parte 2
Há quase exatamente um ano escrevi a primeira parte deste
artigo, que terminava prometendo uma sequência. Aquele primeiro texto[1] tratou
basicamente – e muito sinteticamente – da trajetória, até a falência, do modelo
de organização do público de cinema que se constituiu sob a denominação
prevalente de cineclube. Começava citando o Holoceno, procurando a origem e
evolução da ideologia, do preconceito, do elitismo, para chegar à cinefilia e
ao culto do cinema de autor, com o que se confundiu essa visão preponderante de
cineclube. Considerava ainda que, mesmo com um sentido predominantemente
elitista, os cineclubes tiveram papéis significativos e positivos em diversos
contextos históricos específicos. Papéis que, no entanto, acabaram por se
estiolar, tornando-se apenas um reflexo, uma alusão simbólica
descontextualizada, uma forma cultural residual, como já descreveu Raymond
Williams[2] ou, em nosso país, como atividade acadêmica extracurricular. Finalmente, refletia que se o cineclubismo,
em sua concepção dominante, praticamente nunca soube superar seu caráter
subalterno às classes dominantes, no Brasil tampouco a classe trabalhadora foi
capaz, com pouquíssimas exceções, de desenvolver formas organizacionais para se
apropriar dos sentidos produzidos pelo cinema. O texto tem, portanto, um tom
que poderia ser confundido com uma espécie de pessimismo. Não se trata disso,
porém: aquela foi uma introdução, de certa forma, às considerações que se
seguem (e que já expus, de alguma maneira, em outros textos). Nesta segunda
parte vou, então, procurar uma “argumentação propositiva”, como já havia
anunciado naquela ocasião.
Cineclubes
Se concebemos cineclubes como formas de organização do
público e não apenas como “clubes de cinema”, no sentido de que sua atividade
se constitui exclusivamente em torno do cinema, então, na maior parte da
história dessas organizações elas não tiveram o nome de cineclube. Palestras e
debates em torno de projeções de lanternas mágicas antecedem até mesmo o
cinema, pois eram uma parte crescentemente importante das atividades culturais
e educativas das organizações de trabalhadores, de comunidades religiosas e das
classes médias desde o século 19. No início do século passado, essas atividades
– agora com o cinematógrafo – foram se tornando mais autônomas, constituindo-se
como associações, com sedes e locais próprios. Mas, embora o termo cineclube já
tivesse sido usado pelo menos em 1907[3], essas organizações praticamente nunca
o empregavam: houve o Cinema dos Trabalhadores, em Los Angeles (1911); o Cinema
do Povo, em Paris (1913); a Associação para a Imagem e a Palavra, em Dresden
(1912) ou o Clube Cosmos para a Cinematografia Científica e Artística (1913),
em Viena, entre muitos outros exemplos[4]. Uma quase exceção seria o Cinema do
Club dos Democratas[5] (1912), de Sobral, Ceará, cujo jornalzinho se chamava
Cinema Club[6]. A própria ideia de cinefilia, tal como passou a ser entendida
depois dos anos 20, não existia ainda. Na França, muitas vezes identificada
como berço do cineclubismo, a maior parte das iniciativas ditas educadoras (ou
educacionais, ou educativas) com o cinema, desde a segunda década do século,
eram chamadas de ofícios (escritórios, oficinas ou núcleos) de cinema
educador[7]. Precedem os cineclubes (palavra que só começou a se generalizar a
partir dos anos 20) e sempre constituíram a maioria dos grupos organizados em
torno do cinema naquele país[8]. Com a constituição da União Soviética,
milhares de grupos se organizaram, ligados ao processo então denominado de
cineficação[9], dentro dos clubes de trabalhadores. Também no movimento
internacional de solidariedade com a Revolução surgiram, dos EUA ao Japão, as
chamadas Ligas de Cinema dos Trabalhadores[10] – e, em Paris, o famoso Clube
dos Amigos de Spartacus[11] (1928).
Mas este texto não é sobre a trajetória do termo. É
indiscutível que o conceito genérico, e atualmente bastante impreciso de
cineclube, tornou-se hegemônico mundialmente, especialmente depois da 2ª.
Guerra Mundial. Do seu sentido original, no entanto, que descrevia uma
associação em torno do cinema, atualmente restou apenas a ideia de projeção
seguida de debate. Esse sentido, mais de ação do que de organização, prevalece
particularmente no Brasil. Mas em todo o mundo o cineclubismo, junto com o
próprio cinema, perdeu protagonismo social e cultural. Ainda existe em
quantidade relativamente significativa, mas bastante descaracterizado e isolado
socialmente, como exemplo de uma forma residual de cultura. Cineclubes agregam
especialistas (cinéfilos), diletantes, amadores ou fãs, como acontece também
com a ópera (hoje muito reproduzida nos cinemas), o balé e outras expressões
mais antigas de práticas sociais envelhecidas, descontextualizadas ou, de
diferentes formas, elitizadas.
Mídias
Mais do que a projeção de eslaides das lanternas mágicas ou
mesmo a fotografia, foi com o desenvolvimento do cinema que se inaugurou e logo
se consolidou toda uma nova maneira de ver[12], um novo regime escópico[13] na
história da humanidade. Acostumamo-nos a chamar o fenômeno de “imagens em
movimento”, mas logo ele agregou também palavras escritas e, pouco depois, o
som. Oriundas do cinema, tivemos ainda a generalização da televisão e,
atualmente, a ubiquidade dos sinais digitalizados, sua capilaridade em
aparelhos celulares, a fagocitose progressiva dos outros meios e formas de
expressão e comunicação. O capitalismo de vigilância[14], ou capitalismo de
plataformas[15], enfim, trouxe para o centro do próprio modo de produção a
reprodução técnica do real e a mediação entre produtores e consumidores através
das tecnologias digitais e audiovisuais.
Em seu auge, o cinema atraía milhões de pessoas, dezenas de
vezes por ano, às grandes salas de exibição. A televisão, em meados do século,
multiplicou várias vezes esses números, reinventando mediações e sentidos,
agregando diferentes espetáculos – de cena, como musicais e cômicos, esportivos
e variadas competições – e gêneros, como os telejornais, as sitcoms, as novelas
da América Latina, entre muitos outros. Mas a rede digital mundial transformou
tudo: do quantitativo ao qualitativo. Na linha de Adorno e Horkheimer[16], ou
de Zuboff[17], por exemplo, podemos dizer que praticamente a totalidade da
população do planeta está não apenas assistindo aos produtos da indústria
cultural, mas vive inexoravelmente conectada: recebe, produz (dados), se
comunica, compra, e é observada em tempo integral, no trabalho, nas ruas ou em
casa, e mesmo com certos aparelhos desligados. Os brasileiros passam mais tempo
(mais de 9 horas diárias) diante de telas – de tevês, celulares e outras – do
que em qualquer outra atividade. O resto do mundo não é muito diferente. Com os
modelos algorítmicos de organização e de distribuição de conteúdo, o conceito
de hegemonia – de dominação e consenso - ganha novos sentidos, prendendo os
públicos em bolhas que giram em torno de si mesmas, presídios kafkianos em
espaços virtuais. A chamada inteligência artificial generativa mimetiza o
processo criativo, desconstruindo, demolindo a noção de autoria. Os meios
audiovisuais digitais, entre os quais o cinema stricto sensu ocupa atualmente
um espaço relativamente pequeno, ainda que ancestral[18], não são mais, ou
apenas, uma forma de expressão ou comunicação: tornaram-se a principal mediação
das relações sociais, intrincando-se, confundindo-se com as relações de
produção, mesclando a superestrutura simbólica à base econômica produtiva.
Numa linha mais dialética, porém, herdeira de Certeau[19] e
Hall[20], essa situação produz também condições potencialmente transformadoras
em escalas inusitadas. A conexão planetária do público pode permitir a expressão
e comunicação entre todos, em escala sem precedentes. A generalização de
aparelhos audiovisuais polivalentes – que recebem, transmitem, produzem – é a
antessala latente da democratização radical da comunicação, o portão virtual da
transformação social.
Tecnologia
As tecnologias estão profundamente ligadas às transformações
sociais e históricas. Transformam o trabalho, que define o ser humano. Muitas
delas são parte essencial da própria evolução dos modos de produção, desde as
primeiras técnicas de agricultura até as formas de mecanização que ajudam a
compreender e periodizar as etapas do capitalismo. As tecnologias digitais já
permitem identificar uma etapa diferenciada do atual modo de produção, e ainda
estão, também claramente, em franca evolução. A relação entre tecnologia e
transformação social, contudo, não é direta, linear. A primeira pode servir
para incluir ou dominar, para alienar ou emancipar. Não produz mudanças
positivas nas relações sociais se não for apropriada pelo povo, acompanhada da
mobilização das classes trabalhadoras, da compreensão por parte destas da
oportunidade que, virtualmente, se abre para elas, e do papel que podem
desempenhar na promoção da superação das estruturas obsoletas e na criação de
novas instituições.
Penso que transitamos, neste momento, por essa oportunidade
histórica. Não vejo, entretanto, sinais de conscientização, de organização ou
de mobilização significativa entre a grande maioria da classe trabalhadora, nos
mais variados ambientes, e certamente não no Brasil. Esses “quesitos”, porém,
também não se constroem de maneira mecânica, mas dialeticamente: é na ação, em
que a organização tem papel central, senão indispensável, que se cria o tipo de
consciência que se constitui como verdadeira força material[21] da
transformação.
As tecnologias são o campo e o instrumento para isso. Como
foi dito, as mídias digitais audiovisuais são a principal mediação das relações
sociais, o objeto e a ferramenta indispensáveis para a construção de novas
práticas culturais, sociais e políticas nos meios populares do Brasil. A
verdadeira revolução que transformou - e ainda está transformando – a produção,
a circulação, a recepção, a preservação e a pedagogia dos e pelos meios
audiovisuais, encarna a oportunidade histórica de que já falei aqui. Os
equipamentos de produção e as plataformas de difusão, de interatividade e de colaboração
em rede, assim como todos os dispositivos e modos de recepção (inclusive o
presencial), são muito mais econômicos, eficazes e abrangentes do que em
qualquer outro período do nosso paradigma escópico. Nunca foram tão acessíveis
para alguma forma de organização para a qual convirjam os esforços de qualquer
comunidade popular, inclusive virtual.
Transformação social:
uma instituição audiovisual da comunidade e do público
Como já foi visto, o nome não é indispensável para
identificar a organização que quero propor aqui. Até mesmo cineclube pode
caber, dos radicais cine, de movimento – e não de cinema - e clube, no sentido
mais político, de associação, que ainda podem se aplicar às mídias
audiovisuais. O governo brasileiro, no início deste século, criou sua própria
denominação: ponto de cultura, inspirado nas técnicas milenares de estímulo de
pontos do corpo humano na medicina oriental. Mas tais nomenclaturas não têm
dito muito; o que mais carrega sentido no nome da iniciativa é sua
identificação com a comunidade que deve representar. Assim, vou trabalhar aqui
com a ideia de instituição audiovisual da comunidade e do público e com seu
acrônimo IACP, não como denominação de uso social, mas apenas para facilitar a
sequência do texto. Penso que, como tantas outras organizações do público, ao
longo da história, essas IACPs talvez tendam a adotar nomes identificados com
suas comunidades, seu território, seus símbolos, suas memórias.
Como já disse, é indispensável que essas IACPs incorporem as
duas dimensões que indico em sua “denominação”. Devem ser audiovisuais, isto é,
trabalhar com o conjunto das mídias que formam o dispositivo social de
comunicação contemporâneo, superando a aura que embasa os cultos atuais do
cinema, ou do filme considerado apenas como obra ficcional ou documental; do
chamado filme de autor, e mesmo do “cinema nacional”, tratado frequentemente
como uma espécie de identidade absoluta, acima de toda contradição, ou como um
eufemismo para a produção própria dos que promovem as exibições. E devem ser
comunitárias e do público, ou seja, integrarem em sua organização a
participação democrática dos públicos presentes nas diferentes comunidades –
territoriais, de trabalho, de gênero ou outras características comuns que
identifiquem grupos sociais, suas necessidades e interesses. Essas comunidades
de públicos organizadas em torno dessas identidades localizadas devem se
identificar, se integrar dentro do público em sentido mais amplo, na escala da
sociedade, como classe, como povo, como humanidade. Superando o histórico
elitismo, associado ao cineclubismo, e o isolamento – a estratégia do desterro,
de Hardman[23] -, vício de muitas iniciativas de trabalhadores no Brasil.
Partindo dessas duas dimensões – midiática e popular - um
componente essencial para a constituição dessa nova forma de organização do
público são os eixos de sua atividade: as necessidades que deve atender (e, até
certo ponto, criar) e os meios que deve disponibilizar. Isso se incorpora em um
projeto, um programa, que tem aspectos mais ou menos imediatos, sem perder a
perspectiva mais geral, estratégica. Esse projeto é condicionado por inúmeras
características e circunstâncias das comunidades em que se insere; desdobra-se,
portanto, necessariamente, no tempo. Ao contrário de um objetivo simplista,
eventual, voluntarista e efêmero como a projeção e debate de um filme, o tipo
de iniciativa aqui proposta– e que já está presente em algumas experiências, no
Brasil e em todo o mundo - varia enormemente segundo as condições em que se
implanta e se desenvolve em prazos estratégicos, longos, provavelmente de anos.
Não é uma ação: é uma organização. Não tem receita: seu perfil é o projeto, o
objetivo estratégico, que até pode mudar durante sua trajetória. Não é simples,
nem fácil, mas comporta a possibilidade ontológica de ser parte importante, até
essencial, da construção de uma sociedade radicalmente justa e democrática.
“... para construir a sua hegemonia, os grupos sociais
subalternos precisam se organizar, organizar a cultura, educarem-se, precisam
se tornar dirigentes. ... Para criar uma nova civilização, Gramsci considera
fundamental a organização da cultura, “[...] ampliando os meios para difundir
novas concepções do mundo que permitissem às classes subalternas tomar
‘consciência de si’, dos seus próprios fins e fazer sua história” (DORE,
2007).”[24]
Educação, formação e entretenimento da e com a comunidade[25]
através de todos os meios audiovisuais possíveis, sem excluir, eventualmente,
outras mídias e linguagens: publicações, teatro, dança, entre outras. Esses
três eixos constituem a essência de uma IACP, que atua nessas três dimensões,
as quais podem, com muita frequência, ser simultaneamente parte das práticas
desenvolvidas em torno das mídias audiovisuais: são capazes de, ao mesmo tempo,
educar, entreter e formar[26]. Além de congregarem públicos mais amplos, em
salas próprias para isso, podem e devem usar outras formas de reuniões
presenciais, em grupos menores e mais dirigidos (por seus interesses), em
espaços organizados de formas criativas e confortáveis. O material audiovisual
apresentado não deve absolutamente ser limitado ao filme – conceito fortemente
carregado da ideologia cinéfila, que o reduz a narrativas ficcionais ou ensaios
documentais. Mesmo o cinema nunca deixou de incluir a informação, o noticiário,
os esportes, os espetáculos e, enfim, as múltiplas contribuições de outras
mídias e linguagens que convergem para esse paradigma escópico que pode reunir
todos os outros, como queria Ricciotto Canudo[27] já em 1911. Com a televisão
e, sobretudo com a rede mundial audiovisual, novos “gêneros” e formatos de
expressão – blogues, podcasts e outros, sobre todos os assuntos possíveis, além
do grande campo dos videojogos - estão sendo criados, e constituem formas com
potenciais mal compreendidos, seja para a alienação ou para a emancipação. Seu
consumo, a apreciação, a crítica coletiva são indispensáveis para que não
prevaleçam apenas os sentidos de dominação que todas as mídias carregam. O
audiovisual, neste seu sentido mais pleno, é o novo objeto indispensável da
práxis crítica – para usar uma expressão redundante. A incorporação dos
públicos virtuais é outra necessidade absoluta. Assim, ao falar de “todos os
meios audiovisuais possíveis”, quero significar que o objeto da IACP, o que
define essa nova instituição, é exatamente esse: o audiovisual sob todas as
suas formas de criação, produção e recepção. As novas formas de expressão que
estão se desenvolvendo nos espaços virtuais nunca, ou quase nunca, se articulam
com estruturas, organizações coletivas concretas: apenas reproduzem a
iniciativa e o protagonismo individualizado, privatizado, monetizado pelas
plataformas, como uma espécie de empreendedorismo que se expressa na nefasta
ideia de “influenciadores”. A IACP é, também essencialmente, um projeto de
integração entre esses dois espaços: seu público, sua comunidade é presencial,
virtual e híbrida.
Uma organização coletiva, democrática e autossustentável.
Estes dois elementos: associativismo e sustentabilidade, constituem as grandes
diferenciações com as formas de atuação cultural predominantes hoje no Brasil.
Estas últimas raramente se organizam de forma democrática, inclusiva, em que a
assembleia de todos os membros[28] é a instância soberana de decisão, e com
renovação periódica e transparente de suas direções através da manifestação, do
voto, de seus participantes, associados – e não clientes ou alvos, plateia ou
objeto alegórico de suas atividades. E a autossustentabilidade, para além dos
recursos obtidos junto às inconstantes fontes governamentais – ou raros
patrocinadores privados -, tornou-se uma espécie de anátema no senso comum das
entidades comunitárias. Exceto quando, inspiradas pelo ideal do empreendedorismo,
organizam-se como empresas: nesse caso, podem cobrar e acumular, desde que para
a apropriação privada, e não pelo coletivo. De fato, é exatamente isso:
apropriação privada ou pela comunidade, que distingue uma iniciativa comercial
da organização sem fins lucrativos – e não a cobrança, de resto inescapável,
pelas ações desenvolvidas. A participação da comunidade em que uma IACP se
estabelece, sua adesão ao projeto e sua apropriação da instituição como parte
de sua identidade e projeto, medem-se, inclusive, por seu engajamento com a
sustentabilidade da IACP. Pagar ou contribuir financeiramente com determinadas
atividades implica no reconhecimento de sua necessidade, oportunidade e
interesse para a comunidade. Também tem o sentido de estabelecer uma responsabilidade,
uma apropriação, um poder coletivo sobre essas atividades – que não poderiam
existir de outra maneira (exceto se patrocinadas por forças externas à
comunidade), porque tudo tem um custo. A associação das pessoas à IACP,
inclusive com o pagamento de alguma taxa periódica, é o elemento final dessa
apropriação pela comunidade. E o estabelecimento de uma receita mais ou menos
estável é a pré-condição indispensável para o planejamento da evolução da
própria IACP. Inclusive permitindo a consolidação de colaboradores remunerados,
de diferentes formas, nas atividades que exigem tipos de dedicação mais
intensas ou prolongadas, sinônimo do crescimento e complexificação da própria
IACP, isto é, do seu sucesso. Esse processo estabelece, finalmente, uma condição
de pertencimento, ou seja, quando os membros da comunidade se reconhecem e se
identificam nas ações de sua IACP, e nela encontram motivação, autoformação e
satisfação[29].
Criação de espaços físicos e virtuais. A criação de espaços é
inseparável da própria ideia da organização. Um espaço sede é referência
essencial da instalação de uma iniciativa desse tipo dentro da comunidade. E
este espaço físico deve conter espaços dedicados a reuniões de trabalho e
estudo; de produção audiovisual (estúdio e equipamentos); de arquivo; de
congraçamento comunitário, com bar ou lanchonete, e um espaço maior, para
reuniões, e exibições para grupos maiores[30]. Um auditório maior é importante,
mas não indispensável – sobretudo inicialmente – e pode ser em local próximo,
inclusive através de parceria com outras instituições. Os espaços virtuais
também são indispensáveis, claro: pelo menos um canal na internet e aplicativos
para comunicação e participação do público e dos associados. Os videogames,
também, já que constituem uma nova forma de expressão e de entretenimento que
atrai enorme interesse do público.
Documentação audiovisual das atividades, personalidades,
eventos, e outros acontecimentos, até desastres, que fazem parte da vida
comunitária. Uma prática que é diretamente complementar à anterior. Essa
documentação inclui entrevistas, matérias videojornalísticas com personalidades
relevantes na e para a comunidade: suas realizações, modo de vida e outros
aspectos. Também envolve a documentação das atividades da comunidade, outras
iniciativas, como a ou as escolas, grupos culturais, étnicos, religiosos e
outros. Finalmente, os eventos, desde manifestações políticas até as esportivas
– como jogos de várzea, femininos, infantis – e festivas, como bailes, e até a
“coluna social”, com aniversários, casamentos, funerais. Evidentemente, essa
produção também inclui, e em vários sentidos converge para a produção de outros
tipos de conteúdo, ficcionais, documentários, experimentais e outros. Tudo que
é produzido dessa maneira deve ser arquivado e, o que for mais importante,
necessário ou interessante, deve ser divulgado, em todos os meios possíveis,
para a comunidade.
Articulação local, criação de redes colaborativas e de
instituições de representação política em nível municipal, estadual, nacional,
internacional e virtual. Uma IACP deve colaborar com diferentes iniciativas da
ou na comunidade nos campos da cultura, da educação, da política. Em muitos
casos, isso pode levar a formas de atuação conjunta mais sólidas, inclusive
propiciando fusões – entre ações culturais -, principalmente nos casos em que a
comunidade ainda não tem condições de manter diversas iniciativas distintas.
Numa IACP, as atividades de teatro, dança e várias outras, ainda que tenham
autonomia em suas práticas, também complementam as formas de apresentação
audiovisual e se fortalecem com essa difusão. As escolas são outra área de
colaboração indispensável, nos dois sentidos: as práticas audiovisuais têm um
componente pedagógico essencial, ainda que não formal, no sentido tradicional,
assim como a escola é uma instituição em certa medida superada[31], que
necessita absolutamente de uma integração mais efetiva com as comunidades. De
certa forma, o mesmo se aplica às formas de organização mais políticas das
comunidades, como associações de moradores, ou nos casos em que, de certa
forma, as próprias comunidades se definem em torno de organizações ou ações
políticas, como sindicatos, ocupações, assentamentos, entre outras. Em todos os
casos acima, a autonomia das partes é da sua essência e sempre necessária; o
nível de integração entre elas é, portanto, questão complexa que vai depender
de cada caso. A criação de redes colaborativas e da representação política mais
ampla das IACPs, nos diversos níveis e espaços geográficos e sociais, será
decorrente das próprias práticas que desenvolverem, da história que construírem
e das relações que estabelecerem.
Montreal, junho de 2024.
[1] Acessível em
https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/06/o-velho-e-o-novo-1-cinefilia-ideologia.html
ou https://www.academia.edu/103900907/O_velho_e_o_novo .
[2] Williams, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo. São
Paulo: UNESP.
[3] Ver
https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2021/04/o-primeirocineclube-periodizacao.html
.
[4] No original, respectivamente: Workers Film Theatre,
Cinéma du Peuple, Verein Bild und Wort e Kosmos Club für wissenschaftliche und
künstlerische Kinematographie.
[5] Ver mais em
https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/09/novissima-cronologia-do-cineclubismo.html
[6] Um exemplar em mal estado existe na Biblioteca Nacional.
[7] Em francês, termo relativamente difícil de traduzir:
office du cinéma éducateur.
[8] Nos anos 50, por exemplo, no auge da segunda onda
cinefílica, a França tinha cerca de 10 mil cineclubes. Destes, 80% era filiados
à UFOLEIS – Union française des œuvres laïques pour l’éducation par l’image et
le son (União francesa das obras laicas para a educação através da imagem e do
som), entidade que evolui a partir de uma primeira organização criada em 1929,
segundo Laborderie, Pascal e Souillés-Debats, Léo. 2016. L’UFOLEIS, le cinéma
éducateur et les cinés-clubs : une rencontre par et pour le cinéma. La Ligue de
l’enseignement et le cinéma : une histoire de l’éducation à l’image, 1945-1989.
Paris : AFRHC.
[9] Há muito material sobre o tema. Aponto aqui apenas um
exemplo: Kepley Jr., Vance. 1994. 'Cinefication': Soviet Film Exhibition in the
1920s” em Film History, Vol. 6, No. 2, Indiana University Press.
[10] Campbell, Russel. 1982. Cinema Strikes Back: Radical
Filmmaking in the United States 1930-1942. Ann Arbor: UMI Research Press.
[11] Gauthier, Christophe; Perron, Tangui e Vezyroglou,
Dimitri. « Histoire et cinéma : 1928, année politique », em Revue
[12] Martín-Barbero, Jesús e Rey, Germán. 1999. Los
ejercicios del ver – Hegemonía audiovisual y ficción televisiva. Barcelona:
Gedisa Editorial.
[13] Jay, Martin. 1998. “Scopic regimes of Modernity”, em
Foster, Hal (ed.), Vision and Visuality – Discussions in Contemporary Culture
#2. Seattle: Bay Press.
[14] Zuboff, Shoshana. 2019. The Age of Surveillance
Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Nova
York: Public Affairs
[15] Poell, Thomas; Nieborg, David e Van Dijck, José.
“Plataformização”, em Fronteiras – estudos midiáticos. No. 22 janeiro/abril
2020. Unisinos
[16] Horkheimer, Max e
Adorno, Theodor W. 1972. Dialectic of Enlightenment. Nova York: Herder and
Herder.
[17] Op.cit.
[18] Elsaesser, Thomas. 2017. Cinema como arqueologia das
mídias. São Paulo: Edições SESC.
[19] De Certeau, Michel. 1974. A Invenção do Cotidiano. (2
vol.). São Paulo: Vozes.
[20] Hall, Stuart. 1973. Encoding and decoding in the
Television Discourse. Birmingham: Centre for Contemporary Cultural Studies.
[21] Marx, Karl. 1843. Introdução à Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel. Acessível em
https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm .
[22] Thompson, E.P.
(1963) s.d. The Making of the English Working Class. New York : Random House –
acessível em
https://uncomradelybehaviour.files.wordpress.com/2012/04/thompson-ep-the-making-of-the-english-working-class.pdf
. Williams, Raymond. 1960. Culture and Society 1780-1950. Nova York :
Doubleday. Esses autores ingleses destacam a característica sempre coletiva e
democrática das organizações surgidas nos meios de trabalhadores, em comparação
com a individualidade ou privatização das que têm origem na burguesia.+
[23] Hardman, Francisco Foot. 1980. A Estratégia do desterro
– Situação operária e contradições da política cultural anarquista/Brasil,
1889-1922. Tese de mestrado – UNICAMP, acessível em
https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/48105 Tema retomado em Nem pátria,
nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 2003, São Paulo:
Editora UNESP.
[24] DORE, Rosemary. 2007. “Atividade editorial como
atividade educativa: reflexões de Gramsci sobre as "revistas tipo".
Revista de Sociologia e Política, Curitiba, nov., n.29, apud Souza, Herbert
Glauco de. 2018. Reforma Intelectual e Moral e a Construção da Hegemonia: o
Processo de Elevação Cultural dos Grupos Sociais Subalternos. Tese de
doutorado: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, acessível
em
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AWKN9D/1/tese_herbert__1_.pdf
[25] Freire, Paulo. 1987. Pedagogia do Oprimido. Rio de
Janeiro: Paz & Terra.
[26] Não à toa, o lema do Cinema do Povo, de 1913, era:
“Divertir, instruir, emancipar”.
[27] Canudo, Ricciotto. 1911. La Naissance d'un sixième art -
Essai sur le cinématographe, acessível em
https://www.filosofia.org/hem/191/9111025c.htm
[28] É importante salientar que, ao pensarmos em comunidades,
temos em vista grupos sociais com pelo menos muitas dezenas de integrantes,
frequentemente com centenas e mesmo milhares de pessoas. Ou mais. Os espaços
virtuais acrescentam números potencialmente ainda muito maiores. E essa é uma
das características essenciais para considerarmos essas práticas socialmente
relevantes e efetivamente transformadoras.
[29] Tratei desse tema em um artigo, escrito ainda no início
da Pandemia, sobre o papel das igrejas, que têm ocupado os espaços deixados por
outras iniciativas nos ambientes populares: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2020/03/as-igrejas-as-esquerdas-e-os-cineclubes.html
[30] Os 18 objetivos ou campos cobertos pela Política
Nacional Aldir Blanc preveem a organização e manutenção desses espaços. De
fato, cobrem, de alguma maneira, todos os objetivos de uma IACP apontados aqui.
Ver discussão do assunto em: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html
.
[31] Esse é um tema complexo e fundamental, tanto para uma
ação cultural em sentido mais amplo como, igualmente, para a educação. Mas não
cabe no escopo sintético deste texto.
Debates Cineclubistas | O futuro do Cineclub
FELIPE MACEDO
Estou terminando um doutorado na Universidade de Montreal. Minha tese: "O cineclube ou o público do audiovisual e suas instituições: teoria, história, futuro". Meu mestrado foi, justamente, "O cineclube como instituição do público: proposta para uma nova história". Também escrevi "O movimento cineclubista Brasileiro". E organizei, com Giovanni Alves, o livro "Cineclube, Cinema & Educação". Tenho artigos e capítulos de livros em diferentes publicações, em alguns países. Cineclubista há muitos anos, ajudei a criar um bom número de cineclubes, alguns dos quais marcaram um pouco seu tempo: Barraco, Oficina, Bixiga, Oscarito, Elétrico, Latino-Americano. Ajudei a fundar e dirigi a Federação Paulista de Cineclubes, o Conselho Nacional de Cineclubes e a Dinafilme. Fui diretor da Federação Internacional de Cineclubes nas gestões de François Truffaut e Carlo Lizzani, e Secretario Latino-Americano da entidade. Também fui diretor, em duas ocasiões, da área de Atividades Culturais do Memorial da América Latina, onde criei o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo e o cineclube de mesmo nome, além de outras ações que se mantêm até hoje.
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