Marcelo Ikeda
Gostaria de propor uma reflexão e também fazer um desabafo. Nós, artistas e educadores, vivemos nos anos recentes passados, um ambiente extremamente nocivo e perverso. A Ancine, por uma série de características institucionais próprias, passa por uma série de incertezas se terá um rumo mais plural e receptivo ao cinema verdadeiramente independente. Assim, a Lei Paulo Gustavo surgiu como um horizonte de esperança e de muitas expectativas. E esse é um dos riscos de depositarmos muitas das nossas expectativas em um único instrumento. Sabemos que não haverá nunca mais um edital dessa natureza. Esse é um problema. Não existe na política pública da Cultura um horizonte de previsibilidade. Lembro que, quando o Presidente Lula foi eleito, uma das palavras chave do seu discurso era previsibilidade. Mas no horizonte da Cultura e também do Audiovisual, tudo é imprevisível: não se sabe quando serão os próximos editais, com que valores, em que categorias, e especialmente quais serão os critérios. Se os editais, mesmo se fossem com um valor mais reduzido, se mantivessem nos próximos quatro anos, com uma regularidade anual, e a cada edição fossem mantidas sua estrutura central e seus critérios, poderíamos haver um horizonte de previsibilidade. Então, se um proponente perdesse um edital, ele saberia que ano que vem teria outro, e aperfeiçoaria o seu projeto para ser mais competitivo na próxima edição, e saberia quais projetos valeria a pena desenvolver pois teriam mais chance dados os critérios que permaneceriam.
Mas nada disso acontece. Ao contrário, cada edital, uma surpresa diferente. Critérios novos, regramentos diferentes. Os produtores se veem mergulhados numa miríade de regulamentos burocráticos arbitrários muitas vezes obscuros que aumentam nosso ambiente de incertezas. E, diante das incertezas, cresce naturalmente uma intuição de que os processos são injustos, deturpados ou enviesados. Relatando minha experiência na LPG tanto como parecerista quanto como proponente, vejo um conjunto de problemas na condução dos processos.
Marcelo Ikeda. Foto: Té Pinheiro
Em primeiro lugar, os critérios de pontuação são deturpados. Uma miríade rocambolesca de pontuação de subcritérios torna o processo de avaliação extremamente cansativo, burocrático e suscetível a erros. A meu ver, se pensarmos em avaliação, no mínimo 50% da pontuação de um projeto deveria ser destinado ao seu mérito artístico: ou seja, no caso de um filme, se o roteiro é criativo, se a abordagem tem méritos artísticos, se é original, se sua realização gerará impacto abrangente no campo do audiovisual, se o projeto abre outras perspectivas de abordagem no campo criativo, etc. Mas não. Na maior parte dos editais da LPG que analisei, o mérito criativo ou artístico da proposta é – pasmem – um critério acessório, que equivale a no máximo 25% da avaliação (às vezes, até menos, no caso do Ceará é de meros 15%!). Reinam, então, os critérios burocráticos: contrapartidas sociais, plano de acessibilidade, exequibilidade, coerência do plano de ação, etc. Esses critérios todos são importantes, mas acredito que não devam ser os preponderantes ou decisivos, a ponto de engessar o edital para o atendimento de itens burocráticos. Desse modo, a maior parte dos pareceres não se baseou numa análise artística do mérito da proposta, mas sim em pontos acessórios como “o número de linhas da sinopse excedeu o limite estabelecido”, “o número de estagiários é inferior ao mínimo previsto”, itens que poderiam ser tranquilamente ajustados no plano de trabalho posteriormente. Um projeto acaba desclassificado, por perder pontos no inadequado preenchimento de uma única linha em uma planilha de orçamento. E o debate interno entre os pareceristas, quando há, acaba girando em torno de penduricalhos como esses, que deveriam ser acessórios, e não de debate sobre as questões essenciais, que é o mérito artístico e a capacidade de impacto da proposta. No edital da LPG Ceará, o plano de acessibilidade valia mais pontos (16 pontos de um total de 80, ou 20%) do que a análise artística da proposta (critério “qualidade, relevância e inovação da proposta”, com 12 pontos, ou meros 15%). É claro que termos uma política de acessibilidade é fundamental, mas é preciso atenção para que projetos realmente importantes e criativos não sejam eliminados simplesmente porque não preencheram planilhas e itens considerados obrigatórios, pois acredito que não é dessa forma que vamos de fato fazer uma política acessível verdadeiramente inclusiva. Uma verdadeira política de acessibilidade deve ser muito mais ampla do que a necessidade de preenchimento de planilhas específicas em editais, porque isso não necessariamente vai levar a projetos verdadeiramente acessíveis, mas sim estimular a aprovação de projetos medianos elaborados por um grupo restrito de produtores que conhecem a fundo a lógica dos editais e consegue apresentar projetos que atendam aos requisitos burocráticos de elaboração. Muito mais proveitoso, por exemplo, seria que cada projeto previsse no seu orçamento um percentual mínimo de acessibilidade. Se o projeto fosse aprovado, como etapa prévia ao recebimento do recurso, o proponente deveria obrigatoriamente cursar uma oficina sobre acessibilidade, ministrada por um especialista. Depois dessa oficina, o proponente apresentaria, então, um plano de acessibilidade, que deveria ser necessariamente aprovado por um consultor especialista. Essa sim seria uma política mais efetiva de acessibilidade do que simplesmente descartar bons projetos que não possuíam rubricas obrigatórias, pois a desclassificação desse modo não é um processo educativo.
O edital da LPG Ceará possuía nada menos que 25 Anexos que precisavam ser lidos, assimilados ou preenchidos pelos proponentes. Ora, essa miríade burocrática acaba, no fundo, não incentivando nem um maior rigor no recurso público nem maior abertura democratizante, mas simplesmente beneficiando os produtores mais experientes que dominam os códigos elitistas da burocracia avançada. Não adianta muito um edital prever cotas para as periferias, para jovens negros, PCDs e quilombolas, se a apresentação dos projetos envolve uma miríade de instrumentos burocráticos de extremo difícil manejo, que deixam confusos até mesmo proponentes de grande experiência em editais. Ainda, os critérios de filtragem dos trâmites burocráticos é extremamente rigoroso: na LPG Audiovisual CE, 40% dos projetos foram reprovados na fase de habilitação, pelo não atendimento de algum item burocrático obrigatório. Ora, é evidente que é fundamental que os projetos apresentem os documentos corretos e adequados, mas de fato é realmente necessária essa miríade infernal de documentação e esse rigor excessivo? Houve projetos eliminados porque o proponente enviou a carteira de motorista em vez do RG, não conseguindo provar para a burocracia pública que ele é ele mesmo. Explode o número de recursos e, alguns casos, até mesmo processos judiciais, tamanha a incerteza jurídica de todo o processo. Explodem arbitrariedades. Por sua vez, os funcionários da Secult vivem num ambiente precarizado, em que precisam lidar com um sem-número de documentos que precisam ser tratados, analisados e identificados. E onde fica a cultura, o cinema diante de tudo isso? O agente cultural se sente impotente e humilhado, porque considera que sequer consegue participar do certame, porque se sente incapacitado de entender e processar esse conjunto avassalador de informações e documentos dos quais não possui controle. Ele é tachado de amador e de despreparado, porque não consegue “se alfabetizar” na lógica kafkiana da burocracia pública, que na verdade funciona como barreira à entrada para a ousadia e a criatividade.
Por sua vez, os pareceristas possuem prazos exíguos de análise de uma miríade de documentos e projetos, e precisam preencher planilhas com pontuações detalhadas por subquesitos que tornam cada vez mais distante a análise do mérito da proposta. Como é o primeiro edital LPG dessa natureza, são muitas as lacunas e a falta de uma orientação programática, de modo que muitas vezes cada parecerista adota sua própria metodologia e seus próprios critérios para a análise das propostas, sem uma harmonização dos procedimentos. É fundamental, especialmente nas categorias mais expressivas do edital (por exemplo, longa-metragem e série, no caso dos projetos audiovisuais) que os pareceristas sejam agentes experientes, profissionais respeitados e reconhecidos pela sociedade e pela classe audiovisual, e que haja devida transparência de quem são seus nomes e suas trajetórias. Na LPG CE, por exemplo, a Secult local apenas divulgou uma lista de 32 nomes que estavam aptos a avaliar todas as inúmeras categorias do edital. Alguns dos nomes são muito pouco experientes. Não se informou quem julgou qual categoria. A falta de transparência acaba abrindo margem para indevidas interpretações de suspeita, que enfraquecem todo o sistema. Pouco adianta os editais serem bem formulados se não houverem bons pareceristas, pessoas respeitadas e comprometidas com o audiovisual.
Além disso, a ausência da etapa de pitching (defesa oral) fragiliza a análise das propostas, especialmente na categorias de maior complexidade, como longa e série. Ora, sabemos que mecanismos como softwares de inteligência artificial podem ser utilizados para a escrita de roteiros, justificativas e argumentos, de modo que a etapa de entrevista seria etapa basilar, fundamental, para que a banca, reunida presencialmente, pudesse averiguar de fato, se o proponente possui condições de executar a proposta. Com minha larga experiência como parecerista, posso testemunhar que não foram poucos os projetos que pareceram promissores na etapa da escrita, mas que a entrevista deixou claro que a produção e a direção não posuíam domínio satisfatório sobre as questões apresentadas no projeto. Outro ponto é que processos complexos como a análise de projetos culturais não pode ser decididos diante de uma mera somatória de pontos de uma miríade de quesitos, que serão quantificados isoladamente por pareceristas sem treinamento adequado. É fundamental que exista uma reunião dos pareceristas, de preferência presencial, para o intercâmbio de informações e harmonização das metodologias de análise. O convívio entre os membros da banca de pareceristas permite afinar procedimentos e discutir questões ou aspectos mais difíceis e delicados sobre as características dos projetos analisados. Reunir presencialmente os pareceristas é um investimento financeiro e de tempo mas que garanto que é pequeno em se tratando do enorme benefício para a coerência do resultado final. Quando os pareceristas simplesmente precisam entregar um rol de notas, sem encontro prévio, sem divulgação de quem são, eles naturalmente se sentem menos estimulados a produzir melhores resultados, pois não há retorno ou feedback, apenas uma mera planilha de notas que eles precisam preencher.
Em suma, para finalizar esse texto que já está bastante extenso, e que se originou como uma reflexão e um desabafo, não como forma de análise mais ampla de todos os problemas do Edital. O que na verdade eu gostaria mesmo de falar é que a opção por certa institucionalização dos editais torna o ambiente do audiovisual extremamente tóxico e nocivo. A falta de melhores critérios inventiva a desconfiança, a imprevisibilidade, a arbitrariedade, as acusações de clientelismo, os erros, alguns involuntários, outros, nem tanto. Difícil não é escrever um projeto mas sobreviver ao ambiente de competitividade tóxica e de rigor burocrático legalizante extremamente excessivo, em que a classe fica com a impressão de que a articulação política muitas vezes é preponderante em relação à qualidade artística de um projeto. Quem perde com todo esse ambiente tóxico não são apenas os agentes culturais, que se veem impotentes, humilhados e adoecidos, mas toda a sociedade, porque são gastos milhões e milhões de reais em projetos mal selecionados. É não apenas preciso mas possível melhorar. É preciso um comprometimento maior dos agentes envolvidos para que os editais possuam mais planejamento, organização, previsibilidade, transparência e equilíbrio. A classe audiovisual não merece adoecer a cada edital divulgado. Estamos cansados e adoecidos – e precisamos estar bem saudáveis e de energia renovada para realizar bem os projetos e que eles possam, acima de tudo, oferecer alternativas para todos os enormes desafios que estão postos em nossos dias de hoje. Porque precisamos de um país melhor, e precisamos que sejam selecionados projetos que possam de fato fazer a diferença, impulsionando e propondo outros imaginários.
Professor Adjunto do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Comunicação pelo PPGCOM da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com sanduíche na Universidade de Reading (Inglaterra). Sua principal pesquisa acadêmica é sobre o cinema brasileiro. Uma primeira linha de pesquisa é sobre as políticas públicas para o setor cinematográfico a partir dos anos 1990. Trabalhou na Agência Nacional do Cinema (ANCINE) entre 2002 e 2010, ocupando diversas funções.
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