domingo, 11 de fevereiro de 2024

O CENTRO DOM BOSCO E SUA NOVA CRUZADA Por Romero Venâncio (UFS) [

Serão dois textos sobre a nova campanha do Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro, a saber, "contra a comunhão na mão". Seria uma coisa completamente ridícula e anacrônica a tal campanha em pleno Século XXI se não fosse um dado conjuntural interno ao catolicismo romano: a retomada do tradicionalismo como única alternativa ao modernismo. Só que não se trata apenas de discursos de cunho tradicionalistas e conservadores, mas através do uso massivo das redes digitais, esses discursos se tornam práxis. Incentivam à ação. Tornam-se verdadeiras "cruzadas" sem o mundo medieval europeu como chão histórico. Há toda uma tentativa através de cursos em plataformas digitais, aparições de nossa senhora e suas "previsões", retomada de livros e documentos dos Papas do Século XIX até Pio XII e um conjunto bem articulado de teorias da conspiração sobre uma "perseguição aos cristãos" que ajuda a animar os fieis da extrema direita católica nas redes digitais, nas paróquias, dioceses.

A nossa pesquisa sobre a "Extrema direita católica nas redes digitais" tem um demarcador fundamental: o ano de 2013. No Brasil, a partir da efervescência daquele ano que culminou com as "jornadas de junho" e todo um desdobramento à direita que aquele fenômeno de rua trouxe. Aconteceu durante e após as jornadas, uma reorganização das direitas no Brasil. Dois livros nos ajudaram muito nos estudos do ano de 2013 e seus desdobramentos na política brasileira e ainda seu impacto dentro do catolicismo romano brasileiro. O primeiro, é da socióloga Angela  Alonso, intitulado: "13. A política de rua de Lula a Dilma" (editora Companhia das Letras) e o segundo, uma coletânea organizada por Esther Solano e Camila Rocha: "As direitas nas redes e nas ruas. A crise da política no Brasil" (editora Expressão Popular). Os textos de pesquisadores/pesquisadoras que focaram no anos de 2013 a partir de dados e com capacidade analítica para além dos comentários das tradicionais mídias, foram de fundamental importância.

A análise política e social do anos de 2013 e os atos de rua, tiveram um impacto dentro do cristianismo brasileiro. Católico e protestante. O nosso recorte sempre foi o universo religioso católico romano. Já vínhamos estudando o pensamento católico brasileiro e suas bases conservadoras desde a fundação nos anos 20 do Centro Dom Vital e as orientações ideológicas do Cardeal Leme e o leigo Jackson de Figueiredo (sob a ótica do historiador Francisco Iglesias). Desde 2018, estávamos as voltas com o inicio do pensamento conservador católico no Brasil no Século XX. Tomamos como referência os estudos de Riolando Azzi (a neocristandade como projeto restaurador), José Oscar Beozzo (o contexto do Vaticano II no Brasil), Antonio Carlos Villaça (o pensamento católico brasileiro e sua formação histórica) e Gizele Zanotto (sobre a TFP e Plínio Corrêa de oliveira). Calibrado com esses pesquisadores, ficamos trabalhando as bases de um pensamento conservador/reacionário dentro do catolicismo brasileiro. Os acontecimentos de 2013, mudou muito o perfil do conservadorismo católico brasileiro. A primeira e básica constatação na pesquisa em andamento.

Entra um novo projeto de pesquisa que é sobre a ação de uma extrema direita católica (ainda imprecisa sociologicamente) nas redes digitais. A influência de Olavo de carvalho será determinante. Influência direta (a presença de católicos de direita nos cursos de formação do Olavo) e indireta (aproveitando-se do método de Olavo nas redes digitais). Uma base de apoio intelectual foi a tradução no Brasil do livro do Benjamin R. Teitelbaum: "Guerra pela eternidade: retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista" (editora da UNICAMP). Esse livro, fechou um ciclo que andava buscando para entender a lógica dessa extrema direita católica no Brasil pós-2013. Um "novo tradicionalismo" entra em cena a partir do crescimento da rede telefonia celular no Brasil. Esta extrema direita católica chega primeiro nas redes digitais (sempre evito usar o termo "rede social" porque de social, elas têm muito pouco ou nada).

Um outro acontecimento importante no catolicismo romano em 2013 é o inicio do Papado de Francisco. A eleição de Jorge Mario Bergoglio à condição de Papa Francisco em 13 de março de 2013. Prelado de modos simples desde o seu trabalho pastoral na Argentina, carregava a esperança de renovação da Igreja após 34 anos de gestão da Igreja por João Paulo II e Bento XVI. A eleição do cardeal Bergoglio veio após uma renúncia papal (coisa rara na igreja. Já que o cargo de Papa é vitalício). Ou seja, veio de uma profunda (e obscura) crise interna na Igreja Católica. Os primeiros gestos do Papa e seus primeiros escritos, apontavam para mudanças profundas que poderiam dividir ainda mais o catolicismo no mundo. O Papa Francisco indicava que tomaria o rumo inaugurado pelo Concílio Vaticano II. Aprofundar o Concílio tem sido o grande projeto do papado de Francisco. Vemos isto agora em 2024 de maneira nítida e incontornável.

O combate cerrado ao Concílio Vaticano II e seus desdobramentos na Igreja, passou a ser o objetivo dos grupos da extrema direita católica. Fizeram toda uma plataforma de formação na redes digitais com esse objetivo paranoico. Todas as contemporâneas teorias da conspiração partem de algum ponto do Concílio Vaticano II. Acrescentamos um ponto a mais na pedagogia da extrema direita católica: o combate ao papa Francisco. Por paradoxal que pareça, pois, o Papa é símbolo de unidade da Igreja e é tratado como "Santo padre", seja quem for o Papa eleito. Virou drama nesta extrema direita católica a maneira de lidar com o Papa Francisco. Tema para uma outra pesquisa.

Nesse intervalo entre 2013-2016, nasce o Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro.  Na página que qualquer um pode ter acesso público, eles se definem da seguinte forma:

"Desde a fundação em 17 de setembro de 2016, o Centro Dom Bosco é uma associação de fiéis católicos que se reúnem para rezar, estudar e defender a fé. Nossa missão é ajudar a resgatar a bimilenar Tradição da Igreja por meio de livros, aulas e iniciativas apologéticas. Homens e mulheres na condição de leigos católicos que, unidos, buscam levar uma vida a serviço da Santa Igreja. Acreditamos que o Brasil é uma nação católica que foi adormecida pelo veneno liberal das casas maçônicas e, para contrapor o erro, seguimos os passos de nosso patrono, São João Bosco."

Tradicionalismo, integrismo e conservadorismo por todos os poros. Eles se gabam de afirmar nas redes digitais que já publicaram mais de 170 livros, quatros documentários e centenas de horas de formação tradicionalistas disponível gratuitamente no Youtube. Desde 2016, criaram problemas com o pessoal do "Porta dos fundos", com Pe. Júlio Lancellotti, Leonardo Boff, Frei Betto, Dom Vicente Ferreira, Dom Joaquim Mol... Desenvolvem cursos sobre Bíblia, teologia e política. Tudo baseado num pensamento conservador tradicionalista onde indicam livros, textos e filmes nessa linha. Pedagogicamente, sempre inventam uma "cruzada nova" a combater. Para manter os seus milhares de seguidores atentos e ocupados, inventam sempre uma narrativa para engajá-los.

A mais nova cruzada. Nasceu, segundo um dos membros fundadores do Centro, o Álvaro Mendes, de um fato que foi "rejeição na fila da comunhão" - rejeição de receber a "Hóstia na boca e ajoelhado". Na verdade, dois ocorridos  segundo o Mendes: Um movimento de não mais ter como cultura a "entrega da comunhão na boca" e uma rejeição vivida pelo próprio Álvaro Mendes numa das missas em que ele frequenta. O centro Dom Bosco fez todo um barulho nas redes digitais quando o bispo auxiliar de Belo Horizonte Dom Joaquim Mol "negou" a comunhão na boca para uma adolescente em uma paróquia local. O fato ocorreu na capital mineira, na paróquia de Santa Maria Estrela da Manhã em agosto de 2023. Como tem um vídeo gravado num celular pela mãe da menina, as redes sociais da extrema direita católica virou uma febre contra o bispo. Ele foi massacrado nestas redes. O Centro Dom Bosco liderou o massacre. Vários depoimentos e supostas "análises teológicas" do ocorrido. Pronto: nascia mais uma cruzada do Centro Dom Bosco como tantas outras desde 2016.

O filme. Após o massacre do Bispo Mol nas redes digitais, o Álvaro Mendes e o Centro Dom Bosco tiveram a ideia de fazer um documentário sobre esta situação e na leitura deles, óbvio. O filme tem um ponto de vista definido: o do Centro. O filme foi lançado em forma privada o ano passado e tornado público no Youtube este mês de fevereiro de 2024. Tem como titulo: "Comunhão na mão: o triunfo da desobediência" (Direção de Luis Piccinali e argumento de Álvaro Mendes e produção original do Centro Dom Bosco).

 Vamos analisar o filme e seu contexto o próximo artigo, intitulado: A NOVA CRUZADA DO CENTRO DOM BOSCO II - A MISSÃO. Onde demonstraremos que o filme é um grande equívoco: teológico, cinematográfico e pastoral. Continua...


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