sábado, 27 de julho de 2013

País mudo não muda!

Chico Alencar - Professor de História e Dep. Federal Psol- RJ

País mudo não muda
As manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras mexem com as categorias tradicionais de análise. Tudo o que se elabore a respeito será insuficiente, pré-texto que é também pretexto para justificar o não entendimento completo desse contexto singular. A régua usada para medir movimentos anteriores não é adequada para avaliar os atuais, que “não têm CNPJ”. Uma boa embocadura é fazer considerações a partir do que diziam alguns cartazes que os milhares de manifestantes, na sua maioria jovens, portavam:
“O gigante acordou”? A história brasileira registra manifestações massivas e explosivas de caráter urbano. Em 1890, ainda no II Reinado, o Rio de Janeiro agitou-se por dias seguidos, em reação da população contra o aumento de 20 réis na passagem dos bondes. Portanto, tanto o ‘gigante’ já acordou antes quanto é possível que volte, agora, a adormecer – sedado pela inorganicidade dos protestos e pela sua extrema diversidade, reflexo de uma sociedade que, historicamente, tem mais estadania do que cidadania. Que os conservadores não se sintam aliviados, porém: seu sono será leve, assombrando com a possibilidade de acordar a qualquer momento. Há setores sociais novos, apelidados de ‘classe C’, que parecem ter chegado ao limite de sua estimulada capacidade de consumo. Agora, engarrafados nas ‘carrocracias’ urbanas, no sufoco da especulação que aumentou violentamente os preços dos aluguéis e dos imóveis, sem planos privados de saúde e possibilidades de pagar escolas particulares, clamam por serviços públicos de qualidade.
“Não é por centavos, é por direitos”. A questão das tarifas foi a faísca que incendiou uma planície de insatisfações até então conformadas. A repressão policial adicionou combustível e demandas reprimidas de diversos setores provocaram o incandescente protesto “contra tudo o que aí está”. A irritação cotidiana com a péssima mobilidade urbana do país – segundo o IBGE, apenas 3,8% dos nossos 5.567 municípios têm Plano Diretor de Transportes, embora 74% deles possuam estrutura administrativa/burocrática para o setor – criou caldo de cultura que engrossou os protestos. Mais que em busca de negociação, os atos eram de rebeldia: não demandavam das autoridades que as recebessem nem constituíam comissão representativa para este ‘diálogo’. É como se a multidão clamasse: ‘quem quiser nos ouvir, que ouça!’. As manifestações multitudinárias de junho estão tendo um efeito-demonstração: de lá para cá, milhares de pequenos movimentos reivindicatórios eclodiram ou se reanimaram.
“Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”. Estádios suntuosos foram reformados ou construídos pelo consórcio negocista Fifa-Governo Brasileiro-Parlamento – que aprovou a Lei Geral da Copa e o Regime Diferenciado de Contratações de Obras Públicas, dando arcabouço jurídico ao empreendimento. As arenas faraônicas cumpriram papel pedagógico, ao demonstrar que recursos existem, que prazos podem ser cumpridos... e a falta de critérios no uso do dinheiro público, que não chega para escolas e hospitais. O “padrão Fifa” que se reclama, por óbvio, não é o da gestão da entidade, com tantas denúncias de corrupção.
“Fora todos os governos”. A tônica personalista da política vigente levou a uma contradição: há 3 meses, a aprovação ao desempenho dos governantes – no plano federal e estadual – já contrastava com a avaliação das políticas públicas de saúde, educação, segurança, moradia e trânsito, de tendência claramente negativa. Nas ruas, o repúdio era contra os partidos, pois, no senso comum, nenhum presta. Pesquisa recente revela que 81% dos consultados os consideram corruptos, sem exceção. E também contra a péssima qualidade dos serviços públicos e contra os meios de comunicação de massa, com seu noticiário interessado. Tudo foi posto em questão por uma geração que não conheceu o PT contestador e sim o do poder. Que não viveu qualquer polarização política, mas sim o avassalador processo de ‘peemedebização’ e despolitização da política, com sua devassidão ética, azeitada máquina de captar votos e voracidade de ocupação de espaços.
“Não adianta rugir como um leão e votar como um jumento!”. Aqui há uma mediação com a democracia representativa tradicional, chamando a atenção do próprio cidadão eleitor: ele também é responsável pela degradação do sistema político, ao não dar um voto consciente nem acompanhar a vida pública. Os muito interessados na política de negócios prevalecente são alimentados pelos muitos “analfabetos políticos”, pouco interessados nessa dimensão essencial da existência. O sistema partidário-eleitoral em vigor, fulanizador, excludente, marqueteiro e fisiológico, favorece a captação de sufrágio e a eleição de pessoas sem o menor espírito público, a despeito das leis que criminalizam a captação de sufrágio e tornam inelegíveis os ‘fichas-sujas’.
Saí do Facebook!” A maior novidade é a articulação em rede saindo da telinha para a vida real: ‘o post nos libertará!’. Nunca na história desse país houve tamanho “enxameamento viral”, de uma certa forma mais ‘social’ que ‘político’, e que tende a ser não contínuo e crescente, mas intermitente, como um ‘foco guerrilheiro pós-moderno’ que surpreende o poder com ações ousadas, exemplares, e depois recua – sem sequer saber da existência do manual do velho Che e das estratégias do general Giap... As manifestações revelavam um desejo difuso de participação, de cada um ser ator de sua história – de certa forma, cada um sendo sua própria manifestação. No contexto ideológico do hiperindividualismo capitalista em que vivemos, muitos, inteiramente à margem de partidos, sindicatos, grêmios e associações, levaram demandas a partir de sua percepção pessoal, coletivizando-as em sua debutância militante, colocando-as na cena pública.
“Penso, logo não assisto”. As redes sociais confrontaram as redes empresariais e seus grupos restritos, monopolistas. A mídia direta polarizou com a mídia tradicional, embora venham desta – especializada, por dever de ofício – a maioria das intensas e diversas informações que circulam nas redes. Inegável que a internet promove uma democratização dos meios de comunicação, abalando a força indutora da mídia grande, questionadíssima em todas as manifestações. Não por acaso está montada uma rede de espionagem, a partir dos EUA, para o controle destas informações, além de, em alguns países, a internet ser rigorosamente controlada e restrita. Nas passeatas, a cobertura das TVs foi hostilizada a ponto de seus repórteres terem que ir sem a canopla dos microfones com as logomarcas de suas empresas. Tão questionada como os partidos, a mídia grande comercial, por óbvio, pouco destacou esse aspecto dos protestos. Mesmo os jornais impressos, muitos pertencentes à mesma rede de comunicação, não noticiaram essa forte contestação. Fundamentalismos religiosos também foram fustigados.
“Quem luta, conquista”. Revelando a força da pressão direta da praça sobre os palácios – antiga proclamação das esquerdas -, as manifestações já produziram resultados concretos, tanto em ações do Poder Executivo (redução de tarifa para 70% da população de cidades grandes e médias e anúncio de projetos para melhorar a mobilidade urbana), do Legislativo (acelerando-se a aprovação de matérias que tramitavam em passo lento) e mesmo do Judiciário (prisão de um deputado ladrão). As diferentes tribos sem tribunos, ocupando os espaços centrais das cidades, constituíram uma original e multifacetada tribuna popular. Disse, sem dizer, que democracia é mais que votar. A antiga cultura participativa da qual emergiu o PT negou o ‘mestre’ hoje acomodado. Quem tem a obrigação de decodificar e formular políticas públicas a partir das demandas necessariamente difusas – e, aqui e ali, confusas – são os agentes políticos que se assumem como tais ou estão mandatados para tanto. A cidadania aponta os problemas, com a autenticidade de quem os sofre na carne e na alma. Resolvê-los é tarefa dos que são pagos por ela para esse serviço, que é político e técnico. Desafio grande para quem andava tão blindado contra as massas, só consideradas como de manobra nos anos eleitorais.
“País mudo não muda”. Só o prosseguimento das manifestações tirará da inércia os paquidérmicos Poderes da República. Ao contrário de alguns outros movimentos, no Brasil e no mundo, não há aqui, até o momento, formulação de tomada de Poder, e sim seu questionamento radical. Semelhante ao ‘Ocupa Wall Street’, aqui se enfatiza mais o que não se quer do que o que se quer. A ocupação dos espaços públicos por multidões manifestantes – multiclassistas, destaque-se – questiona a lógica do poder que passa pelo controle do território, proclamado como ‘dever de manutenção da ordem’. Reivindicantes/protestantes presentes e visíveis alteram a natureza da tradicional ‘impotência’ das massas frente ao poder estabelecido. Esse autoempoderamento abre a possibilidade estimulante de se estar fazendo história. Para Manuel Castells, sociólogo estudioso da sociedade em redes, “é o caos criativo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade: a direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados...”
“Sem partido!” A este reiterado brado, a reação foi a afirmação, correta, de que sem partidos não há democracia. É imprescindível entender, porém, que os partidos não são mais a única forma de representação da sociedade, e andam cada vez mais dissociados de suas vontades, seja por seu controle caciquista (prática dos da direita), seja por suas autofagias e baluartismos (costumeiros nos de esquerda). Aliás, os grandes partidos brasileiros – que sofrem de ‘nanismo moral’ – e os ditos ‘nanicos’, legendas de aluguel, também não querem aprofundar a democracia, com mais mecanismos de transparência e participação direta da população. Não seria exagero dizer que com esses partidos não há democracia! É verdade, por outro lado, que o vazio ideológico e a progressão, nos tempos atuais, da distopia, produzem ‘rebeliões do efêmero’, com uma espécie de solidariedade pós-moderna eventual, com o compartilhamento de reivindicações particularistas. Jovens representantes da Federação Anarquista, por outro lado, costumam lembrar a bela consigna “povo forte não precisa de líderes”. Frase de Emiliano Zapata, principal líder da Revolução Mexicana do início do século passado... “Podemos ser qualquer pessoa, as pessoas se apropriam das suas próprias lutas, não precisam ficar esperando alguém dizer o que fazer”, disse Mayara Vivian, que é da coordenação do organizado Movimento Passe Livre de São Paulo. Alguma forma de organização e liderança, ainda que mutante e rotativa, é necessária.
“Vândalo é o Estado”. A sociedade de massas e as grandes metrópoles estimulam mentalidades competitivas e comportamentos de forte tom agressivo, como se vê diariamente nas discussões de trânsito. A tensão urbana explode com frequência, sem controle racional possível. É fato que as manifestações, quase sem exceção, possuíam uma ‘cauda envenenada’ que reunia desde jovens no limiar da marginalização – no Brasil, cerca de 24 milhões entre 15 e 25 anos estão fora da escola e do mundo do trabalho – até os ditos mais politizados, defensores da ‘ação direta e violenta contra os símbolos do estado’, entre eles anarcopunks e ‘blacks blocs’. Chegavam encapuzados e com artefatos explosivos de fabricação caseira em manifestações pacíficas que clamavam por transparência. Sua disposição era de brigar com a polícia. Esta, despreparada e militarizada, vendo em todos o arcaico “inimigo interno” dos tempos da Guerra Fria, vinha disposta a, sendo fustigada, atacar tudo e todos, sem critério e economia de bombas, gases, cassetetes. A repressão inaudita das PMs foi, sem dúvida, um fator de crescimento das mobilizações, como protesto contra a violência estatal. E o vandalismo do abandono de equipamentos públicos, sobretudo nas periferias, e da subtração de recursos, que a corrupção estrutural realiza, foram constante e corretamente denunciados.
“Se vocês não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”. A propósito, Slavoj Zizek, em visita ao Occupy Wall Street (Liberty Plaza, Nova York), em 2011, alertava: “Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. (...) O verdadeiro teste do seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida cotidiana será modificada. Apaixonem-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. (...) Há um caminho longo pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis, questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que queremos.(...) Qual organização pode substituir o capitalismo vigente? Que tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem. (...) O problema maior não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a ser corruptos. (...) Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, tentarão transformar isso aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades caritativas ou comprar cappuccino da Starbucks, que reverte 1% da renda para os pobres do Terceiro Mundo, seria suficiente para nos sentirmos bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nosso engajamento político seja terceirizado – mas agora nós o queremos de volta! (...) Quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os EUA são uma nação cristã, lembremo-nos do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos! Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação. Sim, somos violentos no sentido em que Mahatma Gandhi o foi. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam. Mas o que significa essa violência simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento do sistema capitalista global? Em breve seremos chamados de perdedores. Mas os verdadeiros perdedores não são os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos EUA já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações financeiras e imobiliárias que levaram à queda de 2008 extinguiram mais propriedades privadas obtidas a duras penas – pense nas moradias hipotecadas – do que se estivéssemos as destruindo agora, dia e noite.”
Não tenho hospitais, não tenho escolas, não tenho transporte... E não tenho mais paciência também!”. No Brasil, a degradação da qualidade de vida das pessoas, sobretudo nos grandes centros, tem raízes estruturais. O chamado “inferno urbano” não se explica simplesmente por razões demográficas e imediatas, setoriais. Segundo o economista Reinaldo Gonçalves, o modelo liberal periférico, que a década do lulopetismo não reverteu, implicou “um país ‘invertebrado’, com a perda de legitimidade do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e das instituições representativas da sociedade civil (partidos políticos, centrais sindicais e estudantis, organizações não governamentais...) Trata-se de um social-liberalismo corrompido por patrimonialismo, clientelismo e corrupção e garantido pelo ‘invertebramento’ e pela fragilidade da sociedade civil”. Gonçalves lembra o crescente endividamento das famílias pobres e de classe média como fator de inquietação social, no contexto econômico de liberalização, privatização, desregulação, dominância do capital financeiro, subordinação e vulnerabilidade externa estrutural: “a distribuição limita-se à redistribuição incipente da renda entre os grupos da classe trabalhadora de tal forma que os interesses do grande capital são preservados; não há mudanças na estrutura primária de distribuição de riqueza e renda no que se refere aos rendimentos da classe trabalhadora versus renda do capital”.
“Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”.
A multidão produz uma sensação de força que pode se tornar tão generosa quanto... pretensiosa. Não se muda o país sem o enfrentamento, por exemplo, da questão da dívida pública. Ela comeu 44% do Orçamento da União em 2012 (R$ 753 bi), enquanto a Saúde recebeu 4% (R$ 71 bi) e a Educação 3,3% (R$ 57 bi). Transportes ficaram em 0,7%, Segurança 0,39% e Habitação 0,01%. Para este ano de 2013, o valor a ser pago em juros e amortizações da dívida subirá 20%, para gáudio dos grandes rentistas do capitalismo financeirizado. As mudanças só serão estruturais e não cosméticas com um novo paradigma de modelo econômico, e as consequentes Reformas Tributária, Administrativa e Política. A questão ambiental, tão crucial, não estava significativamente representada nas ruas. Sem isso, o transtorno não transforma. E o que alguns proclamam como revolução será apenas pontual irrupção.

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