sábado, 19 de outubro de 2024

A cruz e a espada - Um estudo mapeia a influência de católicos reacionários e empresários ultraliberais na ascensão da extrema-direita

POR ANDRÉ BARROCAL

17.10.2024 19H38... Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/a-cruz-e-a-espada/


Grand Rapids é uma cidade de 195 mil almas no nordeste dos  Estados Unidos. Em 1990, um padre católico nova-iorquino  de 39 anos transferido para a paróquia local criou um instituto que misturava fé e economia de mercado. Robert Sirico batizou  projeto com o sobrenome de um historiador inglês do século XIX, John Acton, para quem a livre iniciativa e a moral religiosa alimentam uma à outra. O Instituto Acton realiza um jantar anual desde a fundação, e o próximo será em 30 de outubro, em um hotel no condado. O ingresso mais caro, com direito a uma mesa para dez participantes e dois lugares em um coquetel reservado com a estrela da noite, custa o equivalente a 42 mil reais. A estrela será um historiador, William Inboden, integrante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca no governo George W. Bush, o republicano que levou os EUA, com falsos argumentos, às guerras no Iraque e no Afeganistão.

No site, o instituto descreve-se como um think tank, grupo de reflexão em tradução literal. A Brasil Paralelo também. Há alguns anos, a produtora gaúcha de vídeos especializada em recontar a história com fake news frequenta um ranking anual da revista Forbes dos think tanks pró-mercado mais influentes nas redes sociais. Um de seus donos, Lucas Ferrugem, é uma espécie de professor do ramo universitário da Acton, cujo diretor internacional gravou, em 2019, seis aulas para um “curso” da produtora. Trata-se de Alejandro Chafuen, de 70 anos, católico argentino ligado à Opus Dei e fã da ditadura militar vigente em seu país de 1976 a 1983. Não por coincidência, a “Brasil Paralelo” exalta o regime fardado brasileiro de 1964 a 1985.

 A  Acton é um think tank religioso. A Atlas congrega a turma que quer destruir o Estado

Em setembro, o Observatório da Comunicação Religiosa, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, acusou a tevê católica Canção Nova de propagar conteúdo da Brasil Paralelo. Em um comunicado público, disse que “a empresa Brasil Paralelo notoriamente se alinha com o pensamento de extrema-direita; divulga teorias conspiratórias que já foram contestadas, dentre outros, pela Associação Nacional de História; e divulga, reiteradamente, notícias falsas identificadas e denunciadas por agências de checagem idôneas e pelo próprio TSE (Tribunal Superior Eleitoral).” A parceria, prossegue o texto, traz “graves riscos” ao alinhamento da CNBB ao papa Francisco. Para um padre que acompanha de perto a confusão, a Brasil Paralelo difunde “fundamentalismo religioso intolerante” a favor da “extrema-direita” e de “ideias econômicas e políticas que interessam a poucos”.

A Acton e a Brasil Paralelo integram uma rede global organizada para disseminar ideias extremistas destrinchadas em um extenso levantamento ao qual Carta Capital teve acesso com exclusividade. Dois pesquisadores brasileiros que encabeçaram o estudo e preferem não ser identificados, por medo de retaliação, constataram: os radicais se articulam internacionalmente (no Ocidente, mais especificamente) em torno de duas grandes redes de think tanks. Uma delas, de caráter religioso, tem a Acton no centro. A outra, de viés econômico ultraliberal, é liderada pela Atlas Network, também sediada nos EUA. Ambas buscam promover ideias e influenciar a opinião pública a favor de expoentes da extrema- direita. Os maiores financiadores são bilionários “libertários”, digamos assim, com forte discurso contra o Estado e os direitos sociais. É a realização do sonho do economista austríaco Friedrich Hayek, morto em 1992 aos 92 anos.

 Para enfrentar as ideais socialistas e pró-Estado, acreditava Hayek, era preciso conquistar corações e mentes por meio de think tanks. Ou seja, recrutar porta-vozes em universidades, promover eventos, produzir estudos e pesquisas. O “comitê central” do ultraliberalismo mundial é um filhote da cruzada de Hayek, a Sociedade Monte Pèlerin, nascida em 1947, na Suíça. Um consórcio internacional de jornalistas, o DeSmog, conseguiu identificar 1,9 milhão de dólares em doações à Mont Pèlerin, hoje sediada nos EUA. Entre os financiadores estão o bilionário norte-americano Charles G. Koch e a Donors Trust, fundo de investimento que tem entre seus dirigentes Alan Mauren, que deu apoio a Sirico para a criação da Acton e atualmente é presidente do instituto.

Embora esteja a serviço dos interesses do 1%, defensores do Estado mínimo, a Acton decidiu, em 2018, realizar um rebranding no discurso liberal e mostrar empatia com os pobres, em um esforço global à base de linguagem de cinema, inclusive com o apoio de gente de Hollywood. A “Brasil Paralelo” é isso.

Hayek queria conquistar corações e mentes. Koch paga a conta – 

 A Mont Pèlerin, como a Acton, promove encontros periódicos. Em outubro de 2025, fará um evento especial no México. Nome de uma das palestras: “A disseminação de ideias liberais clássicas através de criações culturais”. É um exemplo do tipo de influência, sutil, almejada pelos think tanks. A atual presidente da sociedade é uma economista estadunidense de 82 anos, Deirdre Nansen McCloskey, colunista da Folha de S.Paulo, outro exemplo de “intervenção” na opinião pública. Em março do próximo ano, a Mont Pèlerin promoverá, também no México, um encontro de caráter regional, com o tema “Os novos caminhos para a servidão: reconstruindo a base da prosperidade e da liberdade nas Américas”. Dois brasileiros serão palestrantes: Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, e Ricardo Gomes, vice-prefeito de Porto Alegre. Gomes tem laços com os donos da Brasil Paralelo, de vez em quando usa o boné da produtora para divulgá-la. O principal discurso caberá ao presidente da Argentina, Javier Milei.

Conterrâneo de Milei, Chafuen traduz a mistura das duas redes transnacionais (a econômica e a religiosa) que dão fôlego à extrema-direita. O deputado Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente no governo Bolsonaro, lhe é próximo. A senadora Damares Alves, ex-ministra da Família, viajou aos EUA em 2019 e foi ciceroneada pelo argentino. Antes de entrar na Acton, Chafuen tinha sido presidente da Atlas por 26 anos, de 1991 a 2017. O instituto surgiu, em 1981, por obra de um britânico veterano da Segunda Guerra Mundial, Anthony Fisher. Sua missão, descreve o site da fundação, é trabalhar pelos “princípios da liberdade individual, dos direitos de propriedade, do governo limitado e do livre- mercado”. E afirma conectar 500 organizações pelo globo.

 Os pesquisadores identificaram 15 organizações brasileiras integradas à rede Atlas. Uma é o Instituto de Estudos Empresariais, criado e mantido em Porto Alegre com financiamento dos empresários Jorge Gerdau, gaúcho, e Winstom Ling, de origem chinesa, mas com negócios no Rio Grande do Sul. O instituto promove há anos o Fórum da Liberdade. O deputado federal Marcel van Hattem é produto desse ambiente. Sirico, da Acton, esteve na edição de 2023. Outra entidade vinculada é a EPL, Estudantes Pela Liberdade. O deputado Kim Kataguiri frequentou a entidade, responsável por parir o Movimento Brasil Livre. O EPL é a versão brasileira do grupo estadunidense Students For Liberty.

Segundo o DeSmog, o Students For Liberty recebeu 460 mil dólares em doações da Atlas. Que também doou para a Acton (30 mil dólares).

Desde a sua fundação, conforme a DeSmog, a Acton recebeu ao menos 48 milhões de dólares em doações. Desse total, 10 milhões saíram dos cofres do fundo Donors, 1 milhão de Koch e 325 mil da petroleira Exxon-Mobil. Em 2016, um senador norte-americano do Partido Democrata, Sheldon Whitehouse, denunciou uma “rede de negação”, financiada com recursos do petróleo, que combateria na opinião pública a ideia de aquecimento global. Whitehouse incluiu a Acton na teia negacionista.

O papa Francisco, de 87 anos, costuma apontar os riscos à vida das mudanças climáticas, uma das razões para ser sabotado pela Acton. Em um vídeo de 30 de agosto, Bergoglio disse que as mudanças climáticas exigem ações econômicas, sociais e políticas, não só ambientais. É uma visão que enxerga a Igreja Católica como força terrena e alinhada à contemporaneidade, não só espiritual e atemporal. A Acton e seus parceiros pensam o contrário. Em 2014, o instituto havia patrocinado uma reunião conspiratória contra o papa em Roma, batizada de “Fé, Estado e Economia: Perspectivas do Oriente e do Ocidente”. O principal conferencista era um expoente da Opus Dei, Martin Rhonheimer, acadêmico suíço de 74 anos. Seu discurso centrou-se nas raízes históricas do livre-mercado na civilização cristã e os perigos de os cristãos não entenderem isso.

Em 2020, a Acton patrocinou outro evento do tipo, dessa vez na cidade de Sintra, em Portugal, com 110 bispos e três cardeais. Tudo secreto, conforme um blog português, o Sete Margens. A Acton negou-se a dar informações ao blog. Os sacerdotes visitaram Fátima, santuário católico. Na cidade, reza a lenda, alimentada durante a ditadura salazarista, três pastorzinhos relataram, em 1917, visões místicas com a Virgem Maria, que lhes teria confiado três segredos. Em 2017, Olavo de Carvalho, guru místico e filosófico do bolsonarismo, disse tratar-se do maior acontecimento do século XX e o segundo mais importante da História (o primeiro seria o nascimento de Jesus). O “milagre de Fátima” é um amálgama dos ultracatólicos, segundo pesquisadores da extrema-direita.

 Portugal sedia o maior evento da Acton na Europa, o Fórum Político de Estoril. A capital, Lisboa, tem uma paróquia que é ponto de encontro do direitismo radical, São Nicolau. O padre, Mario Rui Pedras, é amigo e mentor espiritual de André Ventura, deputado e líder do Chega, o partido da extrema-direita portuguesa. Celebrou o casamento de Ventura, por exemplo. Em março de 2023, Pedras foi afastado da paróquia pela chefia lisboeta por suspeitas de abuso sexual. Foi inocentado e voltou em 2024. Preside ainda uma associação de empresários católicos, a Acege. A entidade foi fundada no passado com outro nome, Ucidt, por um patrício de Pedras, João Evangelista, morto em 2017. Ao longo da vida, Evangelista teve contato em um convento com uma das crianças que diziam ter visto a Virgem Maria, irmã Lúcia, beatificada pelo papa em 2023. Coube a ele traduzir para o português, na década de 1980, um livro intitulado O Espírito do Capitalismo Democrático, um esforço para desobrigar a Igreja de acolher os pobres e os deserdados.

A paróquia de São Nicolau abriga de vez em quando homilias de um brasileiro fã de Bolsonaro, das armas e de Olavo de Carvalho. O padre Paulo Ricardo, de 56 anos, atua em Cuiabá. Foi o tutor de Allan dos Santos, ex-seminarista que se tornou blogueiro, defendeu o golpe bolsonarista e esconde-se da Justiça brasileira nos Estados Unidos. O Terça Livre, canal de Santos no YouTube, tinha um colaborador português, José Carlos Sepúlveda, antigo secretário pessoal de Dom Bertrand de Orleans e Bragança, francês que se considera herdeiro do trono brasileiro e espécie de líder da TFP na Europa.

Católicos estiveram envolvidos tanto na invasão do Congresso dos EUA em 2021 quanto na maquinação do golpe no Brasil

A Tradição, Família e Propriedade foi criada em 1960 pelo brasileiro Plinio Corrêa de Oliveira, morto em 1995 aos 86 anos, descendente de senhores de engenho de Pernambuco e bandeirantes paulistas. Foi tutor de D. Bertrand, tio do deputado-príncipe e bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança. A organização internacionalizou-se a partir dos anos 1980 graças a um colaborador de Plinio, Caio Xavier da Silveira, fundador de duas organizações ultracatólicas na Polônia, a Piotr Skarga e Ordo Iuris. “Com origem na América Latina, a TFP é hoje um ator europeu, com seus integrantes polacos a servir como o novo centro de gravidade desse movimento extremista”, diz um relatório de 2021 do Fórum

 Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos. A embaixadora da TFP multinacional é uma brasileira, Ângela Gandra, filha do advogado Ives Gandra Martins, que chegou a ensaiar uma tese para justificar um eventual golpe de Bolsonaro após as eleições de 2022. Segundo o documento europeu, denominado “A ponta do iceberg”, causas fundamentalistas (antiaborto, contra igualdade de gênero) receberam 707 milhões de dólares na Europa entre 2009 e 2018. A rede TFP foi a segunda maior doadora: 113 milhões.

Em sexto lugar na lista, estava uma organização espanhola, a CitizenGo (seu nome original era HazteOir). Por trás da entidade, aparece um advogado e ciberativista de 51 anos, Ignacio Arusaga. Segundo documentos vazados pelo WikiLeaks em 2021, a entidade de Arusaga treinou o padre Paulo Ricardo, fenômeno de mídia, com 2,2 milhões de seguidores nas redes sociais e 1,9 milhão no YouTube. Outro clérigo brasileiro que bebeu na mesma fonte é José Eduardo de Oliveira e Silva, de São Paulo, um dos alvos da Polícia Federal em uma operação de fevereiro de 2024 que investiga a tentativa de golpe no País. O padre integraria o núcleo jurídico dos golpistas, conforme a PF. Teria participado de uma reunião com Bolsonaro em novembro de 2022 que debatia um decreto para anular a eleição e prender algumas autoridades, entre elas Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Na Espanha de Arusaga, nasceu o Foro de Madrid, movimento que se propõe a ser o avesso do Foro de São Paulo, aquela união de líderes latino-americanos de esquerda. Ao Foro de Madrid aderiram André Ventura, Eduardo Bolsonaro,  Georgia Meloni (Itália), José Antonio Kast (Chile) e Milei. O encontro deste ano, em setembro, deu-se em Buenos Aires. A articulação da criação do foro coube ao partido espanhol de extrema-direita Vox, por meio de sua fundação de estudos, a Disenso. Em setembro passado, Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores no governo Bolsonaro, foi contratado como assessor internacional da Disenso. Com Araújo à frente, o Itamaraty havia publicado, em 2020, um livro escrito por um dos ideólogos e vice-presidente do Chega, Gabriel Mithá Ribeiro, moçambicano de 59 anos deputado em Portugal. O livro (Um Século de Escombros) é um ataque à esquerda e uma ode a Bolsonaro, Olavo de Carvalho e Donald Trump.

Trump pode voltar à Casa Branca na eleição em 5 de novembro. Duas semanas após o pleito, a Atlas promoverá seu encontro anual, em Nova York. O futuro do governo Milei será um dos assuntos. Outro será o resultado da disputa pela Casa Branca “e o que isso significa para os think tanks nos EUA”, resume o site da entidade. Compreensível, a preocupação. Um livro de 2012 escrito por um historiador norte-americano, Daniel Stedman Jones, avalia de forma crítica que os think tanks do livre-mercado são “Os Mestres do Universo” (este é o nome da obra).

Quando Trump tentou  na marra no poder, com o apoio de partidários fanáticos que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, um dos grupos presentes nas ruas de Washington desde a véspera era de radicais cristãos, à frente da “Marcha Jericó”, referência à história bíblica da tomada da cidade por israelitas. O republicano tem aliados radicais na Igreja Católica dos EUA. Um deles é o cardeal Raymond Burke, ex-sócio de Steve Bannon em um empreendimento religioso que não vingou na Itália. O outro é o padre Joseph Strickland. No fim de 2023, Burke foi expulso pelo papa de uma residência que ocupava no Vaticano e teve o salário cortado, fato sem precedentes no catolicismo. Na mesma  época, Strickland foi retirado por Francisco de uma diocese no estado do Texas. Um terceiro ultraconservador católico que servia nos EUA foi expulso em julho de 2024, o italiano Carlo Maria Viganò. Os três fazem oposição visceral ao pontífice.

Um historiador e cientista político conterrâneo de Trump, Mark Lilla, de 68 anos, publicou em 2018 o livro A Mente Naufragada: Sobre o Espírito Reacionário. De acordo com Lilla, os reacionários de direita são tão radicais quanto os revolucionários de esquerda. Mas, enquanto estes têm como utopia um futuro novo a ser construído, os reacionários têm como horizonte um passado idealizado.

As trevas medievais, em suma. •

Publicado na edição n° 1333 de Carta Capital, em 23 de outubio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de Carta Capital sob o título ‘A ciuz e a espada’


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