quinta-feira, 21 de março de 2024

#1964+60 - Como liderança sindical que viveu na pele a falta de liberdade do regime ditatorial, o que leva Lula a titubear diante de tema tão relevante para a democracia no país?

 

21 Março 2024

Ter permitido que os crimes da ditadura – porque é exatamente isso que são – permanecessem no passado e assumir uma postura prospectiva não foi suficiente para evitar a bem concreta e bastante perigosa tentativa de golpe no ano passado, presidente. A cada semana o país assiste estarrecido a novas revelações da trama golpista, com o envolvimento de militares de alta patente, empresários, políticos e líderes religiosos fundamentalistas. 

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e colabora no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“Eles quiseram me deixar dependurado a noite toda no pau de arara, mas o capitão Albernaz objetou: não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”. Frei Tito de Alencar, OP

Neste ano de 2024, faz-se memória de três trágicas datas, porém nem sempre lembradas da forma que se deveriam: os 60 anos do golpe civil-militar, que trouxe muitos abusos e sofrimentos em meio às arbitrariedades impostas pela ditadura; os 55 anos do covarde assassinato do jovem assessor de Dom Hélder Câmara, o Pe. Henrique Pereira Neto (26/05/1969), sequestrado e torturado para calar a Igreja que resistia aos desmandos autoritários; e os 50 anos da morte de Frei Tito de Alencar (10/08/1974), frade dominicano torturado barbaramente até o suicídio. E enquanto se aproxima a data de 31 de março, quando há 60 anos as Forças Armadas acharam que podiam interromper o Estado democrático de direito, o país assiste atônito a uma sequência de desautorizações do presidente da República ao direito à memória.                        

Em entrevista dada ao programa “É Notícia”, da RedeTV, no dia 27 de fevereiro, aquele que foi preso político quando ainda era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em 1980, disse que o golpe “já faz parte da história” e que “não vai ficar remoendo”, mas “vai tentar tocar o país para frente”. Afinal, “os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo”, completou a principal figura de um partido político que possui entre os seus fundadores inúmeros perseguidos pelos anos de chumbo. “Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”, vaticinou o governante que venceu nas urnas um dos despudorados filhotes da ditadura.

Ao contrário de parte da grande mídia que insiste há décadas em uma visão preconceituosa e risível ao não reconhecer a aguçada inteligência do presidente, trata-se de fato inegável a sua impressionante capacidade de ler a atuar nos mais adversos cenários políticos, nacionais e internacionais. Um exemplo evidente de sua grandeza e envergadura política foi dado recentemente, quando com coragem e lucidez foi o primeiro líder mundial a denunciar o genocídio que vem sendo praticado pelo governo israelense de extrema-direita contra a população palestina, na Faixa de Gaza. Se ainda há pouco reconhecimento, certamente a história lhe dará o devido crédito.

Como liderança sindical que viveu na pele a falta de liberdade do regime ditatorial, o que o leva a titubear diante de tema tão relevante para a democracia no país? Se está verdadeiramente preocupado a envidar todos os esforços que cabem ao governo federal para que os responsáveis pela tentativa de golpe de 08/01/2023 sejam punidos, deveria rever de imediato as suas declarações e decisões sobre a não recordação do golpe de 64 pelo governo. Seria no mínimo ingênuo, e isso o experimentado político que governa o país pela terceira vez não o é, acreditar que os dois eventos estão desconectados e que aquilo que “já é história” não continua a reverberar nefastamente na realidade presente. Mas, então presidente, por quê?

É por medo de uma crise com o Alto Comando das Forças Armadas, que gere mais instabilidade no país? Ou pior, teme uma nova tentativa de golpe que dessa vez seja exitosa? Fingir que as ameaças estão sepultadas com a derrota dos golpistas do governo anterior ou calar com receio de que haja uma escalada nas tensões só pode ter um resultado, qual seja, fortalecer o sentimento antidemocrático da parcela perdedora dos oficiais que apoiaram a tentativa de sublevação e, por conseguinte, manter incólume o imaginário autoritário que grassa no país há tempos.

Frei Betto, um dos frades dominicanos que corajosamente lutou contra a tortura dos quartéis, escreveu em um de seus livros, anos depois de ter saído de um desses calabouços e de ter assessorado, por algum tempo, o primeiro mandato do petista:

“A esquerda, tão obcecada pela terra das promissões, pelo futuro messiânico, nem sempre se dá conta de que a direita funda seu poder na apropriação do passado. A direita, na contramão de Hegel, volta atrás para pisar nas pequenas flores que restaram no caminho, abrigadas sob majestosas copas de grandes árvores que lhes dão sombra. Os mortos, a religião, a tradição... eis o que a esquerda por vezes despreza e a direita apodera-se, açambarca”. [1]

São compreensíveis os seus temores, presidente, afinal o país vive tempos perigosos. Um período complexo em que é preciso defender Paulo Freire, ser contrário ao projeto Escola Sem Partido, buscar a reparação histórica e demarcar os territórios indígenas, coibir o desmatamento, lutar contra a misoginia e a LGBT-fobia. Conquistas que se pensavam já asseguradas, estiveram prestes a se perder. Sim, dá medo! Muito medo!

Mas, como dizia o profeta do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, quando perguntado se teve medo alguma vez, “o medo é natural ao ser humano, o problema é ter medo do medo” [2]. Infelizmente, os governos democráticos, desde o último general na presidência, não souberam e não quiseram enfrentar a imprescindível justiça de transição. Diferentemente dos vizinhos latino-americanos que julgaram e prenderam seus torturadores. De um modo irresponsável, e aí se encontram os sete ministros do Supremo Tribunal Federal que confirmaram a constitucionalidade da Lei da Anistia em 2010, apenas se jogou o entulho autoritário para “debaixo do tapete”.

Acontece que a imundície voltou a vazar, porque sempre esteve por aí, só se encontrava camuflada, com um verniz mais aceitável para as sensibilidades pós-Constituição de 1988. Essa mentalidade da brutal violência dos fardados perdurou todos esses anos nas forças policiais, que nunca deixaram de praticar sistematicamente a tortura, como vem denunciando há décadas a Pastoral Carcerária [3]. Chegou-se ao ponto de ter o governador de São Paulo, e ex-ministro do governo anterior, dizer que não dá a mínima às denúncias nos órgãos internacionais contra as execuções praticadas pela Polícia Militar na Baixada Santista. Até agora 48 mortes e – pasmem! – Tarcísio de Freitas “não está nem aí”!

Ter permitido que os crimes da ditadura – porque é exatamente isso que são – permanecessem no passado e assumir uma postura prospectiva não foi suficiente para evitar a bem concreta e bastante perigosa tentativa de golpe no ano passado, presidente. A cada semana o país assiste estarrecido novas revelações da trama golpista, com o envolvimento de militares de alta patente, empresários, políticos e líderes religiosos fundamentalistas.

Não passou da hora de vencer o medo e entrar para a história como o presidente que lidou com firmeza e ousadia com a herança maldita do autoritarismo civil-militaresco? “Coragem, presidente Lula!”, bradaria com sua característica profecia o cardeal dos direitos humanos, Dom Paulo Evaristo Arns. O arcebispo de São Paulo foi um colosso na luta contra a ditadura e esteve na gênese do nascimento do Partido dos Trabalhadores. Aproveite essa oportunidade histórica e dê uma lição de democracia para os saudosistas do regime de exceção.

É preciso ser implacável, segundo todo o rigor da lei, com os militares da ativa e da reserva que ameaçaram a democracia. Não são dignos das Forças Armadas e devem ser investigados, afastados e expulsos de seus quadros, conforme os seus próprios e rigorosos regulamentos. Inclusive os poderosos oficiais dos últimos níveis. Ninguém pode ser poupado, para pôr fim a essa danosa e prolongada impunidade. Uma legislação que não deixe dúvida sobre a incompatibilidade desses agentes e sobre o exercício da política deve ser providenciada com rapidez e empenho.

Os currículos das escolas militares precisam ser urgente e imediatamente revistos, para que recebam uma dose significativa de Direitos Humanos. Chamar pelo nome aquilo que de fato aconteceu no país, sem eufemismos baratos. Isto porque os atuais generais que estão no poder, senhor presidente, apesar de serem crianças na época da ditadura, sorveram e foram alimentados por uma ideologia autoritária, que continua se reproduzindo na caserna. Afinal, a formação desses servidores públicos não pode ser outra que não a estrita legalidade e obediência total à Constituição da República. Como em qualquer outra nação democrática, a Forças Armadas devem estar sempre a serviço do poder civil, sem jamais ter espaço para tentações contrárias.

Por outro lado, o direito à memória precisa ser assegurado, sem meias verdades ou narrativas fantasiosas. Ainda dá tempo de mudar de ideia, presidente Lula. Autorize que seu ministro Silvio Almeida possa trabalhar com liberdade e apoio à frente da pasta dos Direitos Humanos. As cerimônias e os discursos então planejados para marcar os 60 anos do golpe são mais do que necessários e provavelmente insuficientes para o desolador cenário que o país vive nessa seara. É absolutamente inaceitável que uma data dessas seja marcada por um ensurdecedor e acintoso silêncio por parte de um governo que se diga popular.

Outro assunto que precisa ser trazido à baila é a convocação de uma nova Comissão Nacional da Verdade, para investigar as cruéis violações dos direitos dos Povos Indígenas. Aprofundar essa parte obscura da ditadura, por meio de especialistas gabaritados e recursos suficientes, consiste em um importante passo na reconciliação com os povos originários. O senhor não disse que seria um excelente governante para os indígenas, tão massacrados historicamente?

Mais o tão prometido Museu da Memória e dos Direitos Humanos, excelente iniciativa do ministro Flávio Dino, não pode ser cancelado. Ao contrário, é imperioso fortalecer e ampliar esses espaços ao redor do continental Brasil. Seria um avanço enorme se houvesse um memorial desses nas capitais de cada Estado. Depois de tudo que passou, a atacada democracia do país necessita de tais medidas enérgicas, não acha senhor presidente?   

Como vítima direta da ditadura, o senhor sabe que não pode compactuar com todo o autoritarismo que resiste nos quartéis e nos palácios do poder em Brasília. Esquecimento, silêncio e recuos são inaceitáveis e soarão como escandalosa e imperdoável omissão de quem pode e deve fazer diferente. Ouça seu companheiro de militância: “objetividade e subjetividade são aqui faces de uma mesma moeda, a do preço que se paga para que a memória das vítimas se torne, na história da humanidade – como queria Walter Benjamin – perene e subversiva” (Frei Betto, 2009, p. 14). Não negue a sua história, nem a luta de tantos parceiros de caminhada política.

Por favor, senhor presidente, não ceda ao atraso e arbítrio de meia dúzia de generais irrelevantes que podem se melindrar com suas ações pró-Estado de Direito! Esses passarão e logo serão esquecidos pela história. Mas gaste seu capital político e prestígio pessoal para fazer a coisa certa e deixar um legado democrático às futuras gerações. Talvez, então, o "país do futuro" possa começar a desabrochar com mais liberdade, sem chantagens e tutelas outras. Pela memória de Padre Henrique Pereira Neto e Frei Tito de AlencarDitadura nunca mais!

Referências

[1] BETTO, Frei. Diário de Fernando: nos cárceres da ditatura militar brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

[2] TAVARES, Ana Helena. O problema é ter medo do medo: o que o medo da ditadura tem a dizer à democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

[3] Relatório Tortura em tempos de encarceramento em massa. Publicado em 2018. Veja aqui.

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