sexta-feira, 19 de julho de 2024

Adeus, Lei de Licitações. Olá, Marco Regulatório do Fomento à Cultura!

 Cecilia Rabêlo (*)

11 de julho de 2024, 15h19

Recentemente foi publicado o Marco Regulatório do Fomento à Cultura do Brasil, a Lei nº 14.903/2024, e, pessoalmente, é uma satisfação imensa ver esse projeto de lei, no qual tive a oportunidade de colaborar, se tornar realidade. Há tempos venho falando [1] acerca da necessidade de uma norma geral sobre fomento à cultura, bem como dos prejuízos que a sua ausência causa no setor e na gestão pública de cultura.

José Cruz/Agência Brasil

Neste artigo, citado na justificação do projeto de lei, chamei atenção para o fato de que “a aplicação de instrumentos jurídicos, mecanismos de repasse e normas inadequadas para o fomento ao setor artístico e cultural é, a meu ver e ao lado da escassez de recursos, o maior problema da gestão pública de cultura em nosso país” [2].

Escassez de recursos já não é uma questão, ao menos por agora. Lei Aldir Blanc, Lei Paulo Gustavo (LPG) e os cinco anos de Política Nacional Aldir Blanc mudaram (e mudarão) o cenário do fomento à cultura no país, com a injeção de mais de R$ 21 bilhões no setor artístico e cultural, bem como na reestruturação da gestão pública de cultura.

Direito Administrativo do fomento à cultura

Temos recursos, mas como executá-los? Faltava o operacional, o “como fazer”. Para tentar resolver essa falta, foi criado o Decreto nº 11.453/2023, com regras muito parecidas com as dispostas na lei do Marco Regulatório do Fomento recém aprovada. O decreto, não obstante os questionamentos pertinentes acerca de sua regularidade jurídica, serviu ao que se propôs, dando o mínimo de segurança jurídica ao gestor na execução da LPG e, agora, da Pnab.

Mas era necessário ir além, consolidar as regras do fomento em uma base legal. Era preciso institucionalizar, tornar oficial o denominado “Regime Próprio do Fomento à Cultura”, com regras, instrumentos e procedimentos específicos adequados à realidade do setor artístico e cultural. E é exatamente isso que a Lei nº 14.903/2024 visa ser, um verdadeiro Direito Administrativo do Fomento à Cultura.

Fomento não é licitação

Logo em seu artigo primeiro, a norma declara o seu fundamento de existência no artigo 24, IX da Constituição, qual seja, na competência legislativa concorrente sobre cultura. Isso significa dizer que a Lei nº 14.903/2024 tem caráter de norma geral, já que, criada pela União, tem por isso o condão de estabelecer as diretrizes do fomento à cultura para todo o país. O próprio artigo 1º ressalta esse ponto, estabelecendo expressamente que a norma é válida tanto para União quanto para estados, Distrito Federal e para os municípios.

E quais são essas diretrizes? Bom, a mais importante delas é o afastamento total da Lei nº 14.133/2021, a Lei de Licitações, na operacionalização do fomento à cultura no país. De forma precisa e corajosa, a lei deixa claro o óbvio: o fomento não é licitação e, por isso, não pode ser regulamentado pela referida legislação, absolutamente inadequada à atividade de fomento estatal.

Assim, União, estados, DF e municípios estão proibidos de utilizar as regras da Lei nº 14.133/2021 para realizar os seus editais de cultura. O que usar, então? Aqui, a norma, a meu ver, disse menos do que poderia. Em seu artigo 2º, §1º, a lei afirma que a União deve se utilizar do Regime Próprio de Fomento à Cultura estabelecido no Capítulo II da norma, mas que, para Estados, DF e Municípios, a aplicação deste regime é opcional, podendo estes criarem “regimes jurídicos próprios no âmbito de sua autonomia”.

Ganha-ganha

Apesar de não impor o Regime Próprio a todos os entes, o que, na minha opinião, seria possível, tendo em vista a sua natureza de norma geral, a lei dá as orientações sobre como esses regimes próprios a serem criados por estados, DF e Municípios deverão ser. De acordo com a norma, as regras desse regime devem visar alcançar as metas dos Planos de Cultura, bem como devem respeitar a eficiência administrativa e a razoável duração do processo (artigo 2º, §2º, II). Além de, é claro, não repetir os procedimentos da lei de licitações, de aplicação vedada ao fomento cultural.

Na prática, a tendência é que os entes federados utilizem, ao menos como inspiração para criação de seus regimes locais, o Regime Próprio de Fomento à Cultura estabelecido pela Lei nº 14.903/2024 para realizar o fomento ao setor artístico e cultural, visto que ele é, sem dúvida, o conjunto de regras e procedimentos mais adequado existente no país, gerando uma maior segurança jurídica tanto para o gestor quanto para os agentes culturais.

Ganha a política pública de cultura, a gestão pública de cultura e a sociedade civil. Seja bem-vindo Marco Regulatório do Fomento à Cultura do Brasil! Que traga a segurança jurídica necessária para um fomento público eficiente, democrático e efetivador dos direitos culturais.

Notas:

[1] Disponível em:

https://www.ibdcult.org/post/marco-regulat%C3%B3rio-do-fomento-%C3%A0-cultura-um-passo-crucial-para-os-direitos-culturais

https://www.ibdcult.org/post/a-desburocratiza%C3%A7%C3%A3o-das-pol%C3%ADticas-culturais-como-instrumento-democr%C3%A1tico

https://www.ibdcult.org/post/lei-paulo-gustavo-tentativa-de-simplifica%C3%A7%C3%A3o-para-um-fomento-eficiente

https://www.ibdcult.org/post/legisla%C3%A7%C3%A3o-de-fomento-%C3%A0-cultura-e-os-desafios-da-vida-pr%C3%A1tica

https://www.ibdcult.org/post/a-necess%C3%A1ria-autonomia-do-fomento-p%C3%BAblico-%C3%A0-cultura

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/rabelo-fomento-cultura-desafios-praticos-quando-norma-nao-alcanca-realidade/

(*) é advogada, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jul-11/adeus-lei-de-licitacoes-ola-marco-regulatorio-do-fomento-a-cultura/

Marco Regulatório do Fomento à Cultura irá democratizar o acesso a recursos

Senadora Teresa Leitão, presidente da Fundação de Cultura do Recife Marcelo Canuto e o produtor cultural Du Lopes comentam sobre a lei 14.903/2024

Carnaval da Casa da Cultura em 2024 - SECULT-PE/DIVULGAÇÃO
Emannuel Bento

O Marco Regulatório do Fomento à Cultura, sancionado em projeto de lei pelo presidente Lula (PT) em 27 de junho, vem despertando discussões e comemorações no setor cultural. A Lei nº 14.903/2024 torna oficial o denominado "Regime Próprio do Fomento à Cultura", com regras, instrumentos e procedimentos específicos adequados à realidade do setor artístico e cultural.

O objetivo da legislação é trazer mais eficiência para os gestores públicos, além de democratizar o acesso às políticas culturais, especialmente para agentes das periferias e das culturas tradicionais, negras e indígenas. Os defensores da iniciativa têm destacado que o Marco corrige históricas deficiências no setor cultural, permitindo melhor administração, fiscalização e regulação.

A senadora Teresa Leitão (PT), relatora do projeto; o presidente da Fundação de Cultura do Recife Marcelo Canuto e o produtor cultural Du Lopes comentaram a respeito do marco em entrevista à Rádio Jornal na manhã desta segunda-feira (15).

Relatora rebate críticas

Críticos têm apontado para o fato de que o Marco acaba com o modelo de licitação. De fato, a lei propõe um afastamento da Lei de Licitações, na operacionalização do fomento à cultura no país ao argumentar que "fomento não é licitação e, por isso, não pode ser regulamentado pela referida legislação".

"A lei determina claramente quais são os instrumentos a serem utilizados para o alcance desse recurso. O que ela consegue fazer é desburocratizar o processo de acesso sem colidir com a lei geral de licitações. Ela cria um processo próprio para atingir os produtores menores, mas que não são menos importantes em vista de estrutura", diz Teresa Leitão.

"São produtores que não têm alcance a um escritório de contabilidade ou jurídico. A lei fixa por lei evidentemente uma forma diferenciada que vai promover o acesso dos agentes culturais a recursos, sem precisar terceirizar a produção desses recursos ao seu alcance."

Especificidade

Marcelo Canuto, presidente da Fundação de Cultura do Recife, ressaltou que essa diferenciação da Lei de Licitação é fundamental. "Não era justo que a cultura ficasse no mesmo patamar da construção civil", disse. "A mesma lei que regulava a concorrência de uma obra era a regulava a área da cultura, embora ela tenha uma especificidade própria. Cada artista tem uma criação diferenciada e só ele tem esse valor."

Canuto também abordou o aspecto da democratização. "Muitas vezes, o artista é humilde do ponto de vista de formação, muitos são semianalfabetos, que aprenderam por herança de pais. Não estamos falando só de Pernambuco, mas do Amazonas, de Roraima ou de Goiás. Esses artistas prestam conta, porém visam muito mais a entrega do trabalho. Essa regulação serve para todos aqueles que são menos organizados, mas não menos valiosos ou criativos."

Também sobre a democratização, Teresa Leitão destacou o caráter formativo: "Os editais costumam ter aspectos punitivos, mas, desta vez, incluímos também um aspecto educativo. Ensinar como fazer. Isso é muito positivo, pois lidamos com pessoas de boa fé, honestas, com erros formais por falta de esclarecimento."

Independente

O produtor cultural Du Lopes, responsável pelo Rock na Calçada, comentou que o Marco irá beneficiar os artistas independentes.

"Temos que acreditar nessas políticas públicas, sobretudo na desburocratização, como algo muito sério, porque a administração pública é algo realmente sério. No imaginário de muita gente, o dinheiro para a cultura é uma farra, mas não. O Marco é algo que atingirá as margens, as comunidades ribeirinhas, pessoas de periferia, onde de fato nasce a cultura da comunidade."

"Sempre que tem uma crise econômica, o primeiro setor afetado é o cultural. São pilares para a construção de uma sociedade educada, com conhecimento, quando falamos em ter esse acesso, é um promotor, fazedor de cultura, que possa chegar dentro dessas produções. Precisamos estar aptos a como funciona".

Preservação

"Nossos clubes de frevo, caboclinhos e maracatus estão se apagando pela incapacidade de manutenção, do pagamento da conta de luz ou da possibilidade de ter um computador. A lei é um ponto positivo nesse sentido, pois abre oportunidade para que as agremiações se mantenham", destacou Marcelo Canuto.

"Isso tem a ver com a manutenção da memória cultural do Brasil, de Pernambuco, do Recife. Os nossos patrimônios imateriais estão se apagando pois o cidadão responsável é neto de uma entidade e hoje precisa trabalhar fora para pagar as suas contas pessoais. A regulação permite a sobrevivência, dando liberdade e custeio."

Histórico do projeto

O Projeto de Lei do Marco Regulatório do Fomento à Cultura foi criado na Câmara dos Deputados, em 2021, pela deputada Áurea Carolina. No Senado, passou pela Comissão de Educação e Cultura, sob relatoria da senadora Teresa Leitão, sendo aprovado por unanimidade em 21 de maio de 2024 e em votação simbólica no Plenário.

O Marco da Cultura não elimina leis já existentes, como a Lei Rouanet, a Lei Cultura Viva, a Lei do Audiovisual e as Leis de Fomento dos estados e municípios. No entanto, a modernização dos procedimentos pode inspirar a revisão dessas leis, visando maior efetividade no fomento cultural.

Cultura em destaque: senadora Teresa Leitão celebra novo marco regulatório de fomento ao setor



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