Uma advogada nos porões da tortura
Diários de defensora de presos
políticos durante a ditadura são publicados em livro e inspiram monólogo com
Andrea Beltrão
Em 1965, recebi um telefonema avisando-me que havia uma ordem de prisão
contra mim. Quando desliguei bateram na porta, era a polícia. Abri e disse: vou
me trocar. Sentaram-se na sala. No quarto fiz um bilhete para Dona Pepe, mãe de
Ivo Valença, coloquei-o numa garrafa, e desci pela varanda recomendando meu
filho recém-nascido. Tirei os lençóis do berço, para evitar que meu bebê
sufocasse. Fui mais uma vez conduzida para a Secretaria de Segurança Pública.
Assim, Mércia
Albuquerque narra a quarta de suas doze prisões. Elas estão listadas no final
do livro Diários 1973-74 escritos por Mércia Albuquerque Ferreira.
Nascida em Pernambuco em 1934, ela era recém-formada em direito, em 1964,
quando viu uma cena que mudou sua vida: o líder comunista Gregório Bezerra estava
sendo torturado no meio da rua, no Recife. Horrorizada, ela chegou em casa e
anunciou para o marido, Octávio, que se dedicaria à defesa de presos políticos.
Assim foi feito, e fragmentos expressivos dessa experiência foram registrados
numa escrita íntima repleta de revolta, angústia, mas também de ternura e até,
eventualmente, de humor.
As páginas de Mércia
intercalam descrições sobre o estado deprimente dos presos depois de sessões de
torturas, conversas duras com militares e policiais e, sobretudo, momentos de
atenção e carinho com mães desesperadas que batiam à sua porta, quase todos os
dias, em busca dos filhos desaparecidos. Depois de confiar, num momento de
aflição, seu recém-nascido a uma vizinha, ela tentou cuidar dos filhos de
outras famílias como se fossem seus.
Preocupações
De modo geral, Mércia
escrevia pouco sobre si mesma. Deixou um poema aqui e ali, ou momentos de
preocupação com o marido, o filho único ou com a saúde. Em 25 de novembro de
1974, relatou uma visita ao médico: “Deixou claro que só poderei engravidar se
deixar de advogar. Meu estado emocional perturba o metabolismo. É por demais
cômico, luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a
existência e ainda me privam de ter filhos”.
Os diários foram
publicados em livro pela editora Potiguariana em 2023, e pouco antes da
publicação chegaram às mãos da atriz Andrea Beltrão e da diretora Yara de
Novaes. Impactadas com o conteúdo, elas convidaram a dramaturga Silvia Gomez
para criar um monólogo a partir dos relatos de Mércia.
O resultado foi a
peça Lady Tempestade, que ficou em cartaz entre janeiro e fevereiro
deste ano no Rio de Janeiro, em temporada concorridíssima. O título vem de uma
frase em que Mércia se compara à mãe — “mulher terna e acomodada, totalmente
diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela é bonança”.
Paralelos
A saída de Silvia
Gomez para transformar os relatos em dramaturgia foi fazer uma espécie de
diário dentro do diário: uma mulher chamada A. recebe as páginas pelo correio,
de um certo R. No programa do espetáculo, Beltrão analisa: “Contar e recontar
uma história, muitas e muitas vezes, é uma maneira de impedir que o horror
aconteça de novo. O silêncio só interessa aos que deveriam ter sido julgados,
mas não foram. O silêncio é o parceiro do medo. Um diário guarda vários
segredos e um deles é o desejo secreto de ser encontrado”.
Na peça, uma frase é
recorrente: “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”. Os paralelos
com o presente e o futuro são feitos o tempo todo, inclusive com a inserção de
um áudio verídico de uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia em 2022,
na Bahia. O motivo para uma atuação tão consistente como a de Mércia não ter
ganhado notoriedade é claro para a dramaturga: “Tantos homens são reverenciados
com nome e sobrenome por seus feitos heroicos… O sistema trabalha muito bem para
certos nomes serem apagados”.
O remetente do
diário, na vida real, foi Roberto Monte, economista e diretor do Centro de
Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte, a quem foi confiado
todo o acervo de Mércia por seu viúvo Octávio, depois que ela morreu, em 2003.
Foi só em 2023 que
Monte conseguiu verba para publicar os diários em livro — pela editora
Potiguariana, criada também por ele, e que conta com outras obras sobre a
atuação do regime militar no Nordeste em seu catálogo. Demorou, mas, na opinião
dele, tudo aconteceu na hora certa. A visibilidade é inédita no momento em que
são lembrados os sessenta anos do golpe militar.
Os relatos
têm muitas críticas aos militares, mas também sobra para o partidão, o PCB
Parte do acervo, que
além do diário tem cartas e documentos jurídicos, está acessível no site www.dhnet.org.br.
A esse conjunto se somou, recentemente, um material novo, com informações sobre
pessoas defendidas por Mércia, numa espécie de memorial.
Enquanto na peça os
militares são citados de modo genérico como “gafanhotos”, alcunha que de fato
ela usava vez ou outra no diário, no livro eles aparecem com nome e sobrenome,
e há no final uma lista de torturados e de torturadores. Sobre estes últimos,
Monte observa: “Em geral, tudo nome de rua, de avenida”.
A plateia do
espetáculo se tornou, por vezes, ponto de encontro de ex-presos políticos, ou
de familiares dos que morreram. No fim de janeiro, um grupo de parentes
estendeu uma faixa na plateia cobrando do governo a reinstalação da comissão de
mortos e desaparecidos. Dora Santa Cruz foi além: levou uma foto do seu irmão
Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974. Convidada a ir ao centro
do palco por Beltrão ao fim do monólogo, ela contou a história dele, e citou
outras vítimas dos militares, com a plateia gritando “presente!” a cada nome.
Foi como um ritual.
Cortes e vazios
Os relatos de Mércia
têm muitas críticas aos militares (há diversas páginas rasuradas ou até
cortadas), mas também sobra para o PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Estou
preocupada com a mãe de Maria de Messias, sozinha com um filho excepcional, num
quitinete passando muita privação, e nenhum comunista vai lá levar ajuda. Como
os homens são iguais”, desabafa em 18 de junho de 1974.
Havia, para ela, uma
classe ainda mais abandonada: os camponeses. É o caso do relato de 15 de
setembro de 73: “Um pobre camponês, preso há dez anos, vítima da esquerda e da
direita. Dei atenção a ele mais de uma hora, afinal alguém precisa ouvi-lo;
deixei-o despejar toda a amargura que o machuca há muito tempo”.
Também há elogios a
algumas figuras públicas, como Dom Hélder (“fiquei comovida com a ternura com
que fala dos problemas do povo”) e Sobral Pinto (“Li uma carta corajosa feita
pelo pai das liberdades, Sobral Pinto, ao Ministro da Justiça, que poderá
trazer consequências ao velho jurista”). Mas sua atenção primordial é a mães e
pais anônimos, de Pernambuco e de outros estados nordestinos.
Mércia se
arriscou ao denunciar más condições nas prisões e até partir para o embate
direto
Dizia que jamais
mentia a uma mãe, preferia até ficar em silêncio. Mesmo em momentos difíceis,
como o relatado em 10 de maio de 1973: “Nem bem o dia amanheceu, Dona Rosália
chorando me perguntava pelo filho. Já não me animei e falei-lhe dos meus
temores. (…) Então a velhinha me deu uma lição: ‘Doutora, a senhora precisa se
controlar para ajudar a nós’. Fez-me prometer que acharia o filho, vivo ou
morto, o que cumpri”.
Em 29 de novembro
daquele ano, descreveu poeticamente outro diálogo, repleto de vazios:
Recebi o pai de Ramires, aflito com a notícia da morte do filho. (…) O velho me
falou: ‘Sinto como se o mundo caísse; estou partido, mas se ele voltasse a
viver, e quisesse trilhar o mesmo caminho, não o impediria’. O Sr. Francisco
estava pálido, eu comovida; era a dor muda, sem blasfêmias nem lágrimas, era a
amargura que tira a doçura da vida e a tranquilidade dos lares. Apertei-lhe a
mão e chorei; senti que o silêncio era mais prudente. Abri a porta, e o velho
mergulhou na noite.
Se o silêncio era o
recurso possível na conversa com parentes em desalento, Mércia se arriscou
muitas vezes ao denunciar más condições em prisões e até ao partir para o
embate direto: “O Dr. Ednaldo disse-me que mais lhe dói a morte de um cavalo do
que a de um preso político. Ao que repliquei: ‘Faz muito bem em defender a sua
espécie, eu defendo a minha, os homens’”.
E defendeu até o fim.
No posfácio, Maria do Amparo Araújo, fundadora do grupo Tortura Nunca Mais de
Pernambuco, conta que, décadas depois, Mércia se tornou ouvidora na Secretaria
de Justiça de Pernambuco e foi encarregada de ouvir depoimentos de testemunhas
na comissão criada para indenizar sobreviventes. Mais uma vez, ajudou a manter
viva a memória dessa página infeliz da nossa história.
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