Lula III inaugurou-se sob crença infantil de que ricos também se preocupam com a democracia – faltou questionar se em sua “democracia” há espaço para o PT
PEDRO MARINRevista Opera - 11 de junho de 2024 - às 18:58
25.05.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de liberação das vias marginais no trevo de Bonsucesso e inauguração do trevo da Jacu-Pêssego, na Rodovia Presidente Dutra. Guarulhos – SP. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Uma das características distintivas do Brasil é o fato de ter se desenvolvido, por mais de quatro séculos, sob um esquema de baixíssima intensidade de participação política. A escravidão, o analfabetismo, a imensidão do País, o caráter dependente de seu desenvolvimento – e, portanto, o fato de ter sua produção primarizada e voltada para fora –, a repressão direta e indireta à participação política e o projeto de deseducação de seu povo são todos temas que se ligam a esse fato, que poderia ser traduzido numa frase: na longa trajetória histórica, o povo brasileiro teve sua organização restringida, e daí decorreu um País cujo espírito não pôde se manifestar na arena política – ou, de outra forma; um País cujo espírito foi a negação dos anseios de seu povo.
Essa baixa participação política, no entanto, não pode ser entendida simplesmente como uma “deformação natural” ou uma “deficiência” do processo civilizatório brasileiro. Como Darcy Ribeiro bem resumiu em seu Sobre o óbvio, tratou-se de uma façanha espetacular de nossas classes dominantes, que fundaram “um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida”. Diz ele: “[…] Já não há como negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha classe tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este projeto, para ser implantado e mantido, precisa de um povo faminto, chucro e feio. Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para subjugar o povo faminto no trabalho, como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com subalternos […]”.
Houve, certamente, luta. Darcy mesmo conta 50 mil mortos na repressão a revoltas anteriores e posteriores à Independência. Mas o surgimento de organizações políticas de monta, num País como o Brasil – com largo território, povos de origens diversas, e uma organização geoestratégica fundada no domínio da terra por vários felizardos individuais que tudo controlavam em “seus” espaços – dependeria de que nossas classes dominantes fizessem um esforço concentrado para estimulá-las, quando, de fato, fizeram um esforço sobrehumano no sentido contrário.
No Brasil, o surgimento de partidos nacionais, onde seu povo pudesse se organizar e mobilizar, dependeria, já de antemão, da abolição do escravismo; da ampla alfabetização do povo; de um surgimento mais livre de jornais e livros (estes foram obsessivamente controlados e proibidos); de uma ampliação da mobilidade dentro do País. Mas o sistema ferroviário brasileiro em 1889 só cobria 0,1% do País (9.583 km de ferrovias em uma extensão territorial de 8,3 milhões de km²); o sistema telegráfico era de 2 mil km² em 1870; o primeiro jornal, invenção de 59 a.C, só surgiria aqui em 1808, a censura prévia sobre a impressão só seria abolida em 1821, assim como o monopólio do governo sobre a impressão – medidas que não tinham tampouco efeito tão extenso, haja em vista que o analfabetismo era amplo; na época da Independência, era de 99%; em 1900, ainda atingia 65% da população, e a alfabetização de mais da metade da população só seria atingida nos anos 1950 (enquanto o direito ao voto do analfabeto só seria garantido a partir de 1985, após ser abolido em 1881); por fim, como é conhecido, a abolição só viria em 1888.
Estes dados todos ajudam a explicar porquê o nascimento de um partido político regular com vocação verdadeiramente nacional no Brasil só viria em 25 de março de 1922, com a fundação do Partido Comunista. Regular porque, antes disso, havia o Exército; o primeiro com vocação verdadeiramente nacional porque, excluindo-se o Partido Fardado, a organização partidária vigente até então era fundamentalmente regional, estadual, e, ainda, restrita às oligarquias agrárias, a setores da burguesia emergente e à burocracia.
É importante notar que o Partido Comunista viveria a maior parte de sua trajetória na ilegalidade, sendo continuamente reprimido. Por outro lado, o segundo partido de massas e nacional surgido no Brasil, a Ação Integralista Brasileira (AIB), teria o seu caminho franqueado pela legalidade, podendo aumentar consideravelmente seu contingente de membros, em franco conflito com o Partido Comunista, até ser finalmente extinto em 1938, em função das intentonas integralistas de março e maio.
Assim, só é possível falar de partidos nacionais institucionalizados no Brasil a partir de 1945: ainda assim, dos 32 partidos constituídos à época, só eram efetivamente nacionais a conservadora UDN, de alguma forma de massas, reunindo as classes médias, os militares e setores da burguesia nacional, e com projeto associado ao imperialismo norte-americano; o PTB, reunindo a herança mais progressista do varguismo, as massas trabalhadoras e setores da pequeno-burguesia e burguesia nacionais; e o PSD, também descendente do varguismo, mas de corte mais liberal, com baixa inserção de massas, formado por burocratas ligados às intervenções pós-Revolução de 30, e representante acima de tudo de setores industriais da burguesia nacional.
É importante notar que toda essa surgente organização partidária é destruída com o golpe militar de 1964. Com a impossibilidade de fazer frente ao varguismo no âmbito partidário-eleitoral, as classes dominantes decidem por outra estratégia: o golpismo. Os líderes partidários derrotados pelo varguismo (em suas duas faces, o PSD e o PTB) desde 1945, por sua vez, vêem no movimento a oportunidade de “limpar o campo” para si. Acabam sendo também limpados do campo: nem o PTB e PSD, nem a UDN, se recuperariam do golpe.
Logo se vê, portanto, a razão de Darcy: mesmo superada a etapa colonial e monárquica, já sob a República e em meio à modernização industrial, as classes dominantes no Brasil só permitiriam que os partidos nacionais e de massa se desenvolvessem pelos breves 19 anos que vão de 1945 a 1964.
Na saída da ditadura, há uma proliferação de novas organizações. Somente entre 1979, ano da Lei Orgânica dos Partidos, e 1990, 20 organizações surgem no Brasil. Mas a fragmentação partidária tampouco foi um acidente; tratou-se uma estratégia do regime militar, sob quem a nova organização partidária brasileira surgira, para garantir uma transição segura.
Do início da Nova República até os dias de hoje, as características de longa duração da organização partidária brasileira se manteriam na maior parte dos partidos: 1 – baixa inserção nas massas; 2 – baixo nível de identificação partidário-ideológica no povo em geral e até entre seus membros; 3 – escassa inserção nacional; 4 – alto comprometimento pragmático-institucional, pouco comprometimento ideológico; 5 – alta dependência de figuras individuais.
Dos partidos ali surgidos até tempos recentes, o único que escapará dessa conformação é o Partido dos Trabalhadores. Trata-se do segundo maior partido em número de filiados, o mais pujante em termos de identificação partidário-ideológica, o mais avançado em termos de inserção nacional: o único grande partido surgido na Nova República que, do Oiapoque ao Chuí, conta com uma ampla base militante, comprometida e identificada com o partido, mais ou menos identificada com um programa mínimo (embora este seja constantemente rebaixado).
Tão poderosa é essa organização na trajetória brasileira que, assim como o PTB varguista, sua tentativa de destruição levou não só à sua derrota (no caso do PT, momentânea), mas também à destruição da oposição que a organizara: no pós-golpe de 2016, o PSDB desapareceu (foi de 54 deputados em 2014 para 29 em 2018, chegando a 13 hoje), e o MDB encolheu (66 assentos em 2014; 34 em 2018; 42 hoje). Também tal qual no passado, sua tentativa de destruição trouxe de volta à cena política o primeiro partido nacional brasileiro – o irregular Partido Fardado.
O PT, no entanto, não foi capaz de superar a dependência da organização de uma figura individual (Lula), e nos últimos anos, na medida em que avança no seu comprometimento pragmático-institucional, borra e enfraquece o seu engajamento ideológico.
A inovação da atual fase histórica, com o bolsonarismo, não é que haja um movimento de extrema-direita de massas no Brasil – isso o integralismo foi – mas sim que este tenha, ao mesmo tempo, uma forte inserção institucional, e que seja suficientemente descentralizado e amplo para abarcar diversos partidos ou candidatos individuais, impactando o cenário político como um todo sem se comprometer com as limitações que a organização partidária impõem. O bolsonarismo é mais massivo do que foi a UDN, mas muito mais flexível do que foi a AIB; efetivamente, trata-se de um movimento que disputa hegemonia num sentido gramsciano, tal qual fizera o PT nos anos 80 – em outras palavras, é um movimento com constante inserção em grupos sociais diversos, com a capacidade de pô-los em movimento, organizando-os como uma força mais ou menos homogênea, sem no entanto comprometê-los com uma hierarquia rígida.
Estas considerações todas são fundamentais na conjuntura atual: capaz de resistir à sua tentativa de destruição, o petismo reemergiu em 2022, com a missão declarada de reconstituir o ideário da Nova República. Sua estratégia foi tentar recompor com as forças características daquele período político por meio da frente ampla, sem se dar conta de importantes diferenças conjunturas e de alguns problemas que a estratégia impõe: primeiro, que a própria conjuntura do início da Nova República, e as organizações políticas nela inscritas, estavam influenciadas pela disputa hegemônica das esquerdas, capazes então não só de mobilizar o consenso, como também sua força – é notável, por exemplo, que no mesmo ano que o Brasil elegia Collor, também criava o SUS, por meio de uma longa trajetória de lutas (hoje o Brasil elege Lula e avança na privatização e precarização da saúde); segundo, que hoje há a extrema-direita a mobilizar o binômio gramsciano, influenciando, portanto, todas as outras forças políticas, tanto mais quando não limitada pela forma partido – isto é, há anos as ruas e a disputa ideológica nas bases deixaram de ser monopólio das esquerdas; terceiro, que a hegemonia novo-republicana, do ponto de vista das classes dominantes, não era a composição por elas desejada, mas a possível naquele período histórico, e que o objetivo dessas classes dominantes sempre foi superá-la, em especial no que toca aos aspectos sociais da Constituição de 1988; quarto, que desde o período colonial até a ditadura, conter o surgimento de partidos nacionais massivos sempre foi o sonho das classes dominantes. Assim prosseguem elas, “quase sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com subalternos”.
No afã de barrar o bolsonarismo, o governo Lula III parece ter se inaugurado sob a infantil crença de que as classes dominantes também se preocupam com a democracia. Só faltou questionar-se qual democracia “os nossos senhores empresários, doutores e comandantes” pretendiam defender, e se mesmo o PT cabe nela.
Já está evidente: não cabe. No que tange à economia, o governo Lula até aqui não arranha sequer no verniz o modelo neoliberal, mediando cada boa nova ao povo com uma chuva de boas notícias ao capital (Desenrola, Minha Casa Minha Vida, Novo PAC) e em muitos casos só diferenciando sua agenda da Ponte para o Futuro de Temer no que se refere a uma maior efetividade do governo petista em aplicá-lo (Arcabouço Fiscal, Plano Safra recorde). As medidas mais corajosas foram interromper o processo de privatização de oito importantes estatais, ainda em janeiro de 2023, sem no entanto tocar no que foi privatizado; a breve pressão sobre a taxa de juros no início do governo; a aprovação da taxação dos fundos exclusivos (cinicamente propagandeada pelo governo como uma “taxação dos super-ricos”). A tão comemorada Reforma Tributária só mirou, até agora, a simplificação, sem tocar na injustiça tributária que sobretaxa os pobres via consumo. Ainda assim, nas colunas econômicas dos jornais, a sensação alardeada é que trata-se de um governo demasiadamente esquerdista e gastão, às portas de levar o Brasil ao caos econômico.
Não sendo essas entregas suficientes para acalmar as classes dominantes, o governo concede também na arena política. Além da amplíssima frente estabelecida já na posse, efetivamente foi o governo, em especial por meio do ministro Múcio, que avançou a anistia política às Forças Armadas, que, tal como planejaram, limparam suas fardas da lama e do sangue por sua associação ao governo Bolsonaro e por seu golpismo latente (manifestado antes, durante e depois de Bolsonaro, vale recordar). O 7 de setembro não foi mais que um evento de relações públicas a favor dessa limpeza (o lema: “Democracia, soberania e união”); o governo, depois de insistir que não faria GLO, fez uma GLO que “não é bem uma GLO”; e Lula pessoalmente se envolveu no negacionismo militar, ao vetar cerimônias sobre o 60º aniversário do golpe e declarar que “não vai ficar remoendo” a história. No Congresso, dobra-se completamente ao Centrão, sem mediar as necessárias concessões com pautas de seu interesse e chamamentos à pressão popular – pelo contrário, no geral concede para aprovar medidas de ortodoxia econômica, e agora se fala até em só tratar dessas pautas, para evitar derrotas como a imposta no tema das “saidinhas” de presos. Na comunicação, reserva as maiores verbas a quem o fustiga e chama o silêncio e a covardia de republicanismo: em nenhuma das quatro ocasiões em que falou em Rede Nacional (1 de Maio de 2023, 7 de setembro de 2023, Natal de 2023, e Dia das Mães de 2024) comprou qualquer enfrentamento ou fez qualquer conclamação por mobilização; em todas elas, o tom foi o de propaganda de margarina. Isso apesar das oportunidades que a intentona de 8 de janeiro, as revelações sobre a participação de militares no golpismo e a tragédia no Rio Grande do Sul ofereceram.
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A extrema-direita já fala em impeachment; a “direita tradicional” já busca sua sempre desejada terceira via, em fórmulas esdrúxulas como “bolsonarismo moderado”. Convém lembrar que mesmo quando a disputa ficou entre o hoje aplaudido ministro da Economia, Fernando Haddad, e o capitão Bolsonaro, a opção das classes dominantes – ainda que reconhecendo-a como uma “escolha muito difícil” – foi pelo segundo.
Na história brasileira, Lula III é um governo de transição: não é improvável que seja o último com Lula à frente. Não trata só do País durante este quatro anos; carrega também o futuro do PT, e com isso o destino do único grande partido nacional e de massas do Brasil. Tudo constante, as classes dominantes manterão boas opções para cumprir o objetivo histórico de destruí-lo: o mais arriscado e draconiano impeachment, improvável mas não impossível; a imposição do parlamentarismo, sonho molhado dos ricos efetivado em 1961 e derrotado um ano antes do golpe de 1964; ou simplesmente a eterna aposta na “terceira via”, hoje abarcando até governadores sanguinolentos como Tarcísio – nossos ricos não têm restrições democráticas quanto às execuções sumárias na Baixada Santista ou sobre a militarização do ensino público, embora tanto esforço façamos para incluí-los em nossas “frentes pela democracia”.
Com o que vem apresentando até aqui, o governo Lula não só deixa estes três caminhos bem abertos à preferência das elites; também as assegura de que acabará sem meios para enfrentar qualquer um deles.
(*) Pedro Marin é editor-chefe da Revista Opera. É autor de “Aproximações sucessivas – o Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III (Escritos: 2019-2023)”.
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