as coisas se deram nas redes. O resultado não foi lá essas coisas para a fascistada. Mas isso, em particular, é matéria para outro texto.
Ou bem a gente começa a pensar a respeito de certas práticas, ou bem se cria um novo tribunal no Brasil, composto por membros dessa ONG, que poderia ser batizado de STES: Supremo Tribunal de Execução Sumária. Há uma algaravia condenatória segundo a qual não há alternativa ao aplauso a uma cabeça no poste (a de Almeida) ou à condescendência com o assédio
Reinaldo Azevedo
sexta-feira, 6 de setembro de 2024
Silvio Almeida e as acusações de assédio....Dossiê investigativo com base no noticiário. Atualizado de acordo com as novidades publicadas,
ASSÉDIO SEXUAL E PODER DE ESTADO
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