sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Porque Paulo Freire, reconhecido como um dos grandes pensadores da educação no mundo, é pouco conhecido, de fato, e aplicado no Brasil? Por Rudá Ricci

 

Paulo Freire é um desses autores que são muito citados sem grande profundidade. Alguns, citam com ódio, sem nunca ter lido uma linha do que escreveu. Outros, citam frases amorosas como este fosse o centro de sua lavra. Lá vai fio a respeito de seus principais conceitos.


1) Começando sobre a confusão a respeito do conceito de educação popular. Não foi Paulo Freire que o criou. O conceito já aparecia na América Espanhola desde o século XIX. Apareceu em meio à luta pela independência como educação nacional e popular


2) O termo evoluiu para uma concepção mais transformadora com organizações populares e sindicais na Argentina, Peru e Bolívia. Nikolai Severin, que criou as escolas sindicais na Dinamarca, foi uma referência neste período

3) Aliás, Severin foi muito importante para a construção das Escolas da Cidadania no sul dos EUA. Myles Horton, educador que trouxe suas concepções para a alfabetização de negros e que impulsionou a luta por direitos civis, foi amigo de Paulo Freire

4) Antes de Paulo Freire, Cuba desenvolveu uma enorme campanha de alfabetização que se alinha às teses do educador brasileiro. Lá, a referência foi Ana Echegoyen de Cañizares, estudiosa afro-cubana feminista que o Brasil nem estuda ou cita.
5) Mas, vamos à Freire. Depois da experiência exitosa de Angicos (RN) e no exílio no Chile, as teses do brasileiro se chocaram com a concepção de educação popular de Marta Harnecker. A chilena adotava uma linha mais tradicional de transferência de saber.
6) Esta é uma importante diferença com as visões de educação "de fora" da existência do educando apoiada no leninismo. Paulo Freire contestou esta tese que considerava autoritária e equivocada no livro Pedagogia do Oprimido.


8) Aqui aparece um princípio freireanos dos mais importantes. A relação educador e educando está relacionada com a libertação, contrária à prática de transmissão de conteúdos. O método educativo, portanto, deveria se basear no diálogo, na conversa, provocando os educandos.

9) A problematização, assim, substitui a mera informação ou transmissão de conhecimento. A dúvida proposta leva a rupturas de paradigmas e o diálogo integra saberes (o educador se educa, aprende e reaprende no próprio diálogo com os educandos).

10) No seu livro “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire destaca que o papel do educador é o de criar a possibilidade de sua construção. Na prática, a sala de aula deixa de ser o espaço da certeza para dar lugar às dúvidas

11) Mas, como provocar a dúvida se o método propõe o diálogo? Começando pela curiosidade do educando. Aqui se situa uma das maiores confusões quando se cita Paulo Freire no Brasil: ele se apoiava na fenomenologia.

12) Para a fenomenologia, o primeiro discurso de alguém sobre algo é dado pela emoção e pelo sensível (olfato, audição, tato etc). Este seria o "primeiro discurso" sobre o mundo de todos nós. A teoria seria o "segundo discurso", mais reflexivo.

13) Mas, minha percepção não é neutra. Ela é influenciada pela minha própria história comigo e na sociedade. Mais: minha percepção é sempre cotejada com a de outro sobre o mesmo fenômeno. É assim que assistimos um programa de televisão: comentamos com quem está ao nosso lado.

14) Então, a formação da opinião se dá em movimentos circulares (na verdade, elípticos, superando cada momento anterior): eu, comigo mesmo; eu, trocando impressões com os outros; eu, formando uma visão mais racional do mundo. Este deveria ser o movimento do aprendizado

15) A alfabetização freireana arte desta constatação: não se deve iniciar pela palavra (o signo) que nada mais é que um desenho estranho para o analfabeto. Ela tem que iniciar justamente pelo significado afetivo da palavra para o educando. Somente assim ele "apreende" a palavra


16) O começo da alfabetização é quase um estudo antropológico: o educador ouve o educando, percebe sua existência, seus gostos, seu vocabulário. E é deste estudo que nasce a "palavra geradora": uma palavra que tem muito sentido para o analfabeto e que será o fio da meada

17) O fio da meada nasce da intenção do educador e da realidade e cultura do educando. É uma interação. É justamente assim que se aprende: nasce de uma curiosidade pessoal que impele à mudança de leitura do mundo. Para Paulo Freire, a educação só tem sentido se promover autonomia.

18) Autonomia não é liberdade para fazer o que se quer, mas saber se posicionar frente ao coletivo. A tradução livre seria "eu defino as normas de conduta" e, assim, administro meu desejo e minhas pulsões. Educação é um processo civilizatório. Pessoa educada sabe se relacionar

19) Para terminar este fio inicial sobre conceitos básicos de Paulo Freire, encaixo o de "Admiração". Trata-se de um exercício de provocação do educando para ele "se ver de fora" e ganhar autonomia. Lembre-se, tudo nasce com a dúvida sobre tudo.

20) Se eu admiro o mundo eu não o aceito de pronto. O mesmo em relação às minhas escolhas: se eu contemplo o que sou e faço, sou levado a ter maior consciência sobre meu papel e o resultado de minhas escolhas. Para mim, trata-se de um antídoto para a idolatria e o fanatismo

21) Assim, na sala de aula, o educador tem que provocar a admiração sobre o mundo e sobre os nossos próprios pensamentos. Parece algo similar à psicanálise, não? Somente assim me vejo como parte consciente no mundo.

22) Fico por aqui. Este é um aperitivo para o pensamento de Paulo Freire. Algo muito distinto do que falam sobre ele, não? Inté. (FIM)
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SOBRE O CONCEITO DE EDUCAÇÃO BANCÁRIA.

1) A educação bancária se baseia na convicção que o educando é um copo vazio, incapaz de superar o senso comum marcado por crenças e crendices. Para superar tal condição, necessitaria da oxigenação vinda do conhecimento de fora.

2) Para superar tal condição, necessitaria da oxigenação vinda do conhecimento de fora. Um conhecimento civilizador, que o prepara para um salto para o mundo produtivo, de progresso pessoal e coletivo. Algo como a civilização tirando o selvagem de sua inércia.

3) O termo bancário se refere ao processo cumulativo, em que o educando passivo vai apreendendo o que seu instrutor lhe oferece. Émile Durkheim sugeria a “submissão consentida” do aluno para aprender a se socializar, subordinação que seria conquistada pela didática do professor.

4) No livro “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire sustenta que a educação bancária narra a realidade como algo estático e bem-comportada. A palavra do professor “se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca”, o que impede a crítica do aluno.

5) Assim, o aluno se torna colecionador e arquivista do conhecimento memorizado.
Toda esta orientação pedagógica transforma a escola e a sala de aula em intocados pela realidade concreta. O mundo não se torna algo meu ou consciente na minha existência.

6) Talvez aqui esteja a chave para entendermos o motivo para o brasileiro idolatrar tanto celebridades e salvadores do mundo: não nos vemos capazes de transformar o mundo. E não nos sentimos capazes porque não nos vemos como parte ou criadores do mundo em que vivemos.

7) Pois bem, a educação bancária ingressou no Brasil pelas mãos da igreja católica e pela pedagogia taylorista dos EUA.

8) No caso da educação católica, ela se impõe no Brasil a partir do Concílio de Trento. Ao contrário do que o protestantismo sugeria, o Concílio de Trento sustentou que a palavra de Deus é falada pelos que são tocados por Ele (o “carisma”) para desempenhar esta função.

9) O padre, no púlpito, não seria mais um mero humano, mas um ser “escolhido por Deus”. Assim, pouco adiantaria qualquer humano se fechar num cômodo para ler a Bíblia porque seria insuficiente.

10) No livro "500 anos de educação no Brasil" há um capítulo dedicado à concepção da educação jesuíta na origem do nosso país que retoma as orientações do Concílio de Trento.

11) O padre-professor se apresentou como instrumento de Deus. Assim, os alunos – em especial, os indígenas – pouco tinham a dizer, justamente porque sua alma estaria perdida, vagando pelas matas. Deus ingressaria nas suas vidas pela fala dos padres.

12) Já a concepção pedagógica taylorista chegou ao Brasil depois da 2ª Guerra Mundial. Vários programas dos EUA foram criados para trazer aos educadores brasileiros esta teoria que nasceu na última década do século XIX, concebida por Joseph Mayer Rice.

13) O taylorismo se relaciona com o preparo para a indústria. Os conteúdos valorizados são: matemática, química, física e biologia, assim como a disciplina industrial (daí o rigor com o comportamento na sala de aula e a repetição e memorização)

14) Era contra este tipo de educação que Paulo Freire se insurgiu. Mas, por outro lado, questionava o que denominava do extremo oposto: a permissividade e populismo do educador.

15)
A libertinagem seria uma das posturas demagógicas que procura seduzir os alunos, ao invés de provocá-los a refletir sobre si e o mundo. Outra crítica que fazia era endereçada ao discurso falacioso de que educador e educando são iguais.

16) Ao contrário, o educador, sustentava, não pode se furtar do seu papel pedagógico, como a escolha do plano de aula. Neste sentido, a educação freireana se contrapõe ao espontaneísmo sugerido por Rousseau.

17) A sugestão freireana é a da construção do espaço de confiança na sala de aula e do consequente papel do silêncio no processo educacional. Principalmente, como ato de autocontrole do educador. Trata-se da construção do educador como mediador da construção do conhecimento.

18) O diálogo se faz num espaço de confiança. Espaço que não se faz pronto, mas que vai se construindo na relação entre educador e educando, estabelecendo espaços e regras de convivência em que a função de cada parte vai ficando nítida.

19) Em um espaço libertino, o diálogo se transforma em disputa pela verdade pessoal mais correta, pela autoafirmação e afirmação dos egos. Se absolutamente regrado, opressivo e limitado, inibe a apresentação de dúvidas, devaneios e crenças.

20) Freire sugere que em determinados momentos o educador não pode fazer intervenções, sob pena de macular o espaço de diálogo. Aguarda o momento correto até que, percebendo que a confiança está estabelecida, retoma um tema não resolvido ou que merece uma reflexão mais cuidadosa

21) O nome que deu a esta espera para apresentar suas ideias e posições foi “silêncio tático”. O silêncio tático é, na verdade, um exercício de empatia em que o educador procura compreender a postura e processo de amadurecimento da sala de aula.

22) O professor acompanha e estimula a construção de um espaço de confiança e diálogo onde as opiniões diferentes são respeitadas, mas debatidas. A sala passa a ser um espaço em que a unidade se esboça sem corromper as diversidades e diferenças.

23) Fico por aqui. Espero estar contribuindo para se entender a complexidade do pensamento freireano e as orientações que levam às práticas educativas. (FIM)

Diretamente do acervo da TV Cultura, o programa Escola Viva entrevista o educador e filósofo brasileiro Paulo Freire. Programa produzido em 1993.








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