“Senhor, é mais fácil reconhecer a tua presença na hóstia consagrada do que nos milhares de irmãos e irmãs miseráveis que sofrem e penam pelas ruas e cortiços do mundo. Como poderemos passar pelas ruas, com o pão, sinal da tua presença para um mundo novo e de partilha, indiferentes aos adultos e crianças que jazem abandonados no chão?
Dá-nos a graça de adorar a tua presença no pão da Eucaristia, de modo que possamos te reconhecer e honrar em cada ser humano, especialmente nos irmãos e irmãs mais marginalizados”.
- Dom Helder Câmara
CORPUS CHRISTI & OUTROS CORPOS. ALÉM DO FERIADO. Romero Venâncio
O dia litúrgico de "Corpus Christi" é um feriado no Brasil. Mesmo para quem não é religioso católico, esse feriado acaba tendo sua particular sacralidade. O descanso do Corpo. Nosso corpo tem limites. Não precisamos ser de alguma religião para sabermos dessa sabedoria.
Segundo os historiadores da Igreja, "Corpus Christi" foi celebrado pela primeira vez em 1247, na Diocese de Liége. Em seguida, o Papa Urbano IV instituiu a celebração numa bula publicada no dia em setembro de 1264. Em síntese, a solenidade de "Corpus Christi" significa então a festa do Corpo de Cristo. Internamente ao catolicismo, uma festa em memória da "Eucaristia", o pão-corpo de Cristo. Do século XIII europeu para cá, a festa continuou, intensificou-se, virou disputa interpretativa em grande parte da modernidade ocidental.
A festa do corpo de Cristo no Brasil ganhou uma dimensão popular interessante. Diversas cidades do país, têm o hábito de preparar tapetes para a procissão de "Corpus Christi" onde a tradição popular serve para expressar o amor e o carinho do povo católico e curiosos à presença de Jesus vivo na Eucaristia. A riqueza do catolicismo popular brasileiro sempre redefiniu e ressignificou os modelos tridentino e romanizado do catolicismo vivido pelas pessoas mais simples espalhadas no Brasil.
Vivemos nas últimas décadas do catolicismo no Brasil uma "onda tradicionalista" que deseja a volta de uma tradição tridentina "iluminada" pelo Concílio Vaticano I e toda uma prática que beira ao anacronismo em pleno Século XXI. Atinge todas as idades dentro do catolicismo e tem crescido devido as redes digitais muito bem utilizadas individualmente ou em grupo. O tradicionalismo na Igreja Católica foi muito bem estudado pelo professor de ciências da religião da PUC/SP João Décio Passos em seu: "A força do passado na fraqueza do presente" (Paulinas, 2020). Nem precisa dizer que o Papa Francisco e o Concílio Vaticano II viraram o alvo de críticas ferrenhas dessa gente. A festa de "Corpus Christi" em todo esse tradicionalismo, fica reduzida a celebração solene da eucarística e uma "adoração ao santíssimo" sem fim. Não passa de devocionalismo. O corpo de Cristo torna-se um "fetiche", uma "mistificação".
O grande desafio teológico é pensar o "corpo de Cristo" em outros corpos e em dias atuais. O corpo humano em sua sacralidade aviltada representa o aviltamento do "corpo de Cristo". Corpos esmagados pelo trabalho brutalizado, corpos abandonado nas ruas, corpos juvenis sem sentido e perdido no hedonismo, corpos de tantos pobres condenados a fome num sistema produtor de mercadorias... Fazer do "corpo de Cristo" um corpo que traga esperança a tantos/tantas desesperados num mundo sem transcendência, seria uma evangelização necessária de uma "Igreja em saída".
Uma frase de um filósofo contemporâneo que pode nos fazer pensar mais fundo sobre a "festa do Corpus Christi" em nossos dias:
"O capitalismo, em contrapartida, faz da própria festa mercadoria. A festa se transforma em eventos e espetáculos. Carecem de repouso contemplativo" (Byung-Chul Han. In: "Vita contemplativa. Ou sobre a inatividade". Vozes, 2023).
O filósofo Sul-coreano/alemão nos faz entender toda festa como descanso do corpo. Alegria do corpo não reduzido a uma lógica mercantil. Cabe a todos/todas interessados numa "festa de Corpus Christi" entender que esse "corpo/Cristo" não pode ficar internado num devocionalismo mecânico inócuo. O corpo-Cristo tem que ser um corpo que fala fundo a outros corpos. O corpo que sofreu implacavelmente, também ressuscitou.
Romero Venâncio (UFS)
CORPUS CHRISTI, CORPO DE DEUS: NOSSOS CORPOS E O DA TERRA. Chico Alencar
É bonito ver aqueles cada vez mais raros tapetes de serragem, areia e cores nas ruas de algumas cidades, celebrando "o cálix bento e a hóstia consagrada".
O pão e o vinho, que Jesus consagrou e compartilhou. Germinação do trigo e da videira. Que, pelo trabalho humano, transformou-se em alimento e bebida. No próprio corpo torturado e redivivo do Cristo: que símbolo potente! (Marcos 14, 12-16, 22-26).
Corpus Christi é a festa dos elementos, de tudo o que nos constitui. Somos as dádivas que comemos, que respiramos, que enxergamos. Somos as partículas fisico-químicas presentes nos corpos estelares, nos vegetais, nos minerais, em tudo o que pulsa. Em nós: "tudo o que move é sagrado".
Corpus Christi é um chamado para "enxergar o mundo num grão de areia/ e o céu numa flor do campo./ Segurar o infinito na palma da mão/ e a eternidade numa hora" (William Blake, 1757-1827).
Corpus Christi é sim um "habeas corpus": o planeta liberto e bem tratado na hóstia consagrada. E ela, comungada, nos livrando das angústias, das ansiedades, das culpas. Resgatando corpos feridos - os nossos, estressados, intoxicados pelo consumismo ou agredidos pela injustiça; os do planeta exaurido.
Esse feriado, cujo significado poucos conhecem ou querem saber, é a celebração da integridade da Criação. Antídoto às continuadas iniciativas dos egos inflados, das ganâncias insaciáveis e sugadoras, da força corrosiva da grana, da exploração de poderes autocráticos, das guerras genocidas.
A energia amorosa presente na natureza (às vezes revoltada!), simbolizadas no pão e no vinho enfim repartidos, triunfará!
Cuidemos, comunguemos, congreguemos, reintegremos!
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