domingo, 25 de agosto de 2024

A BETTO COM CARINHO! Por Eugênio Bucci, Romero Venâncio, Luiza Erundina, Embaixada de Cuba no Brasil, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Instituto Conhecimento Liberta, Faustino Teixeira, Chico Alencar e etc....

Uma festa discreta

Frei Betto é um homem de muitos tempos e muitos lugares

Carlos Alberto Libânio Christo, o dominicano Frei Betto, é um autor de letras diversas e números altos. Escreveu 74 livros. Tem 64 obras publicadas no exterior. Apenas um de seus títulos, Fidel e a Religião, lançado no Brasil em 1985 pela editora Brasiliense, foi publicado em outros 28 países.

Além de autor, ele é também educador popular. Ajudou a formar milhares de ativistas no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, e em outras organizações sociais. O semblante que o Brasil tem hoje leva sinais da sua caligrafia e sua pedagogia. Há mais de meio século, Betto, como ele prefere ser chamado, é personagem de primeiro plano da história nacional.

Com sua jaqueta jeans à guisa de batina, mobiliza gente de tipos e matizes variados. Gente contente. Um sinal disso são as homenagens que disputam sua agenda à medida que se aproxima o dia 25 de agosto, quando ele vai completar 80 anos de idade. Em sindicatos, embaixadas, comunidades católicas e nas áreas comuns, ditas “sociais”, de prédios de apartamentos, recebe aplausos em grande quantidade e presentes em quantidade menor. Seus seguidores sinceros são mais numerosos que os dedos de uma mão – ou de milhares de mãos. Seus admiradores declarados lotam salões de casas abastadas e animam as rodas de quem não tem onde morar.

As festividades não aparecem nos jornais nem fazem alarde. Avançam como uma onda calma e pipocam em toda parte – até em salas de cinema. O documentário A cabeça pensa onde os pés pisam – Frei Betto e a educação popular, o primeiro da trilogia dirigida por Evanize Sydow e Américo Freire, a cargo da produtora Mirar Lejos, foi exibido em pré-estreias comemorativas. A mesma produtora já começou a rodar o longa-metragem “Betto”, com o ator Enrique Díaz no papel principal. O lançamento está previsto para 2025.

No domingo passado, outro documentário, O humanismo de Frei Betto, dirigido por Roberto Mader, foi exibido em avant-première pelo canal do ICL no YouTube. Leonardo Boff, um dos entrevistados, diz que seu velho companheiro sabe unir militância e religião. Os dois religiosos veem na figura de Jesus Cristo um preso político que foi torturado e assassinado por defender uma revolução – a revolução de mudar a maneira de viver por meio do amor ao próximo.

No mesmo filme, Frei Betto afirma que, no Novo Testamento, há apenas uma definição de Deus: “Deus é amor”. É tanta afeição mística que, de acordo com Boff, às vezes o frade “sente ciúme de Deus” por achar que o Superior não lhe dá a atenção devida.

A fibra moral desse escritor e pregador é maior do que supõe a nossa vã laicidade. Ele de vez em quando se avista com um presidente da República, a quem não adula. Sem mudar de roupa, vai amparar por horas, por dias, por semanas, os pais de um jovem que morreu tragicamente. Entre uma coisa e outra, conversa com os desvalidos, os esquecidos, os invisíveis. Sem barulho, sem ruído, sem precisar ser notado. Em silêncio.

Coerente, muito embora controverso, Frei Betto defende o governo de Cuba. Não espere que ele desista dessa causa, à qual se sente irmanado. E se você for um crítico e disser que em Havana vige uma ditadura, ele o acolherá com o mesmo respeito caloroso e – para usar aqui uma palavra que ele inventou – com a mesma “fraternura”.

Fora isso, cultiva a boa mesa. Guarda de cor as receitas da mãe, dona Stella. Escreve sobre culinária – Comer como um frade, por exemplo –, sabe cozinhar e não faz feio. Não deixa ninguém cortar o queijo mineiro como se fosse pizza. Nessa matéria, sua ortodoxia é inflexível: as fatias devem ser retiradas sempre de fora a fora, e o queijo vai diminuindo da direita para a esquerda, como se fosse pão.

Frei Betto é capaz de levar uma caixa de charutos Cohiba para o jovem editor que acabou de virar pai, mas você jamais vai vê-lo ostentando grifes. Seus vinhos têm preço mediano. Com a mesma disciplina litúrgica que lidera um grupo de oração, comanda a “Academia de Litros”, em que confrades e confreiras se reúnem para comer o que engorda, beber o que embriaga e prosear sobre assuntos que levam uma pitada de veneno.

Assim é. Quem o vê dando risada e fazendo piadas ferinas não tem ideia dos sofrimentos por que passou. Batismo de Sangue, de 1983, um de seus livros definitivos, conta a história dos frades dominicanos que entraram nas fileiras da ALN de Carlos Marighela para dar apoio logístico, sem nunca pegar em armas, e terminaram encarcerados.

Frei Tito se matou no exílio. Não suportou conviver com o que a tortura quebrou dentro dele. Betto sobreviveu. Suportou. As cicatrizes que ficaram não se põem à mostra. Batismo de Sangue ganhou o Jabuti e foi adaptado para o cinema em 2006, pelo diretor Helvécio Ratton.

Esse homem de muitos tempos e muitos lugares, que foi jornalista na revista Realidade, trabalhou no Teatro Oficina junto com Zé Celso, morou na cadeia, na favela e no convento, sempre mineiramente quieto, merece todas as celebrações, silenciosas ou não. Parabéns, meu amigo. Feliz aniversário.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Frei Betto nasceu em 25 de agosto de 1944... 80 anos hoje. Frade dominicano católico, jornalista e escritor brasileiro... Profundo conhecedor das Américas... Socialista convicto e histórico... Ou louvando a quem bem merece!!!

Romero Venâncio


Reconhecimento

Embaixada do Brasil em Cuba homenageia os 80 anos de Frei Betto

Frade Dominicano e militante pelos direitos humanos atuou em programas de combate a fome e educação popular no país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
 

Frei Betto: ʽLula não faz o desejável, faz o possívelʼ

Ao celebrar 80 anos, escritor reflete sobre a idade, a crise da esquerda e os rumos do país

Bernardo Mello Franco - O Globo - 25/08/2024 

 Hoje Frei Betto faz 80 anos. O escritor escolheu celebrar a data em Belo Horizonte, sua cidade natal. De manhã, vai à missa na paróquia em que fez catequese. À tarde, reunirá parentes e amigos para um almoço festivo. “Será uma grande freijoada”, brinca, depois de enumerar os seis irmãos, 16 sobrinhos e 24 sobrinhos-netos convidados para o banquete.

Militante político desde o início da década de 1960, quando foi eleito dirigente da Juventude Estudantil Católica, o frade dominicano diz que o Brasil atual está “muito distante” do país com que ele sonhava naqueles anos. “Quando a ditadura acabou, imaginei que finalmente nos tornaríamos uma democracia de verdade. Hoje temos uma democracia liberal, mas estamos longe de ser uma democracia econômica”, reflete. “As marcas deixadas por 350 anos de escravidão estão presentes. A desigualdade ainda é brutal. E o leque de preconceitos, que produz o racismo e a homofobia, também”, observa.

Velho amigo de Lula, a quem assessorou no primeiro mandato, o escritor define o presidente como um “equilibrista”. “Ele não faz o desejável, faz o possível”, resigna-se. “Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, uma em cada perna: o Banco Central e o Congresso. Mas o Brasil marcou um tento com a sua volta, que tirou o neofascismo do poder.”

Betto diz não estar surpreso com o crescimento de Pablo Marçal na eleição de São Paulo, assunto do momento na política. “O novo modelo para ganhar eleições é o modelo do palhaço, com todo respeito a quem ganha a vida honestamente no circo”, critica, antes de comparar o coach a Donald Trump e Javier Milei. “O personagem histriônico, disfarçado de antipolítico, é o que rende votos hoje em dia”, lamenta.

Em abril, o dominicano agitou suas bases com um artigo intitulado “Cabelos brancos”, em que constatou o envelhecimento da militância de esquerda. “Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro”, provocou. Quatro meses depois, ele mantém o diagnóstico. “Está difícil mexer com os jovens. Nós, da esquerda, ainda não sabemos lidar com a nova trincheira política, que são as redes digitais”, alerta.

Para o autor de “Batismo de sangue”, um dos relatos mais pungentes da luta contra a ditadura, a saída passa obrigatoriamente pelas salas de aula. “Não é o benefício social que muda a cabeça do povo. É a educação política”, sentencia. Num encontro recente, ele sugeriu a Lula que o governo espalhasse 50 mil educadores populares pelo país. A ideia foi depositada na gaveta das boas intenções.

Em pouco tempo, Betto terá mais livros do que anos. Já publicou 78 e tem mais dois no prelo. O próximo a ser lançado é “Jesus Revolucionário”, uma releitura do Evangelho de Lucas. O frade costuma repetir que todo cristão é discípulo de um prisioneiro político, condenado à Cruz como subversivo.

Apesar dos pesares, o novo octogenário se define como um “otimista inveterado”. Ao refletir sobre o aniversário, ele arriscou uma receita para chegar à sua idade com o corpo e a cabeça em dia: “A vida se divide em duas fases, a da sorveteria e a da farmácia. Sou freguês da segunda, cadastrado em todas elas. Mas observo alguns requisitos da boa saúde: meditação; ginástica; moderação na comida e na bebida; boas amizades; bom humor; e, sobretudo, não dar importância ao que não tem importância. O segredo da felicidade está no desapego. Do dinheiro, do poder e, o mais difícil, de si mesmo”.

"Democracia que não partilha benefícios econômicos é falsa"

Frei Betto completa 80 anos e segue militando por uma sociedade mais igualitária. "Vou morrer assim: lutando por essa utopia", diz em entrevista à DW. AQUI

Enrique Díaz protagoniza longa em

 homenagem aos 80 anos de Frei Betto. AQUI


Frei Betto em dose tripla: no ICL Notícias, no nosso whatsapp e como professor de um curso incrível



CINE ICL - O HUMANISMO DE FREI BETTO - TRANSMISSÃO ABERTA E AO VIVO NO DIA 18/08 ÀS 20h 
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CINE ICL - O HUMANISMO DE FREI BETTO - TRANSMISSÃO ABERTA E AO VIVO NO DIA 18/08 ÀS 20h.  AQUI

Em comemoração aos 80 anos de frei Betto, a Editora Reflexão lançou o livro - Frei Betto - Pontos de Vista (2024). Escrevi com alegria um artigo para o livro, que partilho com os amigos:
Frei Betto: uma vida de diálogo, compromisso e doação
Faustino Teixeira
UFJF/IHU-Unisinos/Paz e Bem
Falar sobre frei Betto é para mim motivo de muita alegria. Estamos festejando os seus oitenta anos de vida, marcados por muito diálogo, compromisso e doação. Betto é hoje um nome reconhecido no Brasil e no exterior e seu perfil ético é ilibado e incontestável. O meu primeiro contato com Betto foi depois de sua prisão, ao final de 1973 ou início de 1974. Nossos pais já se conheciam em razão da experiência da Ação Católica. Lembro-me muito de meu pai falando da dor da família com a prisão do Betto e de toda a solidariedade prestada por ele naquele momento difícil. No meu caso, o encontro ocorreu em razão de minha atuação num grupo que se reunia regularmente com os dominicanos em algumas localidades do Brasil, particularmente em São Paulo (Convento das Perdizes), Petrópolis e Rio de Janeiro. Para os dominicanos o grupo era visto como de pessoas “vocacionadas” à ordem. Mas não era assim que percebíamos nossa presença ali. Eu pelo menos entendi a minha presença no grupo como de alguém profundamente interessado na atuação dos dominicanos naquele tempo, bem como pela teologia da libertação, que era fonte alimentadora dos encontros regulares que fazíamos. Minha abertura aos dominicanos devia-se igualmente ao meu próximo contato com os frades na Escola Apostólica em Juiz de Fora, sendo uma presença bonita na cidade. Posso lembrar a figura de frei Alano Porto de Menezes. Recordo-me que as “Cartas da Prisão” eram na ocasião um dos nossos alimentos espirituais. A Ordem dos Dominicanos teve uma atuação profética do final da década de 1960 e durante a década seguinte, com a presença de nomes singulares no âmbito da atuação crítica e social. Basta lembrar nomes como Dom Tomás Balduíno, Eliseu Lopes, Carlos Josaphat, dentre tantos outros. 
Um bonito encontro
Em razão do contato com Betto nos encontros dos “vocacionados”, um laço bonito de amizade firmou-se desde aqueles momentos preciosos. Minha companheira, Teita, também conheceu frei Betto num dos encontros realizados em Petrópolis, e também logo se encantou com ele e Ivo Lesbaupin, que também era frade dominicano na ocasião, e que esteve preso junto com Betto. A década de 1970 era rica em iniciativas pastorais, com a presença viva das Comunidades Eclesiais de Base, e a Diocese de Vitória era um marco dessa presença de eclesiogênese. Betto teve uma atuação precisa nos trabalhos pastorais da cidade, e morava num singelo barracão de uma das favelas da localidade. Em razão do trabalho pastoral que realizava naquele tempo, pude, junto com Teita, ficar hospedado no barracão do Betto, e pudemos conhecer também o amigo Fabiano, que morava ali. Foi mais uma bela ocasião de aprofundar os laços de fraternura que nos envolviam e que só se aprofundou ao longo do tempo. Foi também a oportunidade que tive de constatar outro traço bonito da personalidade de Betto, que é sua defesa da liberdade. Há nele um dom de deixar as pessoas à vontade, sem constrangimentos. É uma presença que não inibe, mas favorece a participação e a espontaneidade. 
A amizade reforçou-se nos encontros do Grupo de Emaús, fundado justamente depois que os dominicanos saíram da prisão. Minha presença no grupo ocorreu posteriormente, junto com Teita. Era uma ocasião propícia para ver de mais perto a atuação viva de Betto e seu trabalho de grande articulador das atividades pastorais que se firmavam com vitalidade no Brasil. Emaús sempre foi para Betto um espaço fundamental em sua vida. É presença constante nos encontros. Durante toda a trajetória do grupo, já com décadas, Betto deixou de participar poucas vezes, e por razões imprescindíveis. Está sempre presente ali, com seu jeito reservado, sua capacidade de escuta, com intervenções precisas e esclarecedoras. Não se deixa levar pelo brilho de seu nome, mas mantém resguardada sua humildade e desapego. Nos momentos de lazer dos encontros, está sempre presente. Não deixa de participar ativamente desses instantes preciosos do grupo. É presença contínua ali, com seu sorriso aberto, sua graciosidade e o tradicional charuto cubano, que o acompanha por onde vai. É o presente que sempre ganha em suas constantes viagens a Cuba. Sua alegria é contagiante nesses momentos de festa informal. Está sempre circundado de pessoas querendo ouvir suas histórias e experiências. Outros momentos ricos de contato foram nos Encontros Intereclesiais de CEBs, onde juntos atuamos na assessoria, com passagens que foram alvissareiras para a afirmação de nossa amizade comum. Como mestre de táticas e estratégias, Betto sempre marcou presença nos Intereclesiais de CEBs, com pontuações precisas nos encaminhamentos importantes da caminhada das comunidades.
A dedicação aos laços de amizade
Frei Betto é alguém que vive enredado em bonitos laços de amizade. Há um emaranhado de carinho que envolve sua vida, com um circuito de amigos que é muito amplo. Impressiona a sua capacidade de criar elos com as pessoas mais diversificadas. Não reduz o seu campo afetivo a grupos exclusivos que se identificam com suas ideias e ideais. Tem uma capacidade de abertura e diálogo que é exemplo para todos nós. Consegue com seu jeito particular captar sensibilidades diversas, mas também ouvir as pessoas que estão em outras veredas, sempre com humildade e disponibilidade. Consegue igualmente ser solidário nos momentos mais difíceis e complexos, com sua presença e palavra revificadoras. Tem o dom de estar presente com a palavra certa, de conforto e solidariedade. Não se mantém fechado na “solidão dos que têm razão”, mas está sempre aberto para tecer novos laços, ampliando seu olhar e coração com ternura e cortesia.
O seu compromisso com os amigos não se deixa tomar pelas leis do mercado. Quando a causa é popular ou significativa, faz todo o esforço para estar presente. Cito como exemplo um encontro de mística que organizei em Juiz de Fora na Faixa de Gaia em 2024, uma chácara que tenho perto da cidade. Estava presente um grupo de amigos queridos. Convidei ao Betto para dar um testemunho pessoal sobre a sua vida de oração. Ele aceitou, sem nenhuma demanda e veio por conta própria, com a gratuidade que marca a sua vida. O seu testemunho para o grupo foi edificante. Nunca tinha visto o Betto chorar, e durante a sua fala, quando tocou na experiência de seu irmão, a emoção brotou em seu rosto, irradiando-se para todo o grupo. É essa sensibilidade peculiar de Betto que encanta e contagia.
A seriedade no trabalho intelectual
Impressiona também em Betto sua seriedade no trabalho intelectual. Como bom dominicano, tem uma disciplina impecável. Consagra religiosamente um lugar permanente para o exercício de seu trabalho pessoal. Sua vida é bem regrada, com disciplina que foi igualmente aperfeiçoada nos anos de prisão. Como ele mesmo sempre gosta de dizer, não passa um dia sequer sem escrever. Preserva esse espaço como dado precioso e garantido. Isso explica a quantidade enorme de livros já publicados por Betto e traduzidos para diversas línguas. Está sempre inspirado para escrever novas obras, com ideias sempre muito originais e criativas. Visa também em seu trabalho o mundo infantil, com livros voltados para as crianças e seu universo particular.
Uma vida assim produtiva não se realiza a não ser com um trabalho pessoal bem dedicado. Betto cuida com carinho de seu corpo e de sua saúde. Tem também uma disciplina férrea nas suas ginásticas diárias. Tem o dom de conseguir realizar façanhas neste campo no estrito recinto de seu quarto. Herdou dos dominicanos e da prisão o hábito de caminhar em espaços restritos: poucos metros acabam se tornando quilômetros em suas atividades diárias. O cuidado com o corpo prolonga-se no cuidado com o espírito. Sua vida de oração é inspiradora. Ao longo da vida foi ampliando suas reservas espirituais com aprendizados diversificados, não se restringindo à espiritualidade católica. Garante a riqueza de seu mundo interior com a prática constante de oração e meditação. E o mais lindo nisso tudo, é que não preserva para si esse aprendizado mas partilha-o com os outros. Nos seus vários grupos de oração ele exerce esse dom de comunicar o seu aprendizado espiritual, numa linha bem ampliada e arejada.
A paixão literária
Marcando uma singularidade de sua personalidade, a vida intelectual de Betto não está restrita ao mundo pastoral e teológico. Sua sensibilidade artística e literária é mesmo encantadora. Há em Betto um interesse singular pelo mundo da cultura. A literatura encontra um lugar de destaque em seu coração. Está sempre ampliando o seu repertório pessoal com novos horizontes literários. É viva a sua paixão por nomes de nossa literatura como Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e muitos outros. 
O sentimento de humanidade
Um dos traços que se irradia da vida e prática de frei Betto é o sentimento de humanidade. Para aqueles que participam de alguma forma de sua vida, é visível e paupável uma presença de humanidade que reverbera e encanta. Trata-se de um sentimento de justiça e de escuta atenta ao clamor dos que mais sofrem, incluindo aí o grito da Terra. Essa consciência viva de entranhas de misericórdia está gravada em seu coração e todos podemos testemunhar isso com muita clareza. É alguém que não se cansa de lutar em favor dos mais desvalidos e desprovidos, e é algo que se faz patente através de gestos muito concretos e campanhas que realiza frequentemente em favor de instituições que se dedicam à causa dos marginalizados. 
Esse sentimento é um desdobramento concreto de sua vocação cristã, entranhada em sua vida. Seu íntimo vínculo com a teologia da libertação provoca uma perspectiva atenta aos sinais dos tempos e ao exercício do amor como projeto encravado na sua perceção de salvação. Quando vemos o papa Francisco defender com vigor o ágape como expressão mais viva do amor a Deus e como o caminho singular para a realização das bem-aventuranças, conseguimos identificar uma profunda sintonia com a visão de Betto ao longo de sua caminhada pastoral. No seu livro sobre “espiritualidade, amor e êxtase”, 2020, relata que descobriu a Deus como experiência de amor, bem como aprendeu que santo não é aquele que se destaca exclusivamente por sua religiosidade, mas pelo seu testemunho amoroso.
O empenho pastoral
Junto ao sentimento de humanidade, percebemos igualmente um empenho pastoral que está enraizado em sua atuação pública. Vale registrar todo o seu histórico trabalho com a pastoral operária, com as Comunidades Eclesiais de Base e com seus grupos de espiritualidade que se espraiam por importantes cidades no Brasil. Está mais do que claro para ele que não há lugar para uma igreja libertadora e aberta fora de um empenho pastoral eficiente dos fiéis, sempre ancorado na espiritualidade e seguimento de Jesus. Toda sua ação pastoral baseia-se na dinâmica evangélica. 
Em seu clássico livro sobre Jesus ( “Jesus, aproximação histórica” -2007), o teólogo espanhol, José Antonio Pagola, relata que Jesus é dos eventos mais bonitos encontrados pela humanidade, cujo fascínio reverbera não só no mundo dos cristãos e religiosos, mas alcança uma amplitude impressionante, entre crentes e não crentes. É difícil aproximar-se dele, diz Pagola, sem ser tocado por um apelo fundamental de afirmação de vida. Jesus é alguém que “traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial”. É o que também captou frei Betto, outro apaixonado por Jesus. Repassando a bibliografia produzida por frei Betto, nos admiramos com o número substantivo de livros dedicados a Jesus. Mais recentemente, em 2017, escreveu um belo livro sobre as parábolas de Jesus, e o que elas têm a dizer a cristãos e aos outros humanos de boa vontade. E agora vem dedicando-se ao estudo dos quatro evangelhos, trazendo uma ocular singular e novidadeira para o nosso tempo.
O compromisso político
Um marco na atuação pública de frei Betto é seu compromisso político. Sua compreensão de política sempre foi bem ampla, entendendo-a como a luta comum em favor do bem comum. Esse empenho marca sua trajetória. Em muitas das iniciativas singulares nesse campo, Betto marcou sua presença com sua palavra peculiar, como no Movimento dos Sem Terra, na Pastorais Socias, no PT e na política internacional. Nesse último âmbito, vale lembrar a sua presença contínua em Cuba, a sua relação de amizade com Fidel Castro. Talvez o livro mais famoso de Betto seja “Fidel e a Religião”, publicado em 1985, já em sua décima edição. Trata-se de um bestseller reconhecido e admirado. Marcou presença na fundação do PT, e atuou no Palácio do Planalto entre os anos 2003 e 2004, ocupando a função de assessor especial da presidência da república, coordenando o trabalho de mobilização social do Programa Fome Zero. Sua atuação política foi sempre pontuada pela liberdade e autonomia, nunca se deixando tomar pela vaidade, arrogância ou vontade poder. Buscou sempre preservar em alto grau sua posição independente. Nunca se inscreveu no PT e mantém-se até hoje bem crítico com respeito a muitas questões que envolvem a atuação do partido no Brasil, sobretudo a carência de dedicação do partido à formação das bases. Vale registrar o seu preciso livro, de 2006, depois que deixou o trabalho no governo: “A mosca azul. Reflexão sobre o poder”. Encontramos no livro uma das mais lúcidas análises críticas sobre os riscos que envolvem a atuação política. São reflexões críticas de quem viveu por dentro a esfera do poder. No momento presente, continua sendo um conselheiro diuturno de Lula, acolhido por ele com carinho, com demonstrações de atenção às pontuações levantadas pelo amigo de longa data.
A vida espiritual e a irmandade cósmica
Sabemos que a espiritualidade é o núcleo da vida cristã, e a ela frei Betto vem dedicando suas energias mais substantivas. Na convivência com Betto sempre percebi esse toque singular da espiritualidade em sua vida. Talvez seja a fonte primeira de sua energia e criação. O seu carinho com os grandes místicos, com os temas da espiritualidade e a presença espiritual na vida de Jesus, é algo cativante e encorajador. De fato, é a vida de oração que qualifica e dá sentido ao caminho profético de cada um. Ela traz consigo uma energia e um potencial profundamente revolucionários. Como mostrou Gustavo Gutiérrez em seu livro “Beber no próprio poço” (1984), a espiritualidade, sobretudo sua gratuidade, revela-se como clima essencial para a busca libertadora e sua eficácia. Mas para tanto, é fundamental enraizar o caminho libertador na fonte da gratuidade e da oração. Santa Teresa, em suas Moradas (MV 3,9), sublinha que “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus”. Em seus diversos escritos sobre espiritualidade, Betto sempre enfatizou esse traço apontado por Teresa. O seu carinho com a oração também funda-se nessa sua relação de intimidade com a mística espanhola. Num de seus livros de espiritualidade, Betto sinaliza o seu aprendizado com Teresa: foi ela que apontou para ele que a oração não é nada mais do que deixar Deus falar no mundo interior. Aliás, para Teresa, a oração é uma conversa sutil com o Amado, ou seja, com aquele que sabemos que nos ama.
A antiga paixão de frei Betto por Teilhard de Chardin sempre conformou sua espiritualidade com uma dimensão cósmica mais ampla. Antes mesmo que esse tema ganhasse expressão pública e visível, Betto já indicava a sua importância essencial. O mundo espiritual está intimamente vinculado ao mundo material, isso já percebia há tempos Teilhard de Chardin e também frei Betto. Como diz Betto, “universo, matéria e espírito são um só tecido feito de linhas atômicas, nas quais os místicos decifram o desenho do rosto de Deus”. O meio divino, para utilizar uma expressão de Teilhard, é o eixo magnético essencial que banha com o seu dom e impulso toda a criação. Em sua espiritualidade de toque cósmico e holístico, Betto celebra a linda comunhão do ser humano com a natureza. Para além dos limites institucionais, que aprisionam e limitam as religiões, Betto vislumbra uma espiritualidade inter-relacional. Com ela, a descoberta de que o ser humano vem tecido por redes cósmicas. E sublinha: “Somos filhos de símios, e o nosso corpo é tecido de átomos produzidos há 13,7 bilhões de anos no calor das estrelas”.
Concluindo, devo dizer que entendo como um grande privilégio poder acompanhar de perto, como amigo, a trajetória luminosa de frei Betto. Vejo sua presença pública no Brasil como algo essencial para a preservação de uma lucidez profética e ao mesmo tempo espiritual. Em todo o meu trabalho acadêmico e na vida de cada dia encontrei inspiração profunda nos escritos e no testemunho de Betto. É para mim o espelho para uma vida digna e com sentido, particularmente a sua ampla e rica visão espiritual, que nos convoca a viver a experiência do Mistério no solo da realidade. É muito bom celebrar essa vitalidade de Betto, agora nos seus oitenta anos.



Chico Alencar 
 Ele me alertou: "temos, todos, defeitos de fabricação e prazo de validade". Mas à essa incompletude e finitude opôs a humana grandeza: "nossa sede de plenitude é fome de pão e de beleza".
Ele se diz, como cristão, "discípulo de um prisioneiro político, torturado e morto pelo poder político do Império Romano e pelo poder religioso de Israel".
Lembra também que "para falar com Deus é preciso, sobretudo, estar aberto para ouví-Lo - e Ele, com sua sinfonia universal, nos fala de muitas maneiras"
Ele afirma sempre que "não há 'pobres', mas pessoas empobrecidas, resultado da injustiça social".
Ele - pregador, cozinheiro, intelectual despojado, autor de mais de 70 livros, militante (nunca "militonto") das boas causas, místico, vida simples - reitera que "sem utopia a vida perde sentido".
Ele se chama CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o FREI BETTO, amigo de décadas, irmão de fé, brasileiro do mundo, semeador de esperança.
FREI BETTO COMPLETA 80 ANOS DIA 25, DOMINGO: CELEBREMOS!






Frei Betto, 80 anos de um pacificador

É preciso comemorar o humanismo do jornalista, escritor e religioso em tempos de guerra, violência e fome

São Paulo (SP) |
 
Frei Betto com estudantes de medicina brasileiros e colombianos em Cuba, durante homenagem recebida em Havana - Brasil de Fato

Em uma época que os programas de reality shows produzem influenciadores de todo tipo, redes digitais fabricam pseudopolíticos e as pessoas idolatram seres inventados por inteligência artificial, é indispensável lembrar de figuras humanísticas, sob pena de perdermos a conexão com nós mesmos. Frei Betto será aqui homenageado por seus 80 anos, completados neste domingo, dia 25. Só um fato de sua biografia já justificaria o tributo. 

Você conhece alguém de qualquer nacionalidade que tenha mudado a Constituição de um outro país?  Sempre faço essa pergunta quando o assunto é ele. E mais. Fez isso em nome da paz. É curioso que o Brasil não dignifique esse feito. Um ex-integrante da Aliança Libertadora Nacional, a mais famosa organização de luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira, empenhou-se sempre em levar a paz a todos os povos. Depois de publicar “Fidel e a religião” (1985), best-seller em 33 países, o escritor mineiro conseguiu dobrar o comandante da revolução cubana, o partido comunista e cravar na Carta Magna revolucionária que Cuba seria, dali para a frente, um país laico. 

Mais do que a liberdade de culto, Frei Betto garantiu ao povo cubano a paz em meio a tanta guerra religiosa e foi convidado por diversos países para convencer dirigentes socialistas que fé e política deveriam andar separadas em nome da harmonia. É uma falha da comissão de prêmios relevantes em nome da Paz, como o Nobel, nunca ter valorizado a sua obra pacifista. Em seu livro “Paraíso perdido, nos bastidores do socialismo”, ele conta como foi árdua essa empreitada e como enfrentou resistências na Igreja para, simplesmente, pregar a paz. Garantir, não importa a ideologia política, a santa laicidade do Estado. 

Leia mais em:  https://www.brasildefato.com.br/2024/08/25/frei-betto-80-anos-de-um-pacificador

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