A Universidade Federal de Sergipe foi fundada em 28 de fevereiro de 1967. Mas as lutas empreendidas para a congregação das antigas faculdades2, numa política de federalização para os sergipanos, teve todo um processo que envolveu sujeitos históricos até aqui anonimados, a exemplo do grande intelectual, patrono da educação brasileira, o nordestino e pernambucano Paulo Freire.
Neste sentido, o presente artigo objetiva analisar e mostrar a influência deste intelectual no contexto educacional sergipano, antes do golpe civil militar de 1964. Para tanto, compulsamos jornais na hemeroteca digital da Universidade Federal de Sergipe, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional e no Diário Oficial do Estado de Sergipe, anos de 1963 e 1964, itens bibliográficos do referido autor e de autores sergipanos e nacionais.
A Universidade Federal de Sergipe foi fruto das lutas contínuas, dos sonhos de superação da pequenez territorial; a oportunidade de superarmos a alcunha de “emigrados”, como salientou Sílvio Romero, quando se referiu a nossa literatura e consequentemente, aos nossos intelectuais. Muito além disso, a quem deveria servir uma Universidade Federal nos moldes daquelas que já haviam surgido no país?
Não vamos descrever a história da educação em Sergipe. Seria muito demorado para dizermos o óbvio, o processo foi longo, lento, excludente e gradual. Logo, o recorte temporal do estudo aqui empreendido foi junho de 1963 até dias antes do golpe de fins de março e início de abril de 1964.
Pela federalização do ensino superior em Sergipe
A vinda de Paulo Freire a Sergipe naquele ano teve relação estreita com as “reformas de base” empreendidas pelo governo de João Goulart. Neste caso, na área da educação popular,
1 Historiador-pesquisador. Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe. Professor do sistema público estadual e do município de Santo Amaro das Brotas; cidade de onde é natural.
2 Sobre a criação da universidade Federal de Sergipe, ver BRETAS, Silvana Aparecida. A criação da Universidade Federal de Sergipe, história, política e formação da comunidade acadêmica (1950-1970). São Cristóvão: editora UFS, 2014.
o governo federal propunha uma reforma educacional de valorização do magistério e do ensino público em todos os níveis. O combate ao analfabetismo era uma bandeira que tremulava tristemente pelos altos índices do analfabetismo no país, logo tornava-se necessário um verdadeiro Movimento de Educação de Base3. As experiências feitas, com o Método Paulo Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte, fizeram deste método parte do Plano Nacional de Alfabetização.
Coincidentemente ou não, Paulo Freire participou junto às alas progressistas de Sergipe, a exemplo do então bisco José Vicente Távora4, do II Seminário de Reforma Universitária. Contribuiu no processo de federalização do ensino superior e trouxe consigo o seu projeto piloto, o “Método Paulo Freire”. Depois da experiência em Angicos, no Rio Grande do Norte, Sergipe e Rio de Janeiro serviram de laboratório para o referido Projeto, apoiado pelo presidente da República, João Goulart e o governador do Estado, Seixas Dória. Com este intento, a Gazeta de Sergipe noticiava toda a programação e caminhos seguidos pelo intelectual, autor de “Pedagogia do Oprimido”, em terras sergipanas:
Paulo Freire Ensina Alfabetizar em Trinta e Seis Horas
Encontra-se nesta capital desde ontem o Professor Paulo Freire, da Universidade do Recife, que adota um plano revolucionário de alfabetização em trinta e seis horas, com resultados surpreendentes no estado de Pernambuco.
Já está programado aplicação do método de alfabetização do Professor Paulo Freire no município de Riachuelo, dentro de plano traçado pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde.
Demonstração
Ontem à tarde, logo depois de ter desembarcado nesta capital, o Professor Paulo Freire esteve na Faculdade Católica de Filosofia desta Capital, onde fez sua demonstração do seu método de alfabetização em trinta e seis horas, impressionando vivamente os professores, alunos daquela Escola Superior, bem como um grande número de pessoas que compareceram ao local.
O método do Professor Paulo Freire baseia-se na conscientização do indivíduo, através da visualização e decomposição das palavras.
Com estudantes e trabalhadores
3 Ver BARROS, Francisca Argentina Gois. Movimento de Educação de Base: MEB em Sergipe (1961-1964). São Cristóvão: editora UFS, 2014.
4 Sobre Dom José Vicente Silveira Távora, ver SANTANA, Glêise Santos. A Guinada da Igreja Progressista em Sergipe: o Bispado de Dom José Vicente Távora (1958-1970). São Cristóvão, 2011. Ver também, As cartilhas do MEC, Gazeta de Sergipe, 5 mar. 1964
Hoje pela manhã o Professor Paulo Freire viajará para a cidade de Santo Amaro das Brotas, onde participará do II Seminário de Reforma Universitária de Sergipe.
Às catorze horas, o ilustre professor pernambucano terá um encontro com os trabalhadores na sede da União dos Operários Ferroviários de Sergipe no bairro Siqueira Campos.
Sociedade em trânsito
Obedecendo ao tema “A Sociedade Brasileira em Trânsito”, o Professor Paulo Freire pronunciará ainda hoje a noite, a partir das vinte horas, uma conferência no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, conferência essa patrocinada pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde do Estado, à qual deverão estar presentes autoridades e o povo em geral.
Experiência piloto
A experiência piloto do método de alfabetização do Professor Paulo Freire, em Sergipe, será feita, segundo nos revelou fonte autorizada da Secretaria de Educação no município de Riachuelo.
Tomando conhecimento das condições demográficas e de alfabetização de Riachuelo, o Professor Paulo Freire disse que em quarenta e cinco dias deixará o município sem um analfabeto (Gazeta de Sergipe, 09 jun.1963).
Como vemos acima um dos ecos da reforma universitária em Sergipe ocorreu na cidade de Santo Amaro das Brotas em 1963. Naquela época uma cidade veraneio, com os seus pomares, o ar exalando cheiro de sapotis e carambolas... Foi nesse ambiente agradável, que aconteceu o referido seminário. Não tardou, após análises da “situação sociológica” do campo acadêmico, universitário sergipano, através dos “círculos culturais”, logo seriam publicadas as declarações de Santo Amaro das Brotas. Pela importância do documento, revelador de uma expressa vontade popular, segue na íntegra:
Universitários: “Declarações de Santo Amaro das Brotas5
Nós, os estudantes universitários de Sergipe, reunidos no II Seminário Estadual de Reforma Universitária considerando que:
a) a atual estrutura que rege as nossas Faculdades é inadequada, decorrente das insuficiências locais;
b) as nossas Faculdades ministram um ensino acadêmico, formando profissionais para uma realidade diversa da nossa;
5 Sobre o Movimento Estudantil, o Ensino Superior e a Sociedade em Sergipe, ver: CRUZ, José Vieira da. Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe – 1950-1985. Maceió: EDUFAL, 2017.
c) o nosso Estado necessita, como todo o País em revolução, técnicos preparados para superação da atual estrutura;
d) as universidades brasileiras estão fechadas para o povo e os seus ideais visam, essencialmente, a formação de uma casta de profissionais que insiste em manter a estrutura opressora, esquecendo-se das suas dívidas para com o povo.
Vimos de público declarar que somos favoráveis à criação da Universidade de Sergipe, sob forma de Fundação Federal, não como uma Universidade comum, igual as existentes no País, mas com uma estrutura nova, voltada, dos seus ideais mais profundos até as suas mais superficiais características, integralmente para o povo. É preciso que em Sergipe não se crie mais uma entidade que vise a promoção, a cientificação e a justificativa filosófica para a manutenção da atual estrutura capitalista, a promoção do anti-povo. A Universidade não pode ser criada por um grupo, mas por todo um esforço consciente de professores e alunos. Por esta razão, exigimos uma representação efetiva no Grupo de Trabalho instituído pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde, segundo a Portaria nº 10, e encarregado de estudar o problema do Ensino Superior no Estado.
Por outro lado, somos contrários a efetivação dos professores fundadores da Faculdade de Direito de Sergipe, pois tal medida é contrária a toda e qualquer ideia de REFORMA UNIVERSITÁRIA, desde que a efetivação conduz em tese, a estagnação cultural. Apoiamos, assim, a luta do Centro Acadêmico “Sílvio Romero”, no sentido de conservar a situação dos professores até a criação da Universidade, onde o sistema de Fundação elimina a cátedra e a substitui pela carreira do magistério.
Convocamos nestes termos, os operários, camponeses e o povo em geral para a luta que neste momento empreendemos pela democratização do ensino superior no nosso Estado.
Que a Universidade venha para o povo; seja uma resposta aos angustiantes problemas do País que ficam sem resposta; que a Universidade ou venha para resolver problemas ou não chegue a nascer pois estaremos prontos para reagir contra mais uma mistificação.
UNIVERSIDADE PARA O POVO OU NADA!
Santo Amaro das Brotas (SE), 09 de junho de 1963.
Juracy Magalhães Chagas (Bancada da Escola de Química)
Luiz Machado Mendonça (Bancada da Faculdade de Ciências Econômicas)
José Cortês Rolemberg Filho (Bancada da Faculdade de Medicina)
José Alexandre Felizola Diniz (Bancada da Faculdade Católica de Filosofia)
Maria Leite Frago (Bancada da Faculdade de Direito)
Cândido Fontes (Bancada da Escola de Serviço Social)
Gil Cardoso Natureza (Bancada da União Estadual dos Estudantes) (Gazeta de Sergipe, 11 jun.1963. nº. 2225).
Os jornais compulsados mostram que até a efetivação e federalização das antigas faculdades foi um processo conturbado. A Gazeta de Sergipe de 30 de julho de 1963, é categórica ao afirmar que “os professores das Faculdades de Direito, Medicina, pela sua maioria não aceitam a constituição da Universidade de Sergipe, em forma de Fundação, nos moldes da instalada em Brasília, porque não serão catedráticos e sim contratados”.
A resistência às cátedras, ao ensino para uma pequena, mas gulosa elite, foi contínua. Posicionamentos contrários aos privilégios seculares criticavam as tentativas de imobilismo educacional, a efetivação de professor sem concurso público de provas e títulos; “assuntos envolvidos numa cortina de silêncio”. Mas o ato histórico ocorrido em Santo Amaro das Brotas ecoou e pediu uma universidade a serviço do povo, uma extensão da sociedade sergipana. Algo que não viria logo após a criação da Universidade Federal de Sergipe (1967), mas as lutas sempre farão ecoar as vozes do povo:
Universidade para o povo
A luta do povo brasileiro é um fato visível. Nenhuma camada social aguarda soluções do alto, alienadas dos seus interesses como imposições de uma classe dominante. Aí temos um documento dos mais oportunos, de grande mérito político, lançado pelos Universitários Sergipanos, depois da reunião do II Seminário Estadual de Reforma Universitária, na cidade de Santo Amaro das Brotas.
O ensino acadêmico, inteiramente desligado dos problemas econômicos, políticos e sociais do povo brasileiro, a preparar “doutores e cientistas” sem outros objetivos que o êxito individual, tornou-se ônus aos cofres públicos. O meio perdeu a sua capacidade de preparar gerações de homens, porque amarrados a uma filosofia de vida que se conflita diariamente, nos seus pressupostos coletivos.
Sente o país embaraços na escolha dos seus quadros administrativos, na solicitação de técnicos, bons profissionais para o seu desenvolvimento econômico e social. No entanto, as Escolas Superiores lançam anualmente, centenas de bacharéis em direito, médicos, engenheiros, químicos industriais, economistas, que, por receberem uma educação meramente acadêmica, ocupam, as mais das vezes, porém, não preenchem os cargos.
Universidades estão sendo criadas. Cada Unidade Federativa trabalha por sua instalação, desde que os professores interinos adquiram estabilidade, como seus fundadores. Já ninguém discute com seriedade os males do catedrático, sinônimo de estagnação cultural, do descaso pelo ensino, mais uma aposentadoria, do que prêmio à cultura, ao desvelo pelo ensino universitário.
Aliás, no Brasil há um desejo intenso de rompimento dessa caduca, mentalidade, que flui dos próprios corpos docentes e discentes, com certa intensidade, sobretudo da mocidade universitária, inconformada com a pregação de uma cultura alienada aos objetivos estrangeiros e, completamente deslembrada de que há no Brasil, geograficamente continental, exigindo soluções nacionais, oriundas de fatores históricos, que presidiram a sua formação. Tôda a reformulação do espírito universitário merece a atenção do povo, para que o ensino se estenda às diversas camadas sociais (Gazeta de Sergipe, 12 jun.1963).
O documento mencionado acima é orientador do perfil universitário frente ao processo de fechamento do regime democrático; um instrumento de defesa da Universidade democrática, extensiva, a serviço das necessidades das comunidades, das culturas populares que constituem a formação do povo brasileiro. Uma Universidade que incentiva à formação contínua dos profissionais da educação. Como diz trecho acima, uma universidade atenta aos problemas econômicos, políticos e sociais do país. Ideais golpeados com o golpe civil militar. Um mês após o documento mencionado, a Assembleia Legislativa aprovava o projeto transferindo para a União as Faculdades de Ciências Econômicas e Química “atingindo o número necessário” que era de cinco faculdades para a “criação da Universidade de Sergipe”6.
Sergipe, projeto piloto do “Método Paulo Freire”
Paulo Freire.
Fonte: Paulo Freire: Disponível em: <https://www.brasildefatope.com.br/2021/09/21/especial-paulo-freire-conheca-o-metodo-freireano-no-prosa-e-fato-desta-semana>. Acesso em: 07 maio 2024.
O “Método Paulo Freire” ganhou notoriedade pública a partir de Angicos, no Rio Grande do Norte (1962) como dito no decorrer deste texto. Sobre esta experiência, Paulo Freire, em seu livro “Conscientizacion”, publicado em 1974, na Argentina, diz:
“los resultados obtenidos – 300 trabajadores alfabetizados em 45 dias – impresionaron profundamente a la opinión pública”. A referida obra é reveladora quanto a efetivação do projeto em amplitude nacional. Ele completa: “Se decidió aplicar el método em todo el território nacional, pero, esta vez, com el apoyo del Gobierno Federal, y fue así como entre junio de 1963 y marzo de 1964 se realizaron cursos de formación de coordenadores em la mayor parte de las capitales de los Estados brasileños (Freire, 1974).
6 Ver Diário de Pernambuco, 13 jul. 1963.p.10.
Vimos anteriormente que Paulo Freire além de participar do II Seminário de Reformas Universitárias de Sergipe, demostrou o seu Método na Faculdade Católica de Filosofia, discursou na sede da União dos Operários Ferroviários sobre reformas de base e “as 9 horas, sobre o patrocínio da Secretaria de Educação e Cultura e Saúde do Estado, pronunciou uma conferência no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe”, a qual teve como temática, “A Sociedade Brasileira em Trânsito”. Importante o registro para os anais da história da educação sergipana. Sob a gestão de Urbano Neto, a “Casa de Sergipe” refletiu a instabilidade política do período, o que comprometeu a administração da instituição centenária, guardiã da memória e da história dos sergipanos (Dantas, 2012, p. 263).
Em correspondência publicada no “Diário de Pernambuco”, Assis Barros também noticiou a vinda do mestre Paulo Freire para Sergipe:
Professor Paulo Freire foi aplicar em Sergipe seu método de alfabetização
[...] PROF. PAULO FREIRE – Desde o dia 8 do corrente que se encontra nesta capital o prof. Paulo Freire, a convite do Governo Seixas Dória, que vai aplicar, neste Estado, o método de alfabetização em trinta e seis horas.
No sábado passado, o prof. Paulo Freire esteve na Faculdade Católica de Filosofia, onde fez uma demonstração do seu método de alfabetização em trinta e seis horas. No dia seguinte visitou a cidade de Santo Amaro das Brotas, tomando parte no II Seminário de Reformas Universitárias de Sergipe. As 15 horas esteve na sede da União dos Operários Ferroviários, onde pronunciou discurso sobre reformas de base. As 9 horas, sobre o patrocínio da Secretaria de Educação e Cultura e Saúde do Estado, pronunciou uma conferência no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (Barros, 1963, p. 13).
Sergipe e Rio de Janeiro foram os Estados pilotos para a aplicação do “Método Paulo Freire”. Conforme citado pelo autor, entre junho de 1963 e final de março, antes do golpe civil militar que feriu o coração da democracia no Brasil. Conforme publicação na Gazeta de Sergipe de 27 fevereiro de 1964, no dia 26 de fevereiro de 1964, foi inaugurado o “Curso de Alfabetizadores Método Paulo Freire”, o evento precursor ocorreu no auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e “perto de mil pessoas estiveram presentes na “Casa de Sergipe”.
A aula inaugural foi “proferida por Luíz Rabêlo Leite, secretário da educação do Estado no governo de Seixas Dória. O evento contou também com o coordenador da Campanha Nacional de Alfabetização em Sergipe, Paulo Pacheco, que mostrou a importância da aplicação do Método para combater o subdesenvolvimento do Estado de Sergipe e romper com as velhas estruturas e privilégios. Com a alfabetização do povo chegaríamos a tão sonhada emancipação nacional.
No dia 3 de março do mesmo ano, a comissão organizadora do “Método Paulo Freire”, em Sergipe, anunciava, na Gazeta de Sergipe, ilustrativamente segue abaixo recorte da Campanha Nacional de Alfabetização (CNA) para os sergipanos:
Paulo Freire na obra já citada aqui, “Concientizacion” (1974), evidencia a estruturação e abrangência do seu método com as formações de coordenadores locais para efetivação do processo de alfabetização de adultos:
Y fue asi como entre junio de 1963 y marzo de 1964 se realizaron cursos de formación de coordenadores em la mayor parte de las capitales de los Estados brasileños (em el Estado de Guanabara se inscribieron más de 6.000 personas; igualmente, se crearon cursos em los Estados de Rio Grande del Norte, San Pablo, Bahia, Sergipe y Rio Grande del Sur que agruparon varios millares de personas). El plan de acción de 1964 preveía la instalación de 20.000 círculos de cultura capaces de formar, em el mismo año, alrededor de 2 millones de alunos. (Cada círculo adecaba em dos meses, a 30 alumnos) (Freire, 1974, p.20).
Entre as capitais dos Estados, como evidenciado acima pelo intelectual, Aracaju foi um dos lugares em que teve início o processo de implementação do “Método Paulo Freire”. Nos jornais compulsados, além de Aracaju, outros municípios sergipanos também iniciaram as dinâmicas de intervenção, entre eles temos: Riachuelo, Itabaiana, Estância, Lagarto e Simão Dias.
A Campanha Nacional de Alfabetização em Sergipe foi iniciada por meio de convênio7 com o Estado e previa “alfabetizar cerca de vinte mil sergipanos, conforme acordo inicial”. Para
7 Ver Diário de Pernambuco, 2 jul. 1963. p.3.
o início do processo de alfabetização foi necessário se fazer pesquisas junto às comunidades sobre aspectos de “habitação, instrução, número de familiares, dentre outros. Este seria o ponta pé inicial, saber a “situação sociológica” dos sergipanos.
Através da publicação na Gazeta de Sergipe de 18 de março de 1964 (grifo nosso - o jornal se equivocou no ano do mesmo e colocou 1963), vemos que o país estava polarizado politicamente, as forças reacionárias tentavam a todo instante golpear a democracia brasileira. Mesmo em páginas mais alinhadas ao progressismo encontrava-se “negacionistas”, contrários à alfabetização e conscientização do povo sergipano. Exemplo temos uma charge, comum na Gazeta de Sergipe, intitulada, “Piada do Dia”, que ironizava o projeto libertador de Paulo Freire:
Fonte: Gazeta de Sergipe, 10 de mar. 1964.
Foi nesse clima, que muitos aracajuanos não cooperaram com as vinte equipes envolvidas no projeto piloto do "Método Paulo Freire", e negaram as informações. Segundo o mesmo jornal, “muitos moradores de bairros centrais não respondem as perguntas formuladas, dizendo simplesmente que “a vida particular não interessa a ninguém”, não respondendo quantas pessoas existem analfabetas em suas casas”. Para termos uma dimensão da campanha revolucionária deste projeto, citamos:
Toda a cidade de Aracaju será coberta essa semana [...] pela pesquisa, vez que o serviço foi distribuído em vinte grandes equipes, com orientação da Equipe Central. Os pesquisadores fornecerão a Campanha dados concretos sobre o analfabetismo em nossa capital, possibilitando ainda a descoberta das condições de vida dos moradores da cidade, sobretudo das classes médias e pobres – objetos de futuros debates nos Círculos de Cultura (Gazeta de Sergipe, 18 de março de 1964).
Continuando a publicação, os defensores do “Método Paulo Freire” em Aracaju mostram que sem os dados “sociológicos” dos moradores, o trabalho perdia todo o sentido e objetivo, qual seja, alfabetizar o povo sergipano do campo e da cidade:
O principal fundamento do Método Paulo Freire (de alfabetização de adultos em 40 horas) é que todo o desenrolar dos debates e conhecimento dos fonemas da língua portuguesa parte do que chamam de “situação sociológica”, ou seja exatamente as condições de vida que cercam os habitantes da cidade e do estado onde o método é aplicado. Sem o conhecimento dessas condições, do universo vocabular (palavras faladas mais habitualmente), dos instrumentos e material de trabalho dos moradores da cidade onde o Método é empregado, ele não se distinguiria dos demais, de vez que empregaria termos e motivações desinteressantes e pouco utilizadas em Aracaju. Daí a necessidade das informações que estão sendo colhidas nesta cidade e que depois o serão no interior do Estado (Gazeta de Sergipe, 18 de mar. 1964).
Em um momento traumático da história nacional, com uma polarização política cada vez mais intensa, as disputas no campo político estavam mais do que indispostas para resolver os problemas do país “dentro das regras democráticas”. O governo intensifica as “reformas de base” e movimentava os setores populares. A estimativa na área educacional era “alfabetizar 400 mil pessoas entre Sergipe e o Estado do Rio”. A Gazeta de Sergipe, talvez não sabendo da gravidade dos fatos nacionalmente, do início do golpe em 31 de março de 1964, publicou como estava o andamento dos trabalhos da implantação do “Método Paulo Freire”:
Aqui em Sergipe os trabalhos da equipe já estão bem adiantados. Primeiro houve a seleção do pessoal que irá supervisionar os núcleos de alfabetização. São os inspetores. Na semana que passou foi concluída a pesquisa para se saber estimativamente o número de pessoas a alfabetizar, e se encontrar a palavra padrão. No momento, o grupo, - supervisores técnicos – estão escolhendo os locais, onde serão instalados os primeiros núcleos. [...]. Os prédios não servirão somente para as aulas do ABC, como para atividades culturais, recreativas e desportivas. (Rosa, 1964). O Diário Oficial do Estado de Sergipe de primeiro de julho de 1963 avisava que continuavam abertas as inscrições “para o curso do Prof. Paulo Freire, alfabetização em 36 horas” (Leite, 1963). O projeto de alfabetização de adultos logo viria a ser interrompido pelas forças conservadoras. A educação por meio da conscientização era ameaçadora aos tentáculos da “elite do atraso”. Em 14 de abril de 1964, a ditadura civil-militar baixou o decreto de número 53.886, assinado pelo presidente interino Ranieri Mazzilli, que dizia: "Revoga o Decreto nº 53.465, de 21 de janeiro de 1964, que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura". Esta medida encerrava o “Curso de Alfabetização pelo Método Paulo
Freire, que em nosso Estado já havia iniciado suas atividades como plano piloto estabelecido pelo Ministério da Educação. As medidas impositivas se refletiram em Sergipe. Com a substituição do secretário de educação, Luíz Rabêlo Leite, por José Carlos de Sousa, foi revogada a portaria que instituiu os Movimentos de Cultura Popular, as portarias do Conselho Curador e membro se diversos setores do Movimento de Cultura Popular, houve o fechamento dos Centros Populares de Cultura em todo o Estado, inclusive os mantidos pelos Diretórios Acadêmicos das Faculdades de Direito, Filosofia e Ciências Econômicas e o da União Estadual dos Estudantes, além do Movimento de Cultura Popular de Propriá (Gazeta de Sergipe, 10 de abril de 1964). No dia 21 de abril daquele ano, como vemos no recorte abaixo, as escolas marchavam na Avenida Fausto Cardoso, levando em carro alegórico o brasão de armas; prestaram continências às forças armadas, que mais uma vez, como na instauração da República, utilizava a representação de Tiradentes, como um herói nacional, “a imagem de um Cristo cívico”, conforme José Murilo de Carvalho, na obra, “A formação das Almas” (1990, p. 67). Fonte: Gazeta de Sergipe, 22 abr. 1964. Por fim, a semente foi plantada. As lutas empreendidas por uma sociedade democrática e menos desigual foram sufocadas, todavia, o sol sempre nasce; “a esperança é a última que morre”. E conforme Paulo Freire, “la concientzación, em cuanto actitud crítica de los hombres em la historia, no se terminará jamás” (FREIRE, 1974, p.31).
silvaneysantos061045@gmail.com
O texto acima foi publicado primeiramente na Revista Paulo Freire. Para acessar...
https://manguejornalismo.org/revista-paulo-freire/
Referências:
BARROS, Assis. Professor Paulo Freire foi aplicar em Sergipe seu método de alfabetização. Diário de Pernambuco, 16 jun. 1963.
BARROS, Francisca Argentina Gois. Movimento de Educação de Base: MEB em Sergipe (1961-1964). São Cristóvão: editora UFS, 2014.
BRETAS, Silvana Aparecida. A criação da Universidade Federal de Sergipe, história, política e formação da comunidade acadêmica (1950-1970). São Cristóvão: editora UFS, 2014.Campanha Nacional de Alfabetização, Gazeta de Segipe, 2 mar. 1964.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas, o imaginário da república no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
CRUZ, José Vieira da. Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe – 1950-1985. Maceió: EDUFAL, 2017.
DANTAS, Ibarê. História da Casa de Sergipe: os 100 anos do IHGSE 1912-2012. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: IHGSE, 2012.
EM SANTO AMARO O II SEMINÁRIO DE REFORMA UNIVERSITÁRIA. A Cruzada, 16 jun. 1963. nº. 1391.
ESTUDANTES DESFILARAM NO DIA DE TIRADENTES. Gazeta de Sergipe, 22 abr. 1964.
FREIRE, Paulo. Concientizacion, teoria y practica de la liberacion. Buenos Aires: Ediciones Busqueda, 1974.
FUNDAÇÃO UNIVERSITÁRIA. Gazeta de Sergipe, 30 jul. 1963.
II SEMINÁRIO DE REFORMA UNIVERSITÁRIA. Gazeta de Sergipe, 08 jun.1963.
INAUGURADO O CURSO DE ALFABETIZADOSRES “MÉTODO PAULO FREIRE”. Gazeta de Sergipe, 27 fev. 1964.
LEITE, Luiz Rabelo. Aviso. Diário Oficial do Estado de Sergipe, 4 jul. 1963. nº. 14754.
MINISTRO DA EDUCAÇÃO: 10% da Receita do País para o Ensino. Diário de Pernambuco, 2 jul. 1963. p.3.
PAULO FREIRE ENSINA ALFABETIZAR EM TRINTA E SEIS HORAS. Gazeta de Sergipe, 09 jun.1963.
PIADA DO DIA. Gazeta de Sergipe. 10 mar. 1964.
POPULAÇÃO NÃO COOPERA NA PESQUISA. Gazeta de Sergipe. 18 mar. 1964.
ROSA, Francisco. Progresso e desenvolvimento veêm com educação. Gazeta de Sergipe, 07 abr. 1964.
SANTANA, Glêise Santos. A Guinada da Igreja Progressista em Sergipe: o Bispado de Dom José Vicente Távora (1958-1970). São Cristóvão, 2011.
TOMA POSSE DELEGADO DE TRABALHO DE SERGIPE. Diário de Pernambuco, 13 jul. 1963.
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO EXTINGUE MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR. Gazeta de Sergipe, 10 abr. 1964.
UNIVERSIDADE PARA O POVO. Gazeta de Sergipe, 12 jun.1963.
UNIVERSITÁRIOS: Declarações de Santo Amaro das Brotas. Gazeta de Sergipe, 11 jun.1963.
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