sábado, 11 de maio de 2024

UM DIA APÓS O DILÚVIO Por Lelê Teles

"o que faz esse animal fora da arca, meu deus do céu?", perguntou tia gorete, diante da cena diluviana.

uma mão na cintura e outra na boca; a cara de espanto.

ela via, pela tevê, a comovente imagem de um cavalo se equilibrando, como um bailarino, sobre a cumeeira de um telhado.

imóvel, o equino parecia exausto.

não se sabe por quanto tempo ele lutou contra aquelas furiosas águas barrentas, até fazer do telhado o seu estábulo.

vovó lizete, com as pernas estiradas no sofá retrátil, pediu pra irmã aumentar o volume da tevê.

o cãozinho, biloca, latiu pedindo silêncio.

a veterinária informou ao repórter que um animal daquele porte poderia pesar até meia tonelada.

tia gorete olhou pra irmã com os olhos esbugalhados, vovó lizete demonstrou o mesmo espanto, biloca parecia emitir um enigmático riso de canto de boca. 

a informação trouxe mais dramaticidade pra cena inusitada, porque o cavalo parecia levitar sobre aquela frágil estrutura sob suas patas.

a reportagem deu conta de que o bicho estava ali por pelo menos quatro dias e noites, de pé, com sede, com fome e com frio, tomando chuva no lombo.

vovó lizete lamentou a desgraça do pobre animal e torceu para que o resgate chegasse logo, rogando a graça a são francisco de assis.

tia gorete enxugava uma lágrima.

biloca, que é poeta e filósofo como o quincas borba, imaginava como aquele cavalo devia estar usando a imaginação para obliterar aquela imagem de morte e destruição que é obrigado a encarar.

ele deve estar sonhando acordado, pensou o cãozinho, imaginando-se novamente correndo, fagueiro e feliz, por uma campina verdejante, cheia de cavalos amigos, éguas de crinas cremosas e poltros brincantes.

biloca tem razão, a poesia deste cavalo resiliente, comoveu por sua plasticidade, perseverança, força e determinação.

ali era a vida, em seu estado bruto, lutando contra a brutalidade da morte.

o resgate, em fim, chegou.

uma equipe de bombeiros e veterinários sedou o animal e o debruçou sobre um bote, enchendo o coração de tia gorete e vovó lizete de esperança e amor à vida.

vovó lizete não tem dúvidas de que são francisco ouviu suas preces e intercedeu pelo quadrúpede.

a reportagem jogou mais doce na boca das senhoras, disse que o cavalo foi apelidado de caramelo e que, como ele, mais de cinco mil animais já haviam sido resgatados.

vês?, era um cavalo, e agora ele se multiplica em milhares de outros animais.

vivinhos da silva.

contemos, enquanto podemos, os que estão dentro da arca.

porque por baixo daquelas águas ocres e lamacentas estão granjas, canis e galinheiros inteiros.

milhares de bois e vacas, porcos e leitões, cavalos e éguas, cães e gatos, galinhas e patos morreram afogados.

caramelo é uma metáfora para essa desgraça, o que não pode morrer, diz aquela imagem equina, é a poesia.

no dilúvio de '41, quando o rio guaíba inundou porto alegre, mário quintana poetou que sonhava acordado vendo que "andava um barco de verdade assombrando corredores".

agora, barcos singram ruas, adentram estabelecimentos comerciais e entram pela porta da sala das casas, a resgatar viventes.

ao final da reportagem, biloca veio ao meu quarto, cabisbaixo como um náufrago, subiu na cama e pediu cafuné.

emitia um latido fino e cheio de tristeza, o rabo colado ao corpo e ele todo enrolado, como uma bolinha.

eu disse a ele, num suspiro, "quando baixarem as águas, biloca, veremos quantos humanos há entre os desumanos, porque vai ser preciso muita humanidade para lidar com tamanha dor diante de tantas perdas. 

e quando será?, ele perguntou, lançando-me um olhar de filósofo canino.

todo dilúvio emite um sinal de seu desfecho, eu disse ao cão, mas nem toda arca atraca no ararate.

a nossa tragédia é brasileiríssima.

quintana, o alegre poeta do alegrete, surgirá nos céus com um ramo de relva no bico.

e um anjo, todo molhado, tocará num telhado o seu flautim: pirulin, lulin, lulin.

veremos, meu caro biloquinha, muito em breve, uma praça cheia de crianças, sorrindo e soprando gaitinhas de boca. 

enquanto caramelo voltará aos pampas, dando acrobáticos pinotes, relinchando alegre e coiceando o ar.

oxalá caramelo desfrute, equinamente, a sua segunda chance: sem cargas, sem chicotes e sem carroças.

a galopes, crina ao vento, beiços moles, ventas largas e abertas, a inalar o verde frescor da campina. 

nesse dia, colocarei na janela um par de sapatos floridos e eles ficarão lá, eternamente, como "dois velhos barcos abandonados à margem tranquila de um açude". 

tudo passará, biloca.

e nós, passarinhos, latiu o cãozinho.

palavra da salvação.

"A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas", escreveu Quintana no livro Sapato florido (1948)."

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